10/06/2015 PLENÁRIO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL RELATORA : MIN. CÁRMEN LÚCIA
REQTE.(S) : ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS - ANEL
ADV.(A/S) : GUSTAVO BINENBOJM
INTDO.(A/S) : PRESIDENTE DA REPUBLICA INTDO.(A/S) : PRESIDENTE DO CONGRESSO NACIONAL ADV.(A/S) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
AM. CURIAE. : INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO - IHGB
ADV.(A/S) : THIAGO BOTTINO DO AMARAL
AM. CURIAE. : ARTIGO 19 BRASIL
ADV.(A/S) : CAMILA MARQUES BARROSO E OUTRO(A/S) AM. CURIAE. : ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
ADV.(A/S) : ALBERTO VENANCIO FILHO E OUTRO(A/S)
AM. CURIAE. : ASSOCIAÇÃO EDUARDO BANKS
ADV.(A/S) : ROBERTO FLÁVIO CAVALCANTI
AM. CURIAE. : CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - CFOAB
ADV.(A/S) : OSWALDO PINHEIRO RIBEIRO JÚNIOR E OUTRO(A/S)
ADV.(A/S) : MARCUS VINICIUS FURTADO COELHO
AM. CURIAE. : INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SAO PAULO - IASP
ADV.(A/S) : IVANA CO GALDINO CRIVELLI E OUTRO(A/S)
AM. CURIAE. : INSTITUTO AMIGO
ADV.(A/S) : MARCO ANTONIO BEZERRA CAMPOS E OUTRO(A/S)
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTS. 20 E 21 DA LEI N. 10.406/2002 (CÓDIGO CIVIL). PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA REJEITADA. REQUISITOS LEGAIS OBSERVADOS. MÉRITO: APARENTE CONFLITO ENTRE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS: LIBERDADE DE EXPRESSÃO, DE INFORMAÇÃO, ARTÍSTICA E CULTURAL, INDEPENDENTE DE CENSURA OU AUTORIZAÇÃO PRÉVIA (ART. 5º INCS. IV, IX, XIV; 220, §§ 1º E 2º) E INVIOLABILIDADE DA INTIMIDADE, VIDA PRIVADA, HONRA E IMAGEM DAS PESSOAS (ART. 5º, INC. X). ADOÇÃO DE CRITÉRIO DA PONDERAÇÃO PARA INTERPRETAÇÃO DE PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL. PROIBIÇÃO DE CENSURA (ESTATAL OU PARTICULAR). GARANTIA CONSTITUCIONAL DE INDENIZAÇÃO E DE DIREITO DE RESPOSTA. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE PARA DAR INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO AOS ARTS. 20 E 21 DO CÓDIGO CIVIL, SEM REDUÇÃO DE TEXTO.
1. A Associação Nacional dos Editores de Livros - Anel congrega a classe dos editores, considerados, para fins estatutários, a pessoa natural ou jurídica à qual se atribui o direito de reprodução de obra literária, artística ou científica, podendo publicá-la e divulgá-la. A correlação entre o conteúdo da norma impugnada e os objetivos da Autora preenche o requisito de pertinência temática e a presença de seus associados em nove Estados da Federação comprova sua representação nacional, nos termos da jurisprudência deste Supremo Tribunal. Preliminar de ilegitimidade ativa rejeitada.
2. O objeto da presente ação restringe-se à interpretação dos arts. 20 e 21 do Código Civil relativas à divulgação de escritos, à transmissão da palavra, à produção, publicação, exposição ou utilização da imagem de pessoa biografada.
3. A Constituição do Brasil proíbe qualquer censura. O exercício do direito à liberdade de expressão não pode ser cerceada pelo Estado ou por particular.
4. O direito de informação, constitucionalmente garantido, contém a liberdade de informar, de se informar e de ser informado. O primeiro refere-se à formação da opinião pública, considerado cada qual dos cidadãos que pode receber livremente dados sobre assuntos de interesse da coletividade e sobre as pessoas cujas ações, público-estatais ou público-sociais, interferem em sua esfera do acervo do direito de saber, de aprender sobre temas relacionados a suas legítimas cogitações.
5. Biografia é história. A vida não se desenvolve apenas a partir da soleira da porta de casa.
6. Autorização prévia para biografia constitui censura prévia particular. O recolhimento de obras é censura judicial, a substituir a administrativa. O risco é próprio do viver. Erros corrigem-se segundo o direito, não se coartando liberdades conquistadas. A reparação de danos e o direito de resposta devem ser exercidos nos termos da lei.
7. A liberdade é constitucionalmente garantida, não se podendo anular por outra norma constitucional (inc. IV do art. 60), menos ainda por norma de hierarquia inferior (lei civil), ainda que sob o argumento de se estar a resguardar e proteger outro direito constitucionalmente assegurado, qual seja, o da inviolabilidade do direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem.
8. Para a coexistência das normas constitucionais dos incs. IV, IX e X do art. 5º, há de se acolher o balanceamento de direitos, conjugando-se o direito às liberdades com a inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa biografada e daqueles que pretendem elaborar as biografias.
9. Ação direta julgada procedente para dar interpretação conforme à Constituição aos arts. 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível autorização de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo também desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas ou ausentes).
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski, o Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto da Relatora, julgou procedente o pedido formulado na ação direta para dar interpretação conforme à Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas). Falaram, pela requerente Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL, o Dr. Gustavo Binenbojm, OAB/RJ 83.152; pelo amicus curiae Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, o Dr. Thiago Bottino do Amaral, OAB/RJ 102.312; pelo amicus curiae Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB, o Dr. Marcus Vinicius Furtado Coelho, OAB/PI 2525; pelo amicus curiae Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP, a Dra. Ivana Co Galdino Crivelli, OAB/SP 123.205-B, e, pelo amicus curiae INSTITUTO AMIGO, o Dr. Antônio Carlos de Almeida Castro, OAB/DF 4107. Ausente o Ministro Teori Zavascki, representando o Tribunal no simpósio em comemoração aos 70 anos do Tribunal de Disputas Jurisdicionais da República da Turquia, em Ancara.
Brasília, 10 de junho de 2015.
Ministra CÁRMEN LÚCIA – Relatora
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL
RELATORA : MIN. CÁRMEN LÚCIA
REQTE.(S) : ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS - ANEL
ADV.(A/S) : GUSTAVO BINENBOJM
INTDO.(A/S) : PRESIDENTE DA REPUBLICA INTDO.(A/S) : PRESIDENTE DO CONGRESSO NACIONAL ADV.(A/S) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
AM. CURIAE. : INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO - IHGB
ADV.(A/S) : THIAGO BOTTINO DO AMARAL
AM. CURIAE. : ARTIGO 19 BRASIL
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ADV.(A/S) : ALBERTO VENANCIO FILHO E OUTRO(A/S)
AM. CURIAE. : ASSOCIAÇÃO EDUARDO BANKS
ADV.(A/S) : ROBERTO FLÁVIO CAVALCANTI
AM. CURIAE. : CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - CFOAB
ADV.(A/S) : OSWALDO PINHEIRO RIBEIRO JÚNIOR E OUTRO(A/S)
RELATÓRIO
A Senhora Ministra Cármen Lúcia (Relatora):
1. Ação direta de inconstitucionalidade, com requerimento de medida cautelar, ajuizada em 5.7.2012 pela Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL objetivando "a declaração da inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos arts. 20 e 21" da Lei n. 10.406/2002 (Código Civil), que dispõem:
"Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma".
O caso
2. A Autora argumenta que "por força da interpretação que vem sendo dada aos referidos dispositivos legais [arts. 20 e 21 do Código Civil] pelo Poder Judiciário, a publicação e a veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais, tem sido proibida em razão da ausência de prévia autorização dos biografados ou de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas)".
Alega que "as pessoas cuja trajetória pessoal, profissional, artística, esportiva ou política, haja tomado dimensão pública, gozam de uma esfera de privacidade e intimidade naturalmente mais estreita. Sua história de vida passa a confundir-se com a história coletiva, na medida da sua inserção em eventos de interesse público. Daí que exigir a prévia autorização do biografado (ou de seus familiares, em caso de pessoa falecida) importa consagrar uma verdadeira censura privada à liberdade de expressão dos autores, historiadores e artistas em geral, e ao direito à informação de todos os cidadãos" (grifos no original).
Afirma que, "em que pese o pretenso propósito do legislador de proteger a vida privada e a intimidade das pessoas, o alcance e a extensão dos comandos extraíveis da literalidade dos artigos 20 e 21 do Código Civil, ao não preverem qualquer exceção que contemple as obras biográficas, acabam por violar as liberdades de manifestação do pensamento, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (CF, art. 5º, IV e IX), além do direito difuso da cidadania à informação (art. 5º, XIV)" (grifos no original).
Aduz que "tal interpretação – que eleva a anuência do biografado ou de sua família à condição de verdadeiro direito potestativo – produz efeito devastador sobre o mercado editorial e audiovisual: escritórios de representação negociam preços absurdos pelas licenças, transformando informação em mercadoria. Não se trata da proteção de qualquer direito da personalidade do biografado, mas de uma disputa puramente mercantil, um verdadeiro leilão da história pessoal de vultos históricos, conduzido, muitas vezes, por parentes que jamais os conheceram".
Destaca que, "do ponto de vista da construção da memória coletiva, os efeitos deletérios da interpretação ora combatida são ainda mais graves. O País se empobrece pelo desestímulo a historiadores e autores em geral, que esbarram invariavelmente em familiares que formulam exigências financeiras cumulativas e, por vezes, contraditórias. Ademais, são igualmente graves as distorções provocadas por uma história contada apenas pelos seus protagonistas. Trata-se, como se vê, de um efeito silenciador e distorcivo dos relatos históricos e da produção cultural nacional".
Assevera, ainda, que "o condicionamento de obras biográficas ao consentimento do biografado, ou de seus familiares, sacrifica conceitualmente o direito fundamental à livre divulgação da informação pelos historiadores e biógrafos, assim como o direito à obtenção de informação, cuja titularidade pertence a todos os cidadãos. O princípio do pluralismo (político, histórico e cultural), previsto no art. 1º, inciso V, da Constituição da República, também incide, na espécie, para afastar a necessidade da prévia autorização do biografado ou de outras pessoas retratadas em obras biográficas. Afinal, o monopólio da biografia autorizada representa, na prática, a antítese da ideia do pluralismo em relação às visões da história política, artística e social do país".
Pretende a Autor ter demonstrado a fumaça do bom direito, afirmando que o perigo da demora "decorre da situação de inconstitucionalidade contínua representada pela necessidade de obtenção de autorizações em toda e qualquer obra biográfica de pessoas públicas (ou a elas relacionadas), bem como do seu efeito silenciador e distorcivo (sic) sobre a construção da memória nacional".
Requer a suspensão cautelar: a) "da interpretação dos artigos 20 e 21 do Código Civil segundo a qual é necessário o consentimento do biografado e, a fortiori, das pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas) para a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais", e b) "suspensão, até julgamento final da presente ação direta, de todos os processos em que se discuta a publicação ou veiculação de biografias não autorizadas, bem como das decisões judiciais que hajam proibido a sua publicação ou veiculação".
No mérito, pede a declaração de "inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil para que, mediante interpretação conforme a Constituição, seja afastada do ordenamento jurídico brasileiro a necessidade do consentimento da pessoa biografada e, a fortiori, das pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas) para a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais".
3. Em suas informações, a Presidente da República manifestou-se pela improcedência da ação, argumentando que "nenhum direito à liberdade de expressão será supremo ou superior aos direitos personalíssimos e, igualmente, que a liberdade de informar não poderá ter seu pleno exercício assegurado, sob pena de desequilíbrio com o outro direito, também fundamental, que é o direito à privacidade. E porque o direito de informar não poderá violar os direitos fundamentais personalíssimos, como a imagem, a privacidade, a dignidade e, por fim, a honra, é que a Constituição Federal Brasileira assegura, de forma infalível, a liberdade de expressão e o direito de informação, mas claramente estabelece os limites do exercício destes direitos. Assim é que, nos termos do seu art. 5º, inciso IX, está proibida a imposição de qualquer licença para a divulgação da atividade intelectual, artística e de comunicação. Porém, no subsequente inciso X, estabelece a inviolabilidade da intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas e, no art. 220, a ordem é que a informação e manifestação do pensamento estarão condicionadas ao 'disposto nesta Constituição' e ao 'disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV'".
Destacou, ainda, que "outro ponto a ser observado é que na ponderação entre a liberdade de informação e de expressão e os direitos da personalidade destacam-se dois fatores: a veracidade do fato narrado e a existência de interesse público sobre o mesmo (...) [, razão pela qual,] somente a informação que for verdadeira poderá ter sua divulgação protegida e somente o interesse público pode ser considerado objeto da liberdade de informação e de expressão. Porém, nem sempre é simples afastar, com clareza, a verdade da mentira. Em grande parte dos casos há nebulosidade e contradita. Também não é tarefa fácil estabelecer se determinada informação corresponde a uma necessidade humana de compartilhamento de conhecimentos e é capaz de igualar os homens com o fim de melhorá-los e com isso alavancar o progresso social".
4. Em suas informações, o Senado Federal defendeu a constitucionalidade das normas impugnadas, afirmando "não procede[r] a alegação da autora de que há proibição no Brasil de biografias não autorizadas. Tanto é assim que circula, sem qualquer censura, no mercado nacional inúmeras publicações biográficas não autorizadas sobre diversas personalidades. O que o ordenamento jurídico brasileiro não permite é a exploração comercial não autorizada da imagem das pessoas, nem a publicação de impressos ou de audiovisuais com potencial ofensivo".
5. A Procuradoria-Geral da República manifestou-se pela procedência da ação, com a declaração parcial de inconstitucionalidade, sem redução de texto, dos arts. 20 e 21 da Lei n. 10.406/2002 (Código Civil).
Asseverou ser "possível reconhecer uma prioridade prima facie da liberdade de expressão e do direito à informação sobre os direitos da personalidade, quando se tratar de personalidade pública – e as biografias versam quase invariavelmente sobre personalidades públicas, como políticos, artistas e desportistas de renome. Essa tese foi acolhida pela Suprema Corte norte- americana no importante precedente Sullivan v. New York Times, em que, em nome da proteção à liberdade de expressão, assentou-se que as pessoas públicas, mesmo diante da divulgação de fato inverídico prejudicial à sua reputação, só fazem jus a indenização se provarem que o responsável agiu com dolo real (actual malice) ou eventual (reckless disregard of whether it was false or not). O propósito foi evitar que, por medo de condenações em ações de reparação de danos, a imprensa e a sociedade se silenciassem sobre temas importantes, o que empobreceria os debates sociais e prejudicaria o direito à informação do público. No caso das normas ora impugnadas, o legislador sequer buscou solução voltada à otimização possível dos valores constitucionais em disputa; simplesmente conferiu proteção absoluta aos direitos da personalidade, às expensas de uma restrição completa à liberdade de expressão e ao direito à informação, de forma francamente incompatível com a importância atribuída pela Constituição a estes últimos direitos fundamentais. O resultado tem sido não só a legitimação da censura privada, como o empobrecimento da nossa esfera pública e cultural e a asfixia de um relevante segmento artístico".
Conclui que "o acolhimento do pedido formulado pela requerente, por sua vez, ao viabilizar a tutela adequada da liberdade de expressão e de informação, não causará lesão desproporcional aos direitos da personalidade dos biografados. Isso porque continuará plenamente aplicável a regra geral prevista na Constituição Federal para o equacionamento da tensão entre liberdades comunicativas e direitos da personalidade, pela qual é banida a censura de qualquer espécie, mas reconhecido o direito da vítima do exercício abusivo da liberdade da expressão à reparação dos danos morais e materiais sofridos (art. 5º, V, CF)".
6. Em 21.11.2013, foi realizada Audiência Pública para o aporte ao Supremo Tribunal Federal de pareceres e manifestações de especialistas sobre a matéria.
7. A Advocacia-Geral da União manifestou-se pela improcedência do pedido.
Afirmou que "a liberdade de expressão pode ser compreendida sob duas vertentes, isto é, a liberdade de opinião e a liberdade de comunicação. Um dos aspectos que destacam a relevância da liberdade de expressão decorre da circunstância de o seu exercício constituir instrumento de fiscalização da atividade governamental e do exercício do poder. Nesse contexto, ao prever e garantir, expressamente, alguns direitos fundamentais, a Constituição Federal viabiliza o exercício de controle sobre os órgãos estatais, a permitir a afirmativa de que esses direitos representam condição para a existência do Estado Democrático de Direito".
Asseverou que "o Texto Constitucional assegura ao autor da biografia o direito de manifestar e difundir livremente os fatos obtidos em sua pesquisa, assim como os seus sentimentos e opiniões pessoais sobre o biografado, desde que respeitada a vedação ao anonimato. Ademais, o cidadão tem o direito de tomar conhecimento sobre os fatos da vida de personagens públicas, em virtude de sua importância para a história e cultura da sociedade da qual faz parte".
Anotou que "por força do preceito fundamental da dignidade da pessoa humana (artigo 1°, inciso l, da Constituição FederaI), assegura-se a cada indivíduo o direito à autodeterminação e ao livre desenvolvimento de sua personalidade. Com efeito, a liberdade de expressão, na vertente da liberdade de comunicação, e o direito à informação encontram limite no direito à privacidade, assegurado pelo artigo 5°, inciso X, da Lei Maior. A existência digna do ser humano pressupõe a prerrogativa de reservar para si uma esfera intangível pelos seus semelhantes".
Observa que, "dificilmente um ensaio biográfico deixa de tratar da privacidade da personagem que constitui seu objeto. Não raras vezes, os detalhes íntimos da vida do biografado geram comoção ou curiosidade na opinião pública, com retorno financeiro para o seu autor. Nesse contexto, a confissão ou divulgação de fatos pertinentes a intimidade e à vida privada cabem, apenas, ao titular do direito. A imagem do ser humano somente pode ser explorada se este aceita o emprego que se lhe quer atribuir, de modo que a publicação e a veiculação de obras biográficas deve condicionar-se ao consentimento do biografado, que é a pessoa mais apta a examinar a veracidade das informações divulgadas e a apreciar se a propagação de aspectos de sua vida pessoal reveste-se ou não de interesse social (...). Por derradeiro, registre-se que esse Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Originária n. 1390, ressaltou que a liberdade de expressão deve ser limitada pelos direitos à honra, à intimidade e à imagem".
8. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, a ARTIGO 19 BRASIL, a Academia Brasileira de Letras – ABL, a Associação Eduardo Banks, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB, o Instituto dos Advogados de São Paulo e o Instituto Amigo foram admitidos como amici curiae.
É o relatório, cuja cópia deverá ser encaminhada a cada um dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (art. 9º da Lei n. 9.868/1999 c/c art. 87, inc. I, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal).
10/06/2015 PLENÁRIO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL
ANTECIPAÇÃO AO VOTO
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) -
Senhor Presidente, Senhores Ministros, eu fiz distribuir o meu voto, pelo qual de pronto peço desculpas, por ser longuíssimo. Por mais que tenha editado o voto, que tinha, na verdade, pouco mais de trezentas páginas, consegui reduzi-lo a cento e vinte. Então, Senhor Presidente, não farei a leitura do voto. Peço licença a Vossa Excelência e, sendo autorizado, de imediato seja a íntegra do voto disponibilizada no site do Supremo.
Farei, aqui, leitura de uma síntese. Apresento o espírito do voto - à maneira do que fazem algumas Cortes Constitucionais - com as razões que fundamentam a conclusão, que lerei, colocando-me à disposição para esclarecimentos, até porque o voto inteiro está na mão de cada qual dos Senhores Ministros. Também farei entrega aos advogados dos amici curiae - e digo isso em respeito não só aos presentes, mas também aos jurisdicionados.
Fiz um índice do voto, por nele ter tratado de tudo o que foi apresentado na audiência pública, também os parâmetros normativos constitucionais e as regras da interpretação demandada; a questão da liberdade de expressão, de pensamento, de informação; direito à intimidade, à privacidade; o que são as biografias, a sua história; a transcendência do direito à intimidade. Interpretei os artigos para chegar à conclusão.
Senhores Ministros, houve arguição de ilegitimidade ativa da autora por um amicus curiae, o que superei com base na jurisprudência deste Supremo Tribunal, tendo feito constar no voto item específico sobre este ponto. Não sei se há alguma indagação, mas foi com base, rigorosamente, na jurisprudência adotei a solução no sentido de superar a arguição. Também transcrevi, para conhecimento pleno dos Ministros - que já receberam, quando houve a realização da audiência -, tudo o que todos aqueles da sociedade, que se apresentaram, argumentaram como sendo na defesa de uma ou de outra das teses constantes da ação.
No voto, circunscrevi, como disse, especificamente do que estamos aqui a cuidar. Nesta ação, não se cuida basicamente da validade dos arts. 20 e 21 do Código Civil. O objeto desta ação, que procurei circunscrever de maneira específica e que é o objeto da formulação, está em que há de se buscar a compreensão sobre ser ou não se interpretarem os arts. 20 e 21 do Código Civil, que começam por afirmar que "salvo autorização, a exposição, a transmissão da palavra, da imagem, a produção de obras poderá ser proibida a requerimento do interessado ou de seus familiares, no caso de morto ou ausente". Então, o objeto desta ação é a interpretação daquelas normas para se concluir a sua compatibilização com as normas constitucionais.
O que se tem aqui, basicamente, é o seguinte: em seu art. 5º, incisos V, VI, IX, X e XIV, a Constituição do Brasil estabelece serem todos iguais na lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos à vida, à liberdade, à segurança e se tem que é assegurada a liberdade de pensamento e de sua expressão; é garantida a liberdade de criação artística, literária, científica, cultural; é garantido o direito à informação, no sentido de informar, informar-se e ser informado, como direitos fundamentais. No inciso X do art. 5º, se tem a garantia da inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem das pessoas e, em caso de violação, a Constituição dá a solução: a reparação por meio de indenização. Então é esse o conjunto de normas que poderia apresentar, segundo o que se argumenta na ação, um conflito aparente de normas. Nem chego a dizer haver uma colisão de direitos, por ser a liberdade assegurada plenamente. A liberdade de expressão, que é ampla, vasta, combina-se com a norma do art. 220 da Constituição, no qual se afirmar ser proibida censura de qualquer natureza. O Código Civil, em seu art. 20, numa redação até questionável, digamos, na sua apresentação - toda regra jurídica começa por um preceito ao final do qual se pode estabelecer uma ressalva – inicia pela ressalva: salvo autorização... O início é a ressalva, então a redação é ruim e o conteúdo demanda interpretação para fazer a norma civil na principiologia constitucional. A Constituição afirma ser livre o direito de expressão, garante a liberdade e o dever de informar e ser informado, e a norma do Código Civil afirma que pode se informar, pode se transmitir a palavra por escrito, audiovisual, se o interessado autorizar, ou, não autorizando, poderá seu requerimento impedir a circulação da expressão do pensamento.
O que se pede nesta ação é que o Supremo Tribunal Federal interprete esses dispositivos constitucionais, prática corrente em todo o mundo, para se concluir como compatibilizar a intimidade de biografado - e aqui só se cuida de obra biográfica, nada mais -, como conciliar os artigos constitucionais, interpretando de tal maneira aqueles dispositivos do Código Civil a não se incluir proibição para biografias, porque então estaria havendo censura, o que de todos aqui, incluídos os que falaram agora na Tribuna, os senhores advogados, a Procuradoria-Geral da República em seu parecer, reconhecem ser forma de pessoa ser tão livre que o outro pode expressar o que quiser. Porém, se a palavra for sobre a vida dele, ele pode impedir que o outro pense ou expresse.
Esta não é uma matéria nova, as Cortes Constitucionais, as Cortes europeias, cuidaram em diversas ocasiões de casos nos quais este tema foi abordado. Transcrevo, longamente, em meu voto, casos nos quais a matéria foi cuidado de decisão judicial. Desde o célebre Caso Lüth, da Alemanha, quando um particular, Erich Lüth, que era presidente do clube de imprensa e, também, membro do Senado alemão, fez uma campanha de boicote a um filme produzido por Veit Harlan, por ter sido ele produtor de filmes, no período do Nazismo, a pedido do Goebbels. Então, o Lüth foi ao Tribunal Constitucional afirmando: "Isso é entre particulares, e eu tenho direito à liberdade de expressão. Ele produziu filmes no período do nazismo e, portanto, este passado não autoriza agora a que nós, judeus, assistamos aos seus filmes. Esta campanha do boicote, portanto, seria um exercício de liberdade de expressão". Este caso tornou-se célebre porque, num primeiro momento, o judiciário reconheceu que ele não teria esse direito. Levado à Corte Constitucional, a Corte Constitucional avaliou que não, a liberdade de expressão teria que ser assegurada, porque quem um dia viveu alguma coisa não pode se esconder e, depois, simplesmente, dizer que nada pode ser dito aquele respeito.
Como, desde esse caso, de 1958, que marcou o início, por exemplo, da teoria dos efeitos horizontais de direitos fundamentais, efeitos entre particulares, a matéria continua candente, cito casos muito recentes, por exemplo, transcrito no voto, da Princesa Caroline de Mônaco que, morando na Alemanha, vai ao Tribunal Constitucional afirmando: "Tiraram uma foto, venho ao Judiciário, porque neste País não sou princesa, e, portanto, estou levando uma vida particular, não se podendo permitir que devassem a minha experiência e tirando fotos quando assim resolvem". Ela conseguiu resultado favorável, o que também transcrevi no voto. Porém, um ano depois, voltam a fazer manifestações sobre ela em escritos, e ela apresenta-se à Corte Europeia de Direitos Humanos. Então, a Corte concluiu que ela não teria direito a ser resguardado, porque neste segundo caso o artigo se relacionava a suas práticas como filha do Príncipe Rainier, que estava doente, e isso respeitaria ao interesse público; portanto, não haveria direito à intimidade a ser preservado, sobrelevando a liberdade de expressão na siatuação.
Também transcrevi outros casos da Corte Europeia de Direitos Humanos e também o da Suprema Corte Americana, o conhecido Warren/ Brandeis, que relacionava-se ao direito à intimidade: "The right to be alone", ou seja, o direito de ser deixado em paz. O que, contudo, não significa que o outro possa ter extinto ou abolido em seu direito à liberdade de expressão.
Aplicando todas essas teorias, que são do constitucionalismo contemporâneo, apresentei a conclusão na forma do exposto no voto. Gostaria, Senhor Presidente, de pedir licença a Vossa Excelência para fazer a leitura, portanto, do que preparei, como se fosse o espírito do voto, com os itens essenciais, e ler a parte dispositiva da minha conclusão, liberando - como eu disse - de imediato a íntegra do voto. E faço a leitura apenas dessa parte, colocando-me à disposição dos Senhores Ministros para eventuais esclarecimentos que se mostrem necessários.
10/06/2015 PLENÁRIO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL
Índice
Preliminar de legitimidade ativa Da audiência pública
Parâmetros normativos constitucionais e regras civis de interpretação demandada
I. Liberdade de expressão, direito à intimidade e direito à privacidade
II. Liberdade de expressão e direito à liberdade de expressão
III. Direito à liberdade de pensamento e de expressão e censura
IV. Direito à informação: liberdade/dever de informar e direito de se informar
– Responsabilidade constitucional pela informação
V. Direito à intimidade e direito à privacidade
VI. Biografia e liberdades individuais e públicas
– Biografia e história
– Biografia: a intimidade e a privacidade do biografado
VII. Transcendência do direito à intimidade e à privacidade
VIII. Interpretação dos arts. 20 e 21 do Código Civil do Brasil: da colisão aparente de normas à harmonia dos princípios constitucionais e à submissão da interpretação para efetividade máxima das normas fundamentais
Conclusão
VOTO
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (Relatora):
O pedido formulado na ação consiste em
"que seja declarada a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil, para que, mediante interpretação conforme à Constituição, seja afastada do ordenamento jurídico brasileiro a necessidade do consentimento da pessoa biografada e, a fortiori, das pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas) para a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais). Caso assim não se entenda, por mera eventualidade... pede seja declarada a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil para que, mediante interpretação conforme a Constituição, seja afastada do ordenamento jurídico brasileiro a necessidade do consentimento da pessoa biografada e, a fortiori, das pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas) para a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais, elaboradas a respeito de pessoas públicas ou envolvidas em acontecimentos de interesse coletivo".
Cumpre limitar o objeto da presente ação: não afastar do mundo jurídico os dispositivos legais questionados, mas interpretá-los de forma a compreender-se não incidente necessidade de autorização prévia do interessado quanto a obras biográficas literárias ou audiovisuais, tornando aquelas normas compatíveis com os preceitos constitucionais de direitos fundamentais.
Antes de iniciar a leitura da síntese do meu voto, ressalto duas observações sem as quais não ficaria em paz se não as expusesse:
– a primeira por dever de justiça: vi, ouvi e li muitas referências – nem sempre elogiosas, às vezes quase agressivas – a que este ou aquele jurisdicionado queria a lei interpretada segundo a sua vontade, pessoas que se dirigiram, em diversas ocasiões, ao Poder Judiciário em busca de solução para suas aflições pessoais, porque se sentiram atingidas em seus direitos à intangibilidade da intimidade ou privacidade.
Não há "Lei João" ou "Maria" ou "José". A lei civil tem propiciado aqueles litígios. Justamente por acreditar no Judiciário, este ou aquele jurisdicionado buscaram solucionar suas pendengas judicialmente.
Nessa busca, não há desdouro nem afronta a quem quer que seja, tanto que se pode discordar da conclusão judicial, mas não se há de condenar o jurisdicionado socialmente pela sua luta e por procurar o Poder Judiciário para certificar-se do que crê serem seus direitos. Pior seria se se começasse a não se buscar o Judiciário e resolver-se vingar, forma dita vulgarmente de "fazer justiça pelas próprias mãos". Pior seria, pelo receio das reações contrárias, submeter-se à censura subliminar e perigosa de fazer alguém temer buscar os seus direitos e discutir o que parece próprio. Este processo trata da censura. E condenar alguém por buscar o Judiciário também é forma particular de censura.
O jurisdicionado há de ser respeitado. Ele pode vencer ou perder a demanda. Mas, pela ação ajuizada, demonstra maior respeito ao Estado e à sociedade que a intolerância daqueles que sequer aceitam que, por pensar em sentido contrário, o outro há de abandonar a luta pelo que crê seu direito.
O respeito ao pensar contrário é sinal de civilidade. A intolerância é fonte de enganos e fúrias e o resultado nunca é positivo para a convivência harmônica das pessoas.
Ressalto que todos os que buscaram o judiciário merecem o meu respeito, conquanto não contem com a minha igual compreensão sobre o tema. Mas defenderei até morrer o direito de cada um de lutar, na forma da Constituição da República e da lei, pelo direito de buscar o que lhe parece justo. Isso não significa agressão ou afronta. Quem não luta pelo seu direito talvez não esteja atento que é com esta luta que se conquistam novos direitos, que podem até mesmo a esses críticos aproveitar para o melhor caminho da Justiça.
A segunda observação que faço é lembrança da célebre frase de Carlos Maximiliano, segundo a qual o direito interpreta-se inteligentemente, para cumprir suas finalidades. E completo: o direito existe para o homem, não o homem para o direito. E os homens vivem em comunidade, para o que é necessário compreensão, tolerância e limites em suas ações, contrariamente ao quê nada pode dar certo. Não há alguém tão melhor que o outro que possa submeter a sua vida a patamar superior a todos os outros. Mas todos devem respeito à vida, às escolhas e às opções de cada um.
Este é um julgamento sobre o direito à palavra e a liberdade de expressá-la. Sem verbo, há o silêncio humano. Às vezes desumano. Por isso, a Constituição da República e todos os textos declaratórios de direitos fundamentais, ou de direitos humanos, garantem como núcleo duro e essencial da vivência humana a comunicação, que se faz essencialmente pela palavra.
No princípio era o Verbo. No Direito, o princípio e os fins definam-se em Verbo.
O sentido, o sabor e o saber da comunicação humana, condutores da história da humanidade – de cada um e de todos –, põem-se na palavra. Palavra é liberdade e convivência para a libertação de pessoas e de povos.
Na ciranda de roda da minha infância, alguém ficava no centro gritando: "cala a boca já morreu, quem manda em minha boca sou eu". O tempo ensinou-me que era uma musiquinha, não uma realidade. Tentar calar o outro é uma constante. Mas na vida aprendi que quem, por direito, não é senhor do seu dizer, não se pode dizer senhor de qualquer direito.
Também aprendi que a vida conjuga-se no plural. A garantia de falar do outro, que me cumpre, hoje, Juíza, garantir, pode ter como conteúdo a minha vida.
Cito, em meu voto, a realidade nunca acabada de todas as tentativas ao calar humano, especialmente quando o dizer atravessa os umbrais da porta da casa alheia. Na história luso-brasileira, desde as normas das Ordenações Filipinas, mandadas observar em 1603 e cumpridas no Brasil até o advento do Código Civil de 1916, fizeram-se constar normas nas quais se cuidavam dos segredos e da sua ruptura, da difamação e da injúria e das penas a serem imputadas aos que adotavam comportamentos proibidos:
"Título VIII – Dos que abrem as Cartas del Rey, ou da Rainha, ou de outras pessoas.
Qualquer, que abrir nossa Carta, assinada per Nós, em que se contenhão cousas de segredo, que specialmente pertenção à guarda de nossa pessoa, ou stado, ou da Rainha, minha mulher, ou do Príncipe, meu filho, ou à guarda e defensão de nossos Reinos, e descobrir o segredo dela, do que a nós poderia vir algum prejuízo, ou desserviço, mandamos que morra por isso.
(...) E se as ditas Cartas nos sobreditos casos abrir, e não descobrir os segredos, dellas, se for Scudeiro, ou pessoa de igual, ou maior condição, perca os bens, que tiver, para a Coroa do Reino, e seja degradado para a Africa para sempre; e se tal não for, além do dito degredo, seja publicamente açoutado.
E se somente abrir outras nossas Cartas cerradas, que forem assignadas por Nós, em que mandamos dizer algumas cousas que a Nós apraz, ou que pertencem a nosso serviço, que não são taes, como as que acima declaramos, ou abrir Cartas, que para Nós vierem, de qualquer pessoa que sejão, do que lhe aprouver, ou pertencer a nosso serviço, se for Scudeiro, ou de semelhante ou maior condição seja degradado quatro annos para a Africa, e seja riscado de nossos livros, se for nosso morador.
E se não for de dita qualidade, seja publicamente açoutado e degradado dous annos para a Africa".
Naquele documento, cuidava-se ainda da descoberta e da divulgação de segredos:
"Título IX – Das pessoas do Conselho del-Rey, e desembargadores, que descobrem o segredo.
Toda a pessoa de nosso Conselho, de qualquer stado e condição que seja, que descobrir os segredos, que Nós com ella em Conselho praticarmos e falarmos, em cousas, que specialmente pertenção à guarda de nossa pessoa, ou stado, ou da Rainha, ou Príncipe, ou guarda e defensão de nossos Reinos, ou de cousas, de que a eles se possa seguir algum dano, ou a Nós prejuízo, ou desserviço, morra por isso morte natural.
E se o segredo for de outras cousas, que pertenção a nosso serviço, que não são da qualidade das acima ditas, o que o descobrir, será degradado para Africa até nossa mercê, e ficará infame e privado de mais ser do nosso Conselho.
(...)
Título X – Do que diz mentira a El-Rey em prejuízo de alguma parte
Mandamos que toda a pessoa, que nos vier dizer mentira, em prejuízo de alguma parte, e sobre o que nos assi disser, não impetrar Alvará nosso, seja degradado dous annos, para Africa, e pague vinte cruzados para a parte, em cujo prejuízo nos assi disse a mentira, e mais ficará em arbítrio do Julgador dar-lhe mór pena, segundo a qualidade da pessoa, em cujo prejuízo for, e da cousa, que nos assi disse, e assi de julgar à parte sua injúria, se for caso de injúria".
Do início do séc. XVII até hoje, foram encontradas novas formas de se manter o segredo. E muitas outras de quebrá-lo.
O mundo, no entanto, é outro. O buraco da fechadura continua a exercer fascínio. Às vezes é mesmo curiosidade malsã. Às vezes só por prazer. Mas o mundo vê portas escancaradas, abertas pelos donos. Reclamar, portanto, de quê, se, no palanque da praça, conclamou a ouvir a sua voz? Ademais, com câmeras nas ruas, nas casas, nos quartos, preocupar-se com a fechadura? O tempo é outro. Não há espaço para choro. "Sorria, você está sendo filmado".
Não se faz a história apenas após se ultrapassarem os umbrais da porta de casa. Entre quatro paredes, fundam-se impérios estatais ou particulares, legítimos ou não.
O tempo é outro. A ideia de espaço e de tempo mudou. A conversa entre amigos na praça pública é particular. O estupro no quarto é assunto público. A exposição é enorme. Não há como se reterem informações. Há como, sempre, não se produzirem informações.
A Constituição da República declara fundamental a liberdade de pensamento e de sua expressão, a liberdade intelectual, artística, científica e cultural.
Também garante a inviolabilidade da intimidade (a essência resguardada de cada um), da privacidade (o que não se pretende viver senão no espaço mais recolhido daqueles com quem recai a escolha), da honra (que se projeta a partir da formação moral e dos valores que determinam as ações de cada um e fazem a pessoa reconhecida, para o que se precisa da liberdade) e da imagem (construída a partir da livre escolha do que se quer ser). Se houver ofensa – o que pode acontecer, pelas características humanas –, o autor haverá de responder por essa transgressão, na forma constitucionalmente traçada, pela indenização reparadora ou outra forma prevista em lei.
Não se admite, na Constituição da República, sob o argumento de se ter direito a manter trancada a sua porta, se invadido o seu espaço, abolir-se o direito à liberdade do outro. No caso do escrito, proibindo- se, recolhendo-lhe a obra, impedindo-se a circulação, calando-se não apenas a palavra do outro, mas amordaçando-se a história. Pois a história humana faz-se de histórias dos humanos, ou seja, de todos nós.
O direito admite técnicas de ponderação dos valores que demonstram que os arts. 20 e 21 do Código Civil, para os quais se pede interpretação conforme à Constituição da República, para a produção de obras biográficas literárias ou audiovisuais independentemente da autorização prévia, somente podem ser tidos como legitimamente válidos e subsistentes no sistema jurídico se afastada aquela exigência para o tema específico.
Há o risco de abusos. Não apenas no dizer, mas também no escrever. Vida é experiência de riscos. Riscos há sempre e em tudo e para tudo. Mas o direito preconiza formas de serem reparados os abusos, por indenização a ser fixada segundo o que se tenha demonstrado como dano. O mais é censura. E censura é forma de "calar a boca". Pior: calar a Constituição, amordaçar a liberdade, para se viver o faz de conta, deixar-se de ver o que ocorreu.
Abusos, repito, podem acontecer e acontecem, mas em relação a qualquer direito. Na espécie vertente, a interpretação dos dispositivos civis, quanto a biografias, que têm função social de relevo para o conhecimento da história e o seu encaminhamento, o que não me parece constitucionalmente admissível é o esquartejamento das liberdades de todos pela censura particular. O querer de um ser humano, importando a sua dignidade, há de ser protegido pelo Direito. Mas o Direito não existe para Robson Crusoé. Quando chega o Sexta- Feira e a comunicação se estabelece, nesse momento a ciranda começa. "Cala a boca já morreu". Isso a Constituição da República garante.
Por isso, considerando que:
a) a Constituição da República assegura como direitos fundamentais a liberdade de pensamento e de sua expressão, a liberdade de atividade intelectual, artística, literária, científica, cultural;
b) a Constituição da República garante o direito de acesso à informação, no qual se compreende o direito de informar, de se informar e de ser informado, a liberdade de pesquisa acadêmica, para o que a biografia compõe fonte inarredável e fecunda;
c) a Constituição brasileira proíbe censura de qualquer natureza, não se podendo concebê-la de forma subliminar pelo Estado ou por particular sobre o direito de outrem;
d) a Constituição vigente garante a inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da dignidade da pessoa, estabelecendo a consequência do descumprimento dessa norma pela definição da reparação de contrariedade a ela por indenização a ser definida; e
e) norma infraconstitucional não pode cercear ou restringir direitos fundamentais constitucionais, ainda que sob o pretexto de estabelecer formas de proteção, impondo condições ao exercício das liberdades de forma diversa daquela constitucionalmente permitida, o que impõe se busque a interpretação que compatibilize a regra civil com a sua norma fundante, sob pena de não poder persistir no sistema jurídico;
Voto no sentido de julgar procedente a presente ação direta de inconstitucionalidade, para dar interpretação conforme à Constituição da República aos arts. 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para,
a) em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística e produção científica, declarar inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas, literárias ou audiovisuais, fixada genericamente na regra civil, sendo por igual desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas); e
b) reafirmar o direito à inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa, nos termos do inc. X do art. 5º da Constituição da República.
ÍNTEGRA DO VOTO
1. Como relatado, na presente ação direta de inconstitucionalidade, ajuizada pela Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL, em 5.7.2012, objetiva-se "a declaração da inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos arts. 20 e 21" da Lei n. 10.406/2002 (Código Civil), nos quais se dispõe:
"Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma".
2. A Autora argumenta que, apesar do
"pretenso propósito do legislador de proteger a vida privada e a intimidade das pessoas, o alcance e a extensão dos comandos extraíveis da literalidade dos artigos 20 e 21 do Código Civil, ao não preverem qualquer exceção que contemple as obras biográficas, acabam por violar as liberdades de manifestação do pensamento, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (CF, art. 5º, IV e IX), além do direito difuso da cidadania à informação (art. 5º, XIV)".
3. Constitui o objeto da presente ação a interpretação das normas civis proibitivas de divulgação de escritos, transmissão da palavra, publicação, exposição ou utilização da imagem de determinada pessoa sem sua autorização segundo os princípios constitucionais, que resguardem as liberdades de expressão do pensamento, da atividade intelectual, artística e de comunicação, no exercício das quais são produzidas obras biográficas.
Interpretação que desconsidere exceção a tais liberdades relativas àqueles trabalhos impediria, segundo a Autora, a sua livre produção e circulação e importaria em censura privada incompatível com os preceitos constitucionais.
A Autora anota obter-se aquele resultado censor pela via judicial: "a dicção que lhes foi conferida (aos arts. 20 e 21 do Código Civil) acaba dando ensejo à proliferação de uma espécie de censura privada que é a proibição, por via judicial, das biografias não autorizadas".
Daí o pedido formulado na ação de
"que seja declarada a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil, para que, mediante interpretação conforme à Constituição, seja afastada do ordenamento jurídico brasileiro a necessidade do consentimento da pessoa biografada e, a fortiori, das pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas) para a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais). Caso assim não se entenda, por mera eventualidade... pede seja declarada a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil para que, mediante interpretação conforme a Constituição, seja afastada do ordenamento jurídico brasileiro a necessidade do consentimento da pessoa biografada e, a fortiori, das pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas) para a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais, elaboradas a respeito de pessoas públicas ou envolvidas em acontecimentos de interesse coletivo".
4. Necessário limitar o objeto da presente ação, na qual se busca afastar do mundo jurídico não os dispositivos legais questionados, mas interpretá-los de forma a compreendê-los não incidentes – na parte relativa à necessidade de autorização prévia do interessado – quanto a obras biográficas literárias ou audiovisuais, tornando-os compatíveis com os preceitos constitucionais.
Preliminar de legitimidade ativa
5. Cumpre assentar a legitimidade ativa da Autora da presente ação.
A Associação Eduardo Banks, admitida como amicus curiae, suscitou a preliminar de ilegitimidade ativa da Autora, argumentando que:
a) por representar categoria econômica, a Autora visaria a lucro, afastando-se da qualificação de associação civil descrita no art. 53 do Código Civil;
b) a Autora estaria desempenhando funções de entidade representativa de classe ao representar e defender os interesses financeiros das editoras de livros a ela filiadas;
c) a Associação não poderia ser considerada associação "de âmbito nacional" por não congregar associações regionais, mas entidades privadas com fins lucrativos (editoras);
d) o quadro associativo da Autora seria composto por entidades que não teriam como atividade principal a edição de livros, a exemplo das empresas de publicidade, das instituições de ensino, das firmas individuais, que não poderiam ser consideradas associações civis ou entidades de classe regionais;
e) não sendo a edição de livros atividade sindicalizada, não poderia a Autora se classificar como confederação sindical;
f) embora a Autora possa congregar associados que se filiem aos seus objetivos, as editoras de livros não seriam categoria homogênea; e
g) a Autora teria sido constituída dois meses e dois dias antes do ajuizamento da ação, o que não lhe conferiria legitimidade sequer para o ajuizamento de ação civil pública, cuja lei tem sido usada subsidiariamente para regular o processo de ação direta de inconstitucionalidade.
6. O Estatuto da Autora prevê:
"Art. 1º. A Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL – fundada no Rio de Janeiro – RJ, em 16 de novembro de 2011, é pessoa jurídica de direito privado, constituída na forma de associação civil sem fins econômicos, nos termos do art. 5º, incisos VII e VIII, da Constituição da República e do art. 53 e seguintes do Código Civil Brasileiro – Lei n. 10.446/2002, com duração indeterminada, regendo- se pelo presente Estatuto e pela legislação que for aplicável.
(...)
§ 3º. Editor, para fins deste Estatuto, é a pessoa natural ou jurídica a qual se atribui, com exceção para as obras de domínio público, o direito exclusivo de publicá-las e divulgá-las, pelo prazo e nas condições pactuadas com o autor.
Art. 3º. São objetivos da ANEL:
I- promover a difusão de livros e incentivar a leitura no Brasil;
II- defender a liberdade de expressão e os demais direitos correlatos, tais como a liberdade de imprensa, de criação artística, de informação e de comunicação, bem como defender os interesses dos editores de livros;
III- combater a censura prévia ou a posteriori, administrativa ou judicial, imposta por qualquer pessoa, seja ela natural ou jurídica, de direito público ou de direito privado, em especial a que venha a atingir livros, periódicos e outras atividades editoriais;
IV– representar e defender os interesses de seus associados perante autoridades administrativas, legislativas e judiciárias, em todo o território nacional;
V– ajuizar Ação Direta de Inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e Ação Declaratória de Constitucionalidade de lei o ato normativo federal, nos termos dos arts. 102, I, "a", e 103, IX, da Constituição da República Federativa do Brasil;
VI– ajuizar Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, nos termos dos arts. 102, I, § 1º, e 103, IX, da Constituição da República Federativa do Brasil;
VII– ajuizar representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais e municipais em face da Constituição Estadual, para a defesa da ordem jurídica em temas relacionados ao objetivo social da ANEL;
VIII– intervir, como amicus curiae, em causas que envolvam questões relacionadas ao seu objeto social, contribuindo para a prevenção, o desenvolvimento e o aprimoramento da liberdade de expressão e dos demais direitos correlatos no Brasil;
IX– Ajuizar Ações Civis Públicas e Coletivas na defesa dos interesses de seus associados;
X– coordenar interesses comuns de seus associados;
XI– promover e articular atividades que digam respeito aos editores de livros, diretamente ou através de contratos, convênios, acordos e termos de parceria com entidades privadas e órgãos públicos, representando os interesses gerais de seus associados, independentemente de outorga de mandato específico;
XII– propor ou sugerir ao poder público medidas que visem o estabelecimento ou a manutenção de incentivos fiscais, tributários e a adoção de leis e regulamentos que facilitem o aperfeiçoamento e o progresso do setor;
XIII– viabilizar politicamente os projetos de interesse dos editores de livros, bem com pleitear junto aos órgãos governamentais e/ou outras instituições, assuntos de interesse dos associados;
XIV– promover e veicular todo o tipo de prestação de serviços aos seus associados, na medida em que tais serviços venham a se tornar necessários;
XV– elaborar e colaborar com os poderes públicos na elaboração de políticas de incentivo à leitura, promoção da liberdade de expressão, difusão de informações;
XVI– colaborar com a aplicação e o aprimoramento da legislação relativa à área de seu interesse, em especial com leis de propriedade intelectual;
XVII– representar os associados em eventos nacionais e internacionais, e exercer as atribuições que porventura lhes sejam delegadas por seus associados ou por outros órgãos ou entidade;
XVIII– organizar, colaborar, realizar estudos, seminários, reuniões, congressos, cursos profissionalizantes e outros eventos vinculados ao seu objetivo, promovendo o intercâmbio de conhecimentos na área de atuação, visando também qualificar a mão de obra, preservar a qualidade técnica e profissional dos recursos humanos que atuam no setor, certificando as empresas habilitadas;
XIX– fixar e impor contribuições a todos os associados, aplicando os recursos obtidos para a realização dos objetivos da Associação;
XX– providenciar, junto aos órgãos competentes, calendário para a realização de eventos do setor;
XXI– realizar outras atividades condizentes com a finalidade da Associação" (doc. 2).
Ao assentar a legitimidade das associações para a o ajuizamento de ação de controle concentrado, este Supremo Tribunal Federal tem cotejado as normas do estatuto constitutivo com o impacto e as consequências jurídicas que as normas impugnadas causam nos direitos dos respectivos associados (ADI n. 4.441-AgR/SE, Relator o Ministro Dias Toffoli, Plenário, DJ 7.10.2014; ADI n. 4.400/DF, Relator o Ministro Ayres Britto, Redator para o acórdão o Ministro Marco Aurélio, Plenário, DJ 3.10.2013; ADI n. 3.413/RJ, Relator o Ministro Marco Aurélio, Plenário, DJ 1º.8.2011; e ADI n. 3.288/MG, Relator o Ministro Ayres Britto, Plenário, DJ 24.2.2011).
Diferente do alegado pela Associação Eduardo Banks, a circunstância de representar categoria econômica não autoriza a conclusão de a Autora desenvolver atividades apenas ou prioritariamente com fins econômicos, a afastá-la da configuração de associação civil descrita no art. 53 do Código Civil.
Não se pode recusar a legitimidade ativa da Autora ao fundamento de as entidades por ela congregadas terem fins econômicos.
Almejar lucros em suas atividades não importa em óbice para a atuação judicial da Autora, cuja personalidade jurídica não se confunde com a de suas associadas, demonstrando-se inexistente impedimento ao reconhecimento de sua legitimidade para o ajuizamento desta ação.
O Plenário deste Supremo Tribunal reconheceu a legitimidade ativa de associações como a que se apresenta nesta ação, sendo exemplos disso a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.702/ES, Relator o Ministro Dias Toffoli, ajuizada pela Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos – ABIMAQ; a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 32.866/RN, Relator o Ministro Gilmar Mendes, ajuizada pela Associação Brasileira de Extratores e Refinadores de Sal – ABERSAL; e a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.153-AgR/DF, Redator para o acórdão o Ministro Sepúlveda Pertence, ajuizada pela Federação Nacional das Associações dos Produtores de Cachaça de Alambique – FENACA.
Desde esse último julgamento, em 12.8.2004, o Supremo Tribunal Federal passou a admitir o ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade pelas denominadas "associações de associações de classe", desde que nacionalmente congreguem classe econômica homogênea:
"EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade: legitimação ativa: "entidade de classe de âmbito nacional": compreensão da "associação de associações" de classe: revisão da jurisprudência do Supremo Tribunal. 1. O conceito de entidade de classe é dado pelo objetivo institucional classista, pouco importando que a eles diretamente se filiem os membros da respectiva categoria social ou agremiações que os congreguem, com a mesma finalidade, em âmbito territorial mais restrito. 2. É entidade de classe de âmbito nacional - como tal legitimada à propositura da ação direta de inconstitucionalidade (CF, art 103, IX) - aquela na qual se congregam associações regionais correspondentes a cada unidade da Federação, a fim de perseguirem, em todo o País, o mesmo objetivo institucional de defesa dos interesses de uma determinada classe. 3. Nesse sentido, altera o Supremo Tribunal sua jurisprudência, de modo a admitir a legitimação das "associações de associações de classe", de âmbito nacional, para a ação direta de inconstitucionalidade"(ADI n. 3.153- AgR, Redator para o acórdão o Ministro Sepúlveda Pertence, Plenário, DJ 9.9.2005).
No voto, o Ministro Sepúlveda Pertence reverteu o entendimento antes formado quanto à legitimidade de associações civis, em especial as não sindicais:
"Presidente, volta ao Plenário um problema cuja solução, na jurisprudência da Corte, jamais, pessoalmente, me convenceu: é a que baniu da legitimação para a ação direta de inconstitucionalidade o que se tem chamado "associação de associações". A meu ver, nada o justifica.
Chegou-se a falar que uma "associação de associações" só poderia defender os interesses das suas associadas, vale dizer, das associações que congrega.
Mas, data vênia, o paralogismo é patente. A entidade é de classe, da classe reunida nas associações estaduais que lhe são filiadas. O seu objetivo é a defesa da mesma categoria social. E o fato de uma determinada categoria se reunir, por mimetismo com a organização federativa do País, em associações correspondentes a cada Estado, e essas associações se reunirem para, por meio de uma entidade nacional, perseguir o mesmo objetivo institucional de defesa de classe, a meu ver, não descaracteriza a entidade de grau superior como o que ela realmente é: uma entidade de classe.
No âmbito sindical, isso é indiscutível. As entidades legitimadas à ação direta são as confederações, que, por definição, não têm como associados pessoas físicas, mas, sim, associações delas.
Não vejo, então, no âmbito das associações civis comuns não sindicais, como fazer a distinção".
Na lição de José Afonso da Silva, compreende-se classe a
"categoria de pessoas ligadas por um vínculo de interesse comum que as levou a congregar-se para defendê-lo. É também esse vínculo de interesse que define a relação de pertinência, ou pertinência temática, como se diz. (...) [A] norma contestada deverá repercutir direta ou indiretamente sobre a atividade profissional ou econômica da classe envolvida" (SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 556).
7. A Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL congrega a classe dos editores, considerados, para fins estatutários, a pessoa natural ou jurídica à qual se atribui o direito exclusivo de reprodução de obra literária, artística ou científica, tendo o dever de publicá-la e divulgá-la (art. 1º, § 3º). A correlação entre o conteúdo da norma impugnada e os objetivos da Autora (art. 8º) preenche o requisito de pertinência temática e a presença de seus associados em nove Estados da Federação comprova sua representação nacional (doc. 4), nos termos da jurisprudência deste Supremo Tribunal.
A alegação de a Autora desempenhar funções de representação de classe profissional não procede.
Como averbado pela Associação Eduardo Banks, não se qualifica como associação sindical de classe profissional, mas associação civil de classe econômica composta pela união de pessoas jurídicas em torno de finalidades específicas. A circunstância de não dispor de "carta sindical expedida pelo Ministério do Trabalho e Emprego" (fl. 15) e de a Associação Eduardo Banks não compor seu quadro associativo apenas expressam a liberdade de associação estabelecida no art. 5º, inc. XX, da Constituição da República, reforçando os traços distintivos das associações sindicais (confederações, federações e sindicatos) em relação às de profissionais.
8. Ao contrário do sugerido pela Associação Eduardo Banks, a Autora é associação nacional representativa de categoria homogênea e bem delineada, classe das pessoas naturais ou jurídicas dedicadas à edição de livros, não se despojando dessa condição por não ser integrada por associações regionais, mas por associados distribuídos em ao menos nove Estados da Federação.
A circunstância de seu quadro associativo ser integrado por pessoas naturais e jurídicas não a desnatura, tampouco revela heterogenia em sua composição. Não é incomum associações civis, especialmente as profissionais, serem compostas pelos servidores e agentes políticos integrantes de determinada categoria profissional e também por associações que os congreguem no plano estadual. Confiram-se os precedentes: Ações Diretas de Inconstitucionalidade ns. 2.797 e 2.860, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, ajuizadas pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP e pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, respectivamente; Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.288, Relator o Ministro Ayres Britto, ajuizada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL; e Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.903, Relator o Ministro Celso de Mello, ajuizada pela Associação Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP.
9. Quanto ao tempo de constituição da Autora, nas Leis ns. 9.868/1999 e 9.882/1999, pelas quais se dispõe sobre as ações de controle concentrado de constitucionalidade ajuizadas neste Supremo Tribunal, não se enuncia o prazo de constituição das associações como elemento substancial ao exame de sua legitimidade ativa.
Não se desconhece ter a Lei n. 7.347/1985 inspirado a construção jurisprudencial deste Supremo Tribunal sobre a necessária pertinência temática entre o conteúdo da norma impugnada e os objetivos institucionais dos legitimados especiais para a propositura da ação. Não se pode, todavia, pretender transportar para as ações de controle concentrado de constitucionalidade, de amplitude pronunciada, a disciplina da ação civil pública, cuja aplicação se dá apenas de forma subsidiária.
Concluo que a restrição alusiva à pré-constituição há pelo menos um ano antes da data de ajuizamento da ação (art. 5º, inc. V, al. a, da Lei n. 7.347/1985) não constitui obstáculo jurídico-processual intransponível ao acesso à jurisdição constitucional, especialmente em se tratando de tema de inegável relevo jurídico ao qual este Supremo Tribunal deverá se dedicar para harmonizar os direitos constitucionais em conflito aparente.
10. No ponto, a Procuradoria-Geral da República asseverou:
"A presente ADI deve ser admitida. No que concerne à legitimidade ativa, a requerente é entidade de âmbito nacional, congregando a categoria econômica homogênea dos editores de livros. Ele comprovou documentalmente ser composta por 35 (trinta e cinco) associações, distribuídas por 9 (nova) Estados da Federação, o que caracteriza o seu caráter nacional, à luz da jurisprudência da Corte. Portanto, enquadra-se perfeitamente à hipótese prevista no art. 103, inc. IX, da Constituição Federal.
É indiscutível, por outro lado, a pertinência temática entre a questão debatida na ação – normas que criam embaraço à atividade editorial, como é o caso dos arts. 20 e 21 do Código Civil, na interpretação ora contestada – e os interesses institucionais da requerente, que congrega os editores de livros.
Os atos normativos impugnados são preceitos de lei federal superveniente à Constituição e o pedido formulado na petição inicial, de declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, é juridicamente possível, encontrando expressa previsão em nosso ordenamento jurídico (art. 28, parágrafo único, da Lei n 9.868/1999). Portanto, estão presente todos os requisitos para o conhecimento da presente ADI".
11. Pelo exposto, supero a arguida preliminar de ilegitimidade ativa, prosseguindo na análise de mérito da presente ação.
Da audiência pública
12. Antes de adentrar o mérito da ação, acentuo os argumentos apresentados em audiência pública, realizada em 21.11.2013, para se ouvir a sociedade sobre o objeto do que posto em exame neste processo.
Os órgãos e entidades admitidos manifestaram-se nos termos seguintes:
a) Ministério Público Federal (Odim Brandão Ferreira): a controvérsia central seria a necessidade de licença prévia de familiares ou de pessoas próximas ou sucessores para a publicação de determinada biografia (fl. 6).
b) Academia Brasileira de Letras (Ana Maria Machado): os dispositivos afrontariam o direito do cidadão à informação (art. 5º, inc. XIV, da Constituição da República), além de atingir a liberdade de manifestação do pensamento, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação. Biografias constituem gênero literário e fonte histórica. Conhecer as vidas dos antepassados, em todas as sociedades, constitui fundamento para a construção do futuro e para a elaboração da identidade cultural (não se pode aceitar que arbítrio pessoal incida sobre a liberdade de manifestação). Seriam abertas portas para a instalação de censura à imprensa (possibilidade de incidir sobre jornais, revistas, televisão e demais meios de comunicação de massa, visto que a redação dos artigos cuja constitucionalidade se questiona em momento algum se refere especificamente a livros).
c) Associação Brasileira dos Constitucionalistas Democratas (Roberto Dias): a democracia, mais do que regime do consenso, é regime do dissenso. No Habeas Data n. 22, Relator o Ministro Celso de Mello, afirma- se, com base no pensamento de Noberto Bobbio, que o nosso modelo político jurídico atual, não autoriza poder que oculta e que se oculta. No julgamento da ADPF n. 130, de 2009, na qual se concluiu que a Lei de Imprensa, produzida durante o regime militar, não foi recepcionada pela Constituição de 1988, este Supremo Tribunal Federal mencionou que, todos têm o direito de dizer o que pensam. Apenas a posteriori se podem adotar medidas judiciais protetivas de direitos da personalidade, não havendo censura boa ou má, pois toda censura é inconstitucional.
d) União Brasileira de Escritores (Alaor Barbosa dos Santos): as normas do Código Civil brasileiro não fazem referência expressa a livros ou biografias. A expressão "divulgação de escritos" não incluiria biografias e livros, mas escritos pessoais. A pena prevista no inc. X do art. 5º da Constituição da República é o direito à indenização do dano material ou moral decorrente da eventual ofensa.
e) Universidade Federal do Rio de Janeiro (José Murilo de Carvalho): a censura prévia de biografias por extensão da escrita da História priva o leitor e o cidadão do acesso ao conhecimento da sociedade. A Constituição da República garante aos que se considerem ofendidos o direito de resposta e de indenização. O Código Penal contempla penas severas para calúnia, difamação e injúria. Para viver do público, cortejando-o e, ao mesmo tempo, privá-lo da liberdade de se manifestar, até mesmo sobre as vidas privadas, servir-se do público, mas não querer servir o público constitui, sem dúvida, incoerência, além de revelar visão tosca da posição que se ocupa na sociedade.
f) Associação Brasileira de Produtoras Independentes de Televisão (Leo Wojdyslawski): a produção audiovisual é baseada, no caso em discussão, em biografias, que sofrem muitos obstáculos pelos interesses variados de parentes e dos próprios biografados:
"Outro fato, que é até mais grave, também veiculado na imprensa recentemente, é o caso da obra que conta a história de Guimarães Rosa, mais precisamente, na passagem de Guimarães Rosa na Embaixada da Alemanha, ocasião em que ele ajudou diversos judeus a fugirem da ameaça nazista. Essa obra foi proibida, não foi proibida judicialmente, mas há manifestação de duas herdeiras no sentido de que não vão autorizar a exibição da obra porque essa passagem da vida de Guimarães Rosa se deu com a segunda esposa dele, ou seja, elas não vão autorizar, porque querem que essa passagem seja excluída da biografia de Guimarães Rosa".
Atualmente, três situações são mais comuns e discutidas no Judiciário: o uso de dados privados e imagens de pessoas para fins informativos pela imprensa, casos em que a jurisprudência tem sido firmemente favorável à livre expressão; a segunda refere-se à publicidade, uso da imagem para fins publicitários, colocando-se a jurisprudência claramente em posição contrária, fazendo prevalecer o direito individual de proteção à imagem; e o terceiro são processos relativos a filmes e livros biográficos.
Nesta ação direta de inconstitucionalidade, a decisão não apenas declararia a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade como também versaria e solucionaria situações do cotidiano das pessoas que estão aqui expondo os problemas, para haver parâmetros e definição das condutas de tribunais, porque não se reexaminam provas sobre o mau uso da imagem das pessoas em recurso extraordinário, vale dizer, a matéria não chega a este Supremo Tribunal em casos concretos (Súmula 279).
g) Representantes da Comissão de Direito Autoral da Ordem dos Advogados – Seccional de São Paulo (Silmara Chinelato): este Supremo Tribunal Federal enfatizou, em várias oportunidades, a relevância do caso concreto, decidindo em favor da liberdade de expressão – como na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.451 e no Caso Ellwanger (Habeas Corpus n. 82.424) –, a demonstrar não haver hierarquia em favor da liberdade de expressão abstratamente considerada. A Corte Europeia dos Direitos do Homem, por exemplo, no Affaire von Hannover, decidiu em favor de Caroline, do Principado de Mônaco, contra a publicação de fotografias da família, porque não se detectou interesse público na divulgação, mas, em outra decisão, concluiu em favor da liberdade de expressão e do direito à informação, porque caracterizado esse interesse, e não mera curiosidade. Ambos os casos foram discutidos à luz dos arts. 8º (direito à vida privada e familiar) e 10º (liberdade de expressão) da Convenção para Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.
h) Instituto Palavra Aberta (Patrícia Blanco): em 23.11.1644, há 369 anos, John Milton, poeta e político, precursor da liberdade de expressão, elaborou vigoroso ensaio, de nome Areopagitica, antecipando-se à defesa de prática que, no futuro, seria dominante nos países democráticos. Tratava-se da liberdade de publicar livros sem a exigência do in premature, em latim, ou seja, "deixem-no ser impresso". Pedia-se antes autorização do imperador ou da autoridade eclesiástica, reconhecendo-se que naquelas páginas nada havia contra o regime ou a crença dominante. O escrito passava antes pela censura, para receber o nada consta, nihil obstat.
i) Newton Lima (Deputado Federan( � o Projeto de Lei n. 393 altera o Código Civil – Lei n. 10.406 –, nos artigos mencionados, que hoje permite a divulgação em casos conhecidos. Fatos conhecidos ou públicos não deveriam ser impedidos de serem divulgados, sob pena de se tolher a liberdade de expressão. No art. 206 da Constituição da República, dispõe- se: "O ensino será ministrado com base na liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber". Juiz de primeira instância sobre o livro do autor Paulo Cézar de Araújo sobre a história de Roberto Carlos. O Juiz decidiu em favor de Roberto Carlos: se o livro não fosse retirado das prateleiras, porque não havia sido autorizado pelo biografado, com fundamento no Código Civil, foi imposta pena de quinhentos mil reais por dia, dois anos de detenção do autor e retirada dos livros das lojas. Glauber Rocha produziu filme sobre Di Cavalcanti, cuja divulgação não foi autorizada pela família, indo ao Judiciário e impedindo a todos de conhecerem algo que poderia elucidar a obra desse grande pintor.
j) Sindicato Interestadual da Indústria Áudio Visual (Cláudio Lins de Vasconcelos): não se estaria a defender a "jusfundamentalidade da fofoca", a "jusfundamentalidade da mentira" ou da propaganda subliminar. Para esses e outros abusos, há muitos remédios: segunda versão dos fatos, por exemplo, o direito de resposta, a busca de indenização financeira na Justiça ou a busca de reparação na esfera criminal. Mas são todas medidas a posteriori, que dependem da consumação do ato ilícito. Que sejam severas, mas jamais prévias.
k) Ronaldo Caiado (Deputado Federan( � qualquer pessoa pode dizer o que, de quem, no lugar e no momento que quiser. Na Constituição da República, exige-se apenas a identificação do autor, para permitir-se que o ofendido se defenda de eventuais ofensas à sua honra, imagem ou boa fama, e para inibir o uso irresponsável dessa prerrogativa. A pessoa que se sentir atingida em sua honra, boa fama ou respeitabilidade poderá requerer, pelo procedimento previsto na Lei n. 9.099, de 26.9.1995, a exclusão de trecho ofensivo em reprodução futura da obra, sem prejuízo da indenização e da ação penal pertinentes, sujeitas ao procedimento próprio. A proposta é exatamente a ampla liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, rito célere para se demonstrar se a agressão ou frase atribuída ao biografado procede ou não. A exclusão será exatamente da frase ou das frases. Não se está pedindo o recolhimento de livros, mas que seja dada ao biografado, agredido, a condição de mostrar aos filhos, à família, à sociedade brasileira, que aquilo não é verdade em relação à sua biografia, ao seu passado e à sua vida.
n( �/span> Marcos Rogério (Deputado Federan( � cita decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre jogador de futebol:
"Não se limitou o autor a relatar o futebol do jogador, a habilidade que o tornou um mito mundial, suas proezas nos gramados e vitórias nos campeonatos; infelizmente foi muito além, invadindo a intimidade do cidadão [fulano de tal] e apequenando a sua imagem. Se um quadro vale por mil palavras, como diz o ditado chinês, a capa do livro em exame é um longo discurso contra a imagem do [jogador]. Em lugar do atleta chutando a bola em gol ou dando os seus dribles que levavam as galeras ao delírio, mostra um homem deprimido e desolado, quase a figura de um farrapo humano. Pior que tudo, a imagem da capa é retratada em páginas de dolorosa impiedade, que aos poucos vai despindo o mito, transformando-o em profissional derrotado, pai irresponsável, marido infiel e ébrio inveterado. Ao final do livro, [o jogador] não passa de um grande logro, autêntico exemplo de fracasso humano. Se tal não bastasse, atenta ainda o livro agressivamente contra a intimidade do [jogador], trazendo a público relato de fatos da sua mais restrita privacidade, desde a sua meninice até a sua morte. Seus dotes sexuais, seus vícios ocultos, seus casos amorosos, seus fracassos na cama, tudo é investigado com microscópio e depois ampliado e divulgado sem retoques. Nem mesmo a intimidade de sua vida familiar foi poupada. Seria de mau gosto reproduzir aqui trechos de alguns capítulos do livro; seria grosseiro e deprimente, mas se alguém quiser conferir verifique fls [tais]." (trecho de decisão do eminente julgador)". Veja-se aqui um importante esclarecimento, dados da vida privada e íntima de um herói nacional colocado a público. Com que intuito? Para informar a população? A respeito de quê? Qual o interesse público envolvido aqui? O que pretendeu o biógrafo com a publicização da intimidade do jogador? Informar a sociedade de uma questão de interesse público ou explorar a imagem de uma pessoa pública para auferir lucros a partir da venda desta biografia? Não se está a discutir matéria jornalística ou escrito historiográfico, mas biografias, escritos comerciais para a exploração da imagem de uma pessoa com finalidade de lucro. Não basta indenizar a posteriori, sendo necessário instrumentalizar o ofendido para que ele possa, se assim achar necessário, retirar de circulação a publicação que lhe atinge a honra e a imagem".
m) Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Sônia da Cruz Machado de Moraes): A vida de figuras públicas é parte da historiografia social. Contá-la é direito de todos, independente de censura ou licença, como assegura a Constituição.
n) Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (Ivar Alberto Martins Harmann): menciona o caso de adolescente de 17 anos no Piauí, no qual se mostrava vídeo de momentos íntimos; e outro de adolescente do Rio Grande do Sul, no qual se divulgou foto. O vazamento dessas informações resultou no infeliz suicídio dos adolescentes. Isso está na pauta legislativa e na pauta do Direito em outros países. O Estado da Califórnia acaba de legislar sobre isso e criminalizar a divulgação de material com momentos íntimos de mulheres. Cogita-se de legislar sobre isso também no Brasil. Este Supremo Tribunal Federal, nos últimos anos, decidiu, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.274, que, mesmo quando em jogo bem jurídico considerado de importância pelo legislador que poderia tornar crime aquilo que venha a lhe trazer risco, prevalece a liberdade de expressão Nas Reclamações ns. 11.292, 15.243 e 16.074, Ministros do Supremo Tribunal Federal, em decisões monocráticas, apontaram a impossibilidade de se coibir a manifestação política que venha, eventualmente, a constituir crítica ou ridicularização de pessoa pública, pela prevalência da liberdade de expressão. Não se está cogitando nada mais nada menos do que do critério estabelecido pela Suprema Corte norte-americana, em 1964, no caso New York Times x Sulivan. É a necessidade de constatação de duas coisas, não só o erro em relação ao que se relata, mas também à má-fé na produção e no relato desse erro. Ou seja, não basta que esteja errado, porque, em pesquisa acadêmica, como sabido, não existe verdade absoluta.
o) Ministério da Cultura (Renato de Andrade Lessa): a fixação, no século XVII, a partir da obra de pensadores tais como John Locke, de direitos subjetivos, ou seja, direitos decorrem não de circunstâncias particulares, mas do modo próprio de conceber a natureza humana como constituída pelo direito natural à liberdade, incluído nesse termo tanto vontades de expressão como desejos de proteção. O filósofo liberal contemporâneo Isaiah Berlin declarou não haver garantia de que os bons valores e princípios sejam compatíveis. Há que se trabalhar com criatividade para que as orientações normativas decantem na experiência social. O que se teme na biografia? Mais que a revelação de aspectos factuais desairosos ou de sua vulnerabilidade a profissionais da mentira, há que se reconhecer que o que mais amedronta são os efeitos da interpretação.
p) Associação Eduardo Banks (Ralph Anzolin Lichote): A ANEL teria sido criada há menos de dois meses, praticamente para ajuizar esta ação direta. A presente ação direta de inconstitucionalidade deveria ser arquivada por absoluta ilegitimidade da entidade proponente: "todos nós, na nossa juventude, participamos de festa de calouros na faculdade, participamos de alguma coisa, e às vezes a gente escorrega". A vida não pode ser avaliada com base no passado, mas pelas obras, pela continuidade.
q) Conselho de Comunicação Social do Congresso Nacional (Ronaldo Lemos): o posicionamento unânime do Conselho de Comunicação Social é a favor do direito de se fazerem biografias sem a necessidade de obtenção de autorização prévia. Mais do que isso, o Conselho recomendou a aprovação do Projeto de Lei n. 39.311, do Deputado Newton Lima. Nos EUA, John Kennedy, ex-presidente dos Estados Unidos, que morreu tragicamente, tem mais de oitenta biografias; o Papa João Paulo II tem mais de cem biografias; Evita Perón, mais de vinte biografias; Steve Jobs, para além das biografias mais populares e conhecidas, foi sujeito de outras quinze biografias, algumas delas feitas na forma de documentários, outras diversões cinematográficas e até mesmo em estória em quadrinhos. O art. 13 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos é explícito em vedar a censura prévia:
"Art. 13.
(...) 1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha".
No inciso II do art. 13º da Convenção, consta:
"Art. 13.
(...) 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:
a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas".
r) Associação Paulista de Imprensa (Sérgio Redó): defende que agente público não tem intimidade como se tem quando se cogita de anônimo, porque este não quer envolvimento, não quer qualquer situação que o ponha em litígio, que faça com que a sua imagem seja discutida. O filósofo francês Voltaire, no mais eloquente dos discursos contra os seus piores detratores, dizia sempre: "Haverei de lutar incansavelmente para que, mesmo não concordando com aquilo que você pronuncia, você tenha sempre o direito de falar".
s) João Ribeiro de Moraes (advogado): assevera que as pessoas retratada nas biografias, que tinham o mais legítimo interesse no que vai ser decidido aqui, não foram ouvidas, tiveram suas defesas cerceadas.
t) Ordem dos Advogados do Brasil (Marcus Vinicius Furtado Coelho): assinala não podermos tornar o direito constitucional de crítica em algo passível de ser responsabilizado civil ou criminalmente. Contraria postulado da Ordem dos Advogados do Brasil qualquer proposta de censura, pois o que a Ordem propõe é mais liberdade de expressão e, no caso concreto, de publicação de biografias, independente de consentimento. Questões negativas sobre ídolos poderiam influir positivamente no País, para demonstrar que os ídolos são seres humanos e cometem equívocos, a serem evitados pelas pessoas. Esconder erros ou equívocos das vidas dos ídolos não colabora para o futuro da Nação. O exemplo, mesmo o negativo, pode ser utilizado para educar futuras gerações a não cometê-los.
13. As manifestações havidas na audiência pública foram encaminhadas aos Ministros, para conhecimento da íntegra das opiniões apresentadas, constituindo fonte dos dados a serem considerados sobre o papel das biografias e a sua condição de referência sócio-histórica, sem menoscabo da defesa ao direito à vida e à intimidade dos biografados.
Parâmetros normativos constitucionais e regras civis de interpretação demandada
14. Para delimitar a questão posta e os fundamentos nos quais se há de buscar a conclusão deste julgamento, transcrevo as normas constitucionais paradigmas e aquelas objeto específico do questionamento formulado e a ser respondido.
Nos incs. IV, V, IX, X e XIV do art. 5º e nos parágrafos 1º e 2º do art. 220 da Constituição da República, dispõe-se:
"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
IV- é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V- é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
(...)
IX- é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
XIV- é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional".
"Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística".
Nas normas do Código Civil, para as quais se pede interpretação conforme à Constituição da República, determina-se:
"Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma".
15. O objeto do questionamento, formulado com base nesses princípios constitucionais e na vigência das regras civis amplamente aproveitadas judicialmente como fundamento de decisões proibitivas de biografias, tem como núcleo a indagação judicial a seguir, para a qual se pede resposta na presente ação:
a) sendo os princípios constitucionais de centralidade fundante no sistema jurídico brasileiro vigente e determinantes da interpretação das normas infraconstitucionais, incluídas as que formam o acervo normativo civil;
b) extraindo-se, em primeira leitura, que as regras civis configurariam arcabouço de proteção de alguns direitos fundamentais constitucionalmente tutelados (principalmente o direito à privacidade), formulando regras de conteúdo proibitivo em relação de horizontalidade (dimensão horizontal dos direitos fundamentais aplicados e a serem respeitados nas relações civis);
c) a proibição genérica das regras civis não excepcionando obras biográficas na referência normativa feita à imagem da pessoa ou a seus familiares;
Poder-se-ia concluir serem inconstitucionais as regras do Código Civil por proibirem divulgação de escritos, transmissão da palavra, publicação, exposição ou utilização da imagem de determinada pessoa sem exceção a obras biográficas, exorbitando de conteúdo que pode cercear ou esvaziar a liberdade constitucional de outrem?
Ou, diversamente, haveria de se concluir serem constitucionais aquelas regras exatamente por desdobrarem aqueles princípios com realce a direitos individuais, sem conflito substantivo, pelo que poderia ser ultrapassado, mantendo-se o espaço de decisão particular do interessado?
Ou, ainda, o conflito aparente de normas pode ser desfeito pela harmonização interna dos princípios e preceitos constitucionais, segundo os quais haverá de ser interpretada a legislação infraconstitucional, não se descurando a interpretação do texto considerado o contexto, sem o que a Constituição não seria mais que pretexto anulador de avanços sociais e jurídicos?
16. O controle constitucional exercido na atualidade atenta à máxima efetividade das norma fundamentais e ao aproveitamento compatível do direito infraconstitucional com as diretrizes principiológicas do sistema, por técnica de interpretação que garanta a eficácia jurídica e social do ordenamento.
Como leciona Paulo Bonavides:
"em rigor não se trata de um princípio de interpretação da Constituição, mas de um princípio de interpretação da lei ordinária de acordo com a Constituição. (...) Uma norma pode admitir várias interpretações. Destas, algumas conduzem ao reconhecimento de inconstitucionalidade, outras, porém, consentem tomá-la por compatível com a Constituição. O intérprete, adotando o método ora proposto, há de inclinar-se por esta última saída ou via de solução. A norma, interpretada "Conforme a Constituição", será portanto considerada constitucional. Evita-se por esse caminho a anulação da lei em razão de normas dúbias nela contidas, desde naturalmente que haja a possibilidade de compatibilizá-las com a Constituição. (...) Assinala a jurisprudência constitucional de Karlsruhe, ao utilizar o presente método, que o fim da lei também não deve ser desprezado, de sorte que da intenção do legislador há de conservar-se o máximo possível de acordo com a Constituição.
Urge porém que o intérprete na adoção desse método não vá tão longe que chegue a "falsear ou perder de vista num ponto essencial o fim contemplado pelo legislador".
Como se vê, esse meio de interpretação contém um princípio conservador da norma, uma determinação de fazê-la sempre subsistente, de não eliminá-la com facilidade do seio da ordem jurídica, explorando ao máximo e na mais ampla latitude todas as possibilidades de sua manutenção. Busca-se desse modo preservar a autoridade do comando normativo, fazendo o método ser expressão do "favor legis" ou do "favor actus", ou seja, um instrumento de segurança jurídica contra as declarações precipitadas de invalidade da norma. (...) Tocante ao lado positivo do método, é de ressaltar a fidelidade que ele parece inculcar quanto à preservação do princípio da separação de poderes. Faz com que juízes e tribunais percebam que sua missão não é desautorizar o legislativo ou nele imiscuir-se por via de sentenças e acordãos, mas tão-somente controlá-lo, controle aparentemente mais fácil de exercitar-se quando, relutante diante da tarefa de declarar a nulidade de leis ou atos normativos, os órgãos judiciais se inclinam de preferência para a obra de aproveitamento máximo dos conteúdos normativos, ao reconhecer-lhes sempre que possível a respectiva validade. (...)
Em suma, o método é relevante para o controle da constitucionalidade das leis e seu emprego dentro de razoáveis limites representa, em face dos demais instrumentos interpretativos, uma das mais seguras alternativas de que pode dispor o aparelho judicial para evitar a declaração de nulidade das leis. Por via de semelhante princípio, adotado sem excesso, o ato interpretativo não desprestigia a função legislativa nem tampouco enfraquece a magistratura nos poderes de conhecer e interpretar a lei pelo ângulo de sua constitucionalidade. (BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 517- 519/524).
I. Liberdade de expressão, direito à intimidade e direito à privacidade
17. A análise do que posto em exame nesta ação refere-se ao conteúdo e à extensão do exercício do direito constitucional à expressão livre do pensamento, da atividade intelectual, artística e de comunicação dos biógrafos, editores e entidades públicas e privadas veiculadoras de obras biográficas, garantindo-se a liberdade de informar e de ser informado, de um lado, e, do outro, o direito à inviolabilidade da intimidade e da privacidade dos biografados, de seus familiares e de pessoas que com eles conviveram.
Essas liberdades constitucionalmente asseguradas informam e conduzem a interpretação legítima das regras infraconstitucionais. O objeto da presente ação é exatamente a interpretação de normas do Código Civil relativas à divulgação de escritos, transmissão da palavra, produção, publicação, exposição ou utilização da imagem de pessoa biografada, distinguindo-se obras biográficas de outros conteúdos que podem vir a ser divulgados, transmitidos, produzidos, publicados ou expostos (arts. 20 e 21 do Código Civil) e que, submetidos às normas de proteção daquele diploma legal, poderiam manter-se no espaço mais alargado atualmente adotado nas regras jurídicas vigentes e mesmo na jurisprudência predominante sobre a matéria.
II. Liberdade de expressão e direito à liberdade de expressão
18. Há de se buscar definir, no direito contemporâneo, o direito de liberdade de expressão, iniciando-se por distingui-lo da liberdade de expressão, conceito mais amplo e objeto de diversos ramos do conhecimento, como a filosofia, a literatura, a religião e a linguística, entre outros.
Renato Alessi ensina ser importante afimar-se a diferença entre liberdade e direito de liberdade, pelas consequências advindas dessa distinção:
"La libertà individuale può essere definita come la posicione del singolo individuo nella quale esso ha la possibilità di svolgere la sua attività naurale, determoninandose secondo la propria volontà, per il raggiungimento dei fini ed il soddisfacimento degli interesse che egli può avere come uomo, vale a dire indipendenemente dalla sua qualità di appartenente allo Stato, et non siano positivamente vietati dal diritto.
Comme appare da tale definizione, la nozione di libertà individuale è concetto essenzialmene metagiuridico; la nozione di libertà entra invece nel campo giuridico, come diritto di libertà, sotto il profilo dela tutela che l´ordinamento giuridico accorda all´individuo nello svolgimento dele predette attività, al fine di garantirlo da attentati da parte di ogni altro soggetto, cui impone genericamente il dovere negativo di astenersi dal turbar ela sfera dela libertà individuale: dovere negativo, dovere, cioè, di astenersi tanto dal frapporre illegittimi ostacoli al libero svolgimento dele attività dell ´individuo quanto dall´imporre positive costrizioni dirette ala posizione in essere di atti positivi. Conteneto del diritto di libertà, pertanto, è soltanto la mera astensione da parte di ogni altro soggetto, dal turbare illegittimamente vale a dire in modo che non sai expressamente consentito dalla legge, la sfera di libertà individuale; non già, adunque, le singole possibili attività che l´individuo avvalendosi di detta sfera,, può esplicare; contenuto, pertanto, essencialmente negativo, quanto meno per quanto concerne i rapporti com i terzi e quindi relativamente a quello che è il lato esterno formale, visibile, del diritto" (ALLESSI, Renato. Principi di diritto amministrativo. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1976, v. II, p. 587).
De Pimenta Bueno vem a lição segundo a qual
"a liberdade é o próprio homem, porque é a sua vida moral, é a sua propriedade pessoal a mais preciosa, o domínio de si próprio, a base de todo o seu desenvolvimento e perfeição, a condição essencial do gozo de sua inteligência e vontade, o meio de perfazer seus destinos. É o primeiro dos direitos, e salvaguarda de todos os outros direitos, que constituem o ser, a igualdade, a propriedade, a segurança e a dignidade humana. (...) O bem ser do homem é tanto maior quanto maior é a sua liberdade, quanto menor é o sacrifício ou restrições dela" (BUENO, José Antonio Pimenta. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. Ministério da Justiça e Negócios Interiores, 1958, p. 382).
O direito à liberdade de expressão – transcendendo o cogitar solitário e mudo e permitindo a exposição do pensamento – permeia a história da humanidade, pela circunstância de a comunicação ser própria das relações entre as pessoas e por ela não apenas se diz do bem, mas também se critica, denuncia-se, conta-se e reconta-se o que há de vida e da vida, da pessoa e do outro, fazendo-se a arte, exprimindo-se o humano do bem e do mal, da sombra e do claro. Forma-se pela expressão do que é, do que se pensa ser, do que se quer seja, do que foi e do que se pensa possa ser a história humana transmitida. No princípio é o Verbo. Encarna- se a vida no Verbo. E o verbo faz-se carne e torna-se vida.
O ser faz-se verbo.
Cada tempo tem sua história. Cada história, sua narrativa. Cada narrativa constrói e reconstrói-se pelo relato do que foi não apenas uma pessoa, mas a comunidade. Assim se tem a expressão histórica do que pôde e o que não pôde ser, do que foi, para imaginar-se o que poderia ter sido e, em especial, o que poderá ser.
História faz-se pelo que se conta. Silêncio também é história. Mas apenas quando relatada e de alguma forma dada a conhecimento de outrem. Pela força de construção e desconstrução de relações sociais, políticas e econômicas, a expressão como direito é fruto de lutas permanentes desde os primórdios da história.
Se expressão é palavra, como enfatizado na regra de Direito Civil, não se deslembre Cecília Meireles: "ai palavras, ai palavras; que estranha potência a vossa... A liberdade das almas, ai! com letras se elabora... e dos venenos humanos sois a minha fina retorta: frágil, frágil como o vidro, e mais que o aço poderosa! Reis, impérios, povos, tempos, pelo vosso impulso rodam...".
Direito à liberdade de expressão é outra forma de afirmar-se a liberdade do pensar e expor o pensado ou o sentido, acolhida em todos os sistemas constitucionais democráticos. A atualidade apresenta desafios novos quanto ao exercício desse direito. A multiplicidade dos meios de transmissão da palavra e de qualquer forma de expressão sobre o outro amplia as definições tradicionalmente cogitadas nos ordenamentos jurídicos e impõe novas formas de pensar o direito de expressar o pensamento sem o esvaziamento de outros direitos, como o da intimidade e da privacidade. Em toda a história da humanidade, entretanto, o fio condutor de lutas de direitos fundamentais é exatamente a liberdade de expressão.
Quem, por direito, não é senhor do seu dizer não se pode dizer senhor de qualquer direito.
J. J. Gomes Canotilho adverte que
"A liberdade de expressão permite assegurar a continuidade do debate intelectual e do confronto de opiniões, num compromisso crítico permanente. Com essa qualidade, ela integra o sistema constitucional de direitos fundamentais, deduzindo-se do valor da dignidade da pessoa humana e dos princípios gerais de liberdade e igualdade, juntamente com a inerente exigência de proteção jurídica. A liberdade de expressão em sentido amplo é um direito multifuncional, que se desdobra num cluster de direitos comunicativos fundamentais (Kommunikationsgrudrechte) que dele decorrem naturalmente, como seja, por exemplo, a liberdade de expressão stricto sensu, de informação, de investigação acadêmica, de criação artística, de edição, de jornalismo, de imprensa, de radiodifusão, de programação, de comunicação individual, de telecomunicação e comunicação em rede. As liberdades comunicativas encontram-se ainda associadas a outras liberdades, como a liberdade de profissão, a livre iniciativa econômica, de prestação de serviços e o direito de propriedade" (CANOTILHO, J. J. Gomes; MACHADO, Jónatas E. M. "Constituição e código civil brasileiro: âmbito de proteção de biografias não autorizadas". In JÚNIOR, Antônio Pereira Gaio; SANTOS, Márcio Gil Tostes. Constituição Brasileira de 1988. Reflexões em comemoração ao seu 25º aniversário. Curitiba: Juruá, 2014, p. 132).
19. Tal a força do direito à liberdade de pensamento, desdobrada em sua formulação normativa pelo enunciado da garantia da livre expressão, que, no fundamento da concepção moderna do Estado Democrático de Direito, encareceu-se como princípio magno.
Desde a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, fruto da Revolução Francesa de 1789, a garantia de exercício das liberdades, realce dado à livre comunicação do pensamento e de opinião, foi erigido em ponto nuclear do sistema, tendo-se no art. XI:
"La libre communication des pensées et des opinions est un des droits les plus précieux de l'Homme: tout Citoyen peut donc parler, écrire, imprimer librement, sauf à répondre de l'abus de cette liberté, dans les cas déterminés par la Loi".
Na sequência daquela conquista fundamental, os documentos de direitos humanos reiteraram aquela liberdade essencial. A Declaração Universal dos Diretos Humanos da ONU, de 1948, dispôs no art. 19:
"Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão".
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos da ONU, internalizado no Brasil em 1992, preceitua no art. 19:
"1. ninguém poderá ser molestado por suas opiniões.
2. Toda pessoa terá direito à liberdade de expressão; esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independentemente de considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha.
3. O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Consequentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para:
a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;
b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas".
No espaço do direito internacional regional, essa garantia de liberdade está prevista no art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, vigorando internacionalmente desde 18.7.1978, e ratificada pelo Brasil em 25.9.1992, internalizada pelo decreto da Presidência da República do Brasil de 6.11.1992:
"Artigo 13 - Liberdade de pensamento e de expressão
1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.
2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar:
a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias e meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de idéias e opiniões.
4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.
5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência".
A Convenção Europeia de Direitos Humanos, adotada em 1953 pelo Conselho da Europa, traz no art. 10º:
"Art. 10º - Liberdade de expressão
1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.
2. O exercício destas liberdades, porquanto implica deveres e responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades, condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam providências necessárias, numa sociedade democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a proteção da saúde ou da moral, a proteção da honra ou dos direitos de outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais, ou para garantir".
A Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos, de 1986, prevê, no art. 9º:
"1. Toda a pessoa tem direito à informação.
2. Toda a pessoa tem direito de exprimir e de difundir as suas opiniões no quadro das leis e dos regulamentos".
Na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2000, consta no art. 11:
"Liberdade de expressão e de informação
1. Todas as pessoas têm direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras.
2. São respeitados a liberdade e o pluralismo dos meios de comunicação social".
20. A elaboração desses e de outros documentos normativos marca historicamente a estruturação e a dinâmica da disciplina jurídica Internacional dos Direitos Humanos, que, a par de explicitar o rol de direitos fundamentais das pessoas, impõe, paralelamente, obrigações aos membros da comunidade internacional para assegurá-los, não se podendo deixar de anotar serem eles de cumprimento incontornável pelos entes estatais e pelos particulares. Direitos fundamentais são de titularidade de toda pessoa, como são de responsabilidade de todos, de cumprimento obrigatório em relação ao outro, independente de sua condição e natureza.
Ingo Sarlet assevera que
"É amplamente reconhecido que a liberdade de manifestação do pensamento e a liberdade de expressão, compreendidas aqui em conjunto, constituem um dos direitos fundamentais mais preciosos e correspondem a uma das mais antigas exigências humanas, de tal sorte que integram os catálogos constitucionais desde a primeira fase do constitucionalismo moderno. Assim como a liberdade de expressão e manifestação do pensamento encontra um dos seus principais fundamentos (e objetivos) na dignidade da pessoa humana, naquilo que diz respeito à autonomia e ao livre desenvolvimento da personalidade do indivíduo, ela também guarda relação, numa dimensão social e política, com as condições e a garantia da democracia e do pluralismo político, assegurando uma espécie de livre mercado das ideias, assumindo, neste sentido, a qualidade de um direito político e revelando ter também uma dimensão nitidamente transindividual, já que a liberdade de expressão e os seus respectivos limites operam essencialmente na esfera das relações de comunicação e da vida social. (...)
Já pelas razões articuladas - para que a liberdade de expressão possa cumprir com sua função numa ordem democrática e plural é de se sublinhar que, quanto ao seu âmbito de proteção, a liberdade de expressão abarca um conjunto diferenciado de situações, cobrindo, em princípio, uma série de liberdades (faculdades) de conteúdo espiritual, incluindo expressões não verbais, como é o caso da expressão musical, da comunicação pelas artes plásticas, entre outras. A liberdade de expressão consiste, mais precisamente, na liberdade de exprimir opiniões, portanto, juízos de valor a respeito de fatos, ideias, portanto, juízos de valor sobre opiniões de terceiros etc. Assim, é a liberdade de opinião que se encontra na base de todas as modalidades da liberdade de expressão, de modo que o conceito de opinião (que, na linguagem da Constituição Federal, acabou sendo equiparado ao de pensamento) há de ser compreendido em sentido amplo, de forma inclusiva, abarcando também, apenas para deixar mais claro, manifestações a respeito de fatos e não apenas juízos de valor. Importa acrescentar que, além da proteção do conteúdo, ou seja, do objeto da expressão, também estão protegidos os meios de expressão, cuidando-se, em qualquer caso, de uma noção aberta, portanto inclusiva de novas modalidades, como do caso da comunicação eletrônica.
Para assegurar a sua máxima proteção e sua posição de destaque no âmbito das liberdades fundamentais, o âmbito de proteção da liberdade de expressão deve ser interpretado como o mais extenso possível, englobando tanto a manifestação de opiniões, quanto de ideias, pontos de vista, convicções, críticas, juízos de valor sobre qualquer matéria ou assunto e mesmo proposições a respeito de fatos. Neste sentido, em princípio todas: as formas de manifestação, desde que não violentas, estão protegidas pela liberdade de expressão, incluindo "gestos, sinais, movimentos, mensagens orais e escritas, representações teatrais, sons, imagens, bem corno as manifestações veiculadas pelos modernos meios de comunicação, como as mensagens de páginas de relacionamento, blogs etc. (...)
Dada a sua relevância para a democracia e o pluralismo político, a liberdade de expressão - pelo menos de acordo com significativa doutrina - assume uma espécie de posição preferencial (preferred position), quando da resolução de conflitos com outros princípios constitucionais e direitos fundamentais, muito embora se afirme que no Brasil a teoria da posição preferencial - em que pese consagrada pelo STF quando do julgamento da ADPF 130 — tem sido, em geral, aplicada de forma tímida. De qualquer modo, não se trata de atribuir à liberdade de expressão (em qualquer uma de suas manifestações particulares) a condição de direito absolutamente imune a qualquer limite e restrição, nem de estabelecer uma espécie de hierarquia prévia entre as normas constitucionais. Assim, quando se fala de uma posição preferencial - pelo menos no sentido em que aqui se admite tal condição -, tem-se a finalidade de reconhecer à liberdade de expressão uma posição de vantagem no caso de conflitos com outros bens fundamentais no que diz com a hierarquização das posições conflitantes no caso concreto, de tal sorte que também nessa esfera - da solução para eventual conflito entre a liberdade de expressão e outros bens fundamentais individuais e coletivos - não há como deixar de considerar as exigências da proporcionalidade e de outros critérios aplicáveis a tais situações" (SARLET, Ingo Wolfgang. "Direitos Fundamentais em espécie". In SARLET, Ingo Wolfgang, MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 446/456-457-458/460-461).
21. No direito brasileiro, a liberdade de pensamento e de expressão foi, desde a primeira Constituição – a Carta de Lei de 25 de março de 1824, outorgada como Constituição do Império –, contemplada como direito fundamental, de maneira mais ampla ou mais restrita.
A história brasileira não foi livre de intempéries. De arroubos de poder e arroubos nas Constituições, nem sempre se pôde expressar o pensamento livremente, como previsto nas normas. A liberdade foi desafio e conquista incessante no Brasil como em qualquer parte do mundo. É um registro, não uma queixa. Liberdade não é direito acabado. É peleja sem fim. No Brasil, ainda se está a construir o processo de libertação, mas então se cuida de processo sociopolítico, respeitante à história da coletividade.
22. Vale mencionar os dispositivos constitucionais que se sucederam, nos ordenamentos jurídicos que vigoraram no Brasil, no igual significado de se reconhecer como fundamental o direito à liberdade de pensamento e de expressão do pensamento. Interprete-se fundamental no sentido de fundante do esquadro constitucional definidor do regime político do Estado, fundamento das instituições e relações estatais e cidadãs e do acervo garantido de direitos primários e essenciais das pessoas.
A Carta Imperial (Carta de Lei de 25.3.1824) dispunha no art. 179:
"Art. 179 – (...)
IV. Todos podem communicar os seus pensamentos, por palavras, escriptos, e publical-os pela Imprensa, sem dependencia de censura; com tanto que hajam de responder pelos abusos, que commetterem no exercicio deste Direito, nos casos, e pela fórma, que a Lei determinar".
A Constituição de 24.2.1891, primeira promulgada na República então recém instalada, preceituava:
"Art. 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes:
(...)
§ 12. Em qualquer assumpto é livre a manifestação do pensamento pela imprensa ou pela tribuna, sem dependencia de censura, respondendo cada um pelos abusos que commetter, nos casos e pela fórma que a lei determinar. Não é permittido o anonymato (Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926)".
A Constituição de 16.6.1934 estabelecia:
"Art. 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
9) Em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento, sem dependência de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido anonimato. É segurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos independe de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda, de guerra ou de processos violentos, para subverter a ordem política ou social."
A Carta outorgada em 10.11.1937, despojada de legitimidade pelas suas origens e de efetividade pelos fins dos detentores do poder de então, ainda que feita mais para não se cumprir – no que se cumpriu –, não deixou de formalizar aquele direito fundamental:
"Art. 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
15) todo cidadão tem o direito de manifestar o seu pensamento, oralmente, ou por escrito, impresso ou por imagens, mediante as condições e nos limites prescritos em lei".
No art. 141 da Constituição do Brasil de 18.9.1946, preceituava-se:
"Art. 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
§ 5º - É livre a manifestação do pensamento, sem que dependa de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um, nos casos e na forma que a lei preceituar pelos abusos que cometer. Não é permitido o anonimato. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos não dependerá de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe".
Na vigência desta Constituição, sobreveio o Ato Institucional n. 2, de 1966, pelo qual alterado o § 5º do art. 141 pelo art. 12:
"Art. 12 - A última alínea do §5º do 141 da Constituição passa a vigorar com a seguinte redação:
Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de subversão, da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe."
A Carta de 24.1.1967 estampava, no § 8º do art. 150:
"Art. 150 - (...)
§ 8º - É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica e a prestação de informação sem sujeição à censura, salvo quanto a espetáculos de diversões públicas, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos independe de licença da autoridade. Não será, porém, tolerada a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe".
A Emenda n. 1, de 17.10.1969, tecnicamente nova Carta a substituir a anterior, conquanto nem nome de Constituição ostentasse, passou a vigorar como texto normativo básico do Brasil. Pode-se afirmar cuidar-se de Constituição envergonhada, que não ousava afirmar-se como tal.
Eis o texto:
"Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos têrmos seguintes:
(...)
§ 8º É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica, bem como a prestação de informação independentemente de censura, salvo quanto a diversões e espetáculos públicos, respondendo cada um, nos têrmos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos não depende de licença da autoridade. Não serão, porém, toleradas a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de religião, de raça ou de classe, e as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes".
23. Na vigência daquele texto, Constituição meramente formal, no dizer de alguns constitucionalistas, sobreveio, entre outros provimentos de inegável agressão àquele direito fundamental, o Ato Institucional n. 5, de 13.12.1968, que se sobrepunha ao texto outorgado como Emenda n. 1, de 1969, tida como Lei de Fundamentos imposta ao povo brasileiro. Estabelecendo a prevalência da Carta de 1967 deitava por terra a Emenda n. 1, de 1969. Constituição põe-se e impõe-se como Lei Fundamental por ser fundamento de validade das demais componentes do ordenamento jurídico estatal. Outro apresente-se a sustentá-la e ter-lhe-á sido retirado o autofundamento, extraído de sua condição e natureza, a legitimá-la na posição de centralidade magna no sistema jurídico.
Tal o que se deu com os Atos Institucionais editados nos períodos ditatoriais no Brasil: desconstitucionalizaram o Estado sem aviso, amordaçaram a voz da sociedade. Pior: trancafiaram direitos fundamentais cujo embasamento não se põe no Estado constitucional para o homem, mas, por ser deles titular o homem, positivam-se eles.
No Ato Institucional n. 5, de 13.12.1968, avisava-se, na epígrafe e no art. 1º, estar-se a manter a Carta de 1967. Configurava-se ato autorizativo da prevalência formal de normas que não tinham supedâneo na força do direito; impunha-se, às expressas, o direito da força.
Dispunha-se no art. 5º:
"Art. 5º - A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em:
(...)
III - proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política".
24. Em 29.5.1970, foi publicado o Decreto Legislativo n. 34, pelo qual aprovado o Decreto-Lei n. 1.077, de 1970, que tratava da "execução do artigo 153, § 8º, parte final, da Constituição da República Federativa do Brasil".
Para servir de alerta sobre a interpretação constitucional como a que se pede na presente ação quanto aos riscos para a experiência democrática das tergiversações ou concessões em matéria de direitos fundamentais, como o referente à liberdade de expressão, sem o qual os demais direitos são permeáveis às injunções momentâneas do poder, transcrevo o Decreto-Lei n. 1.077:
"DECRETO-LEI Nº 1.077, DE 26 DE JANEIRO DE 1970
Dispõe sobre a execução do artigo 153, § 8º, parte final, da Constituição da República Federativa do Brasil.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, usando da atribuição que lhe confere o artigo 55, inciso I da Constituição e
CONSIDERANDO que a Constituição da República, no artigo 153, § 8º dispõe que não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos costumes;
CONSIDERANDO que essa norma visa a proteger a instituição da família, preserva-lhe os valôres éticos e assegurar a formação sadia e digna da mocidade;
CONSIDERANDO, todavia, que algumas revistas fazem publicações obscenas e canais de televisão executam programas contrários à moral e aos bons costumes;
CONSIDERANDO que se tem generalizado a divulgação de livros que ofendem frontalmente à moral comum;
CONSIDERANDO que tais publicações e exteriorizações estimulam a licença, insinuam o amor livre e ameaçam destruir os valores morais da sociedade Brasileira;
CONSIDERANDO que o emprêgo dêsses meios de comunicação obedece a um plano subversivo, que põe em risco a segurança nacional.
DECRETA:
Art. 1º Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação.
Art. 2º Caberá ao Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal verificar, quando julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente da proibição enunciada no artigo anterior.
Parágrafo único. O Ministro da Justiça fixará, por meio de portaria, o modo e a forma da verificação prevista neste artigo.
Art. 3º Verificada a existência de matéria ofensiva à moral e aos bons costumes, o Ministro da Justiça proibirá a divulgação da publicação e determinará a busca e a apreensão de todos os seus exemplares.
Art. 4º As publicações vindas do estrangeiro e destinadas à distribuição ou venda no Brasil também ficarão sujeitas, quando de sua entrada no país, à verificação estabelecida na forma do artigo 2º dêste Decreto-lei.
Art. 5º A distribuição, venda ou exposição de livros e periódicos que não hajam sido liberados ou que tenham sido proibidos, após a verificação prevista neste Decreto-lei, sujeita os infratores, independentemente da responsabilidade criminal:
I- A multa no valor igual ao do preço de venda da publicação com o mínimo de NCr$ 10,00 (dez cruzeiros novos);
II- À perda de todos os exemplares da publicação, que serão incinerados a sua custa.
Art. 6º O disposto neste Decreto-Lei não exclui a competência dos Juízes de Direito, para adoção das medidas previstas nos artigos 61 e 62 da Lei número 5.250, de 9 de fevereiro de 1967.
Art. 7º A proibição contida no artigo 1º dêste Decreto-Lei aplica-se às diversões e espetáculos públicos, bem como à programação das emissoras de rádio e televisão.
Parágrafo único. O Conselho Superior de Censura, o Departamento de Polícia Federal e os juizados de Menores, no âmbito de suas respectivas competências, assegurarão o respeito ao disposto neste artigo.
Art. 8º Êste Decreto-Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Brasília, 26 de janeiro de 1970; 149º da Independência e 82º da República.
EMÍLIO G. MÉDICI
Alfredo Buzaid".
25. Entre a letra da norma constitucional e sua efetividade jurídico- social, a distância pode ser grande se não se consolida o sentimento coletivo da Constituição, quer dizer, o espírito que a anima não é apoderado pelo corpo sociopolítico como elo da mesma experiência democrática.
O Brasil nunca teve carência de bons, às vezes ótimos, textos constitucionais e legais. Ressentiu-se de dar a eles cumprimento integral, para que a confiança de sua efetividade jurídica garantisse ao regime democrático a segurança jurídica dos cidadãos, finalidade estatal e social a se cumprir.
III. Direito à liberdade de pensamento e de expressão e censura
26. No art. 5º, incs. IV, V, IX, X e XIV, da Constituição da República, promulgada legitimamente em 5.10.1988, são minudentes os princípios sobre liberdade de pensamento, de expressão, de atividade artística, cultural e científica, vedada a censura (art. 220).
27. Estes os textos dos dispositivos mencionados:
"Art. 5º (...)
IV- é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V- é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;
VI- é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
(...)
IX- é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
(...)
XIV- é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;
(...)
Art. 220 - A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição;
§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
(...)
§ 6º A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade".
28. São tantas as normas constitucionais e internacionais declaratórias de direitos fundamentais que seria de se indagar se seria necessário anunciar-se a proibição da censura nos ordenamentos jurídicos.
Sendo a liberdade objeto de permanentes lutas porque de constantes ameaças, importante não se permitir sequer a ocorrência de lesão a bem tão imprescindível. O direito faz-se para o dever ser; desnecessário para o que não seria. Por isso se introduzem, nos ordenamentos jurídicos, normas proibitivas de censura.
29. Censura é forma de controle da informação: alguém, não o autor do pensamento e do que quer se expressar, impede a produção, a circulação ou a divulgação do pensamento ou, se obra artística, do sentimento. Controla-se a palavra ou a forma de expressão do outro. Pode-se afirmar que se controla o outro. Alguém – o censor – faz-se senhor não apenas da expressão do pensamento ou do sentimento de alguém, mas também – o que é mais – controla o acervo de informação que se pode passar a outros.
Para Daniel Sarmento:
"A proibição da censura é um dos aspectos centrais da liberdade de expressão. É natural a inclinação dos regimes autoritários em censurar a difusão de ideias e informações que não convêm aos governantes. Mas, mesmo fora das ditaduras, a sociedade muitas vezes reage contra posições que questionem os seus valores mais encarecidos e sedimentados, e daí pode surgir a pretensão das maiorias de silenciar os dissidentes. O constituinte brasileiro foi muito firme nesta matéria, ao proibir peremptoriamente a censura.
Pode-se adotar uma definição estrita de censura, ou preferir conceitos mais amplos. Em sentido estrito, censura é a restrição prévia à liberdade de expressão realizada por autorizada por autoridades administrativas, que resulta na vedação à veiculação de um determinado conteúdo. Este é o significado mais tradicional do termo. (...)Em sentido um pouco mais amplo, a censura abrange também as restrições administrativas posteriores à manifestação ou à obra, que impliquem vedação à continuidade da sua circulação. A censura posterior pode envolver, por exemplo, a apreensão de livros após o seu lançamento, ou a proibição de exibição de filmes ou de encenação de peças teatrais depois de sua estreia. Ela também é inaceitável, por ofender gravemente a Constituição.
Um conceito ainda mais amplo de censura envolve os atos judiciais, que, em linha de princípio, também não podem proibir a comunicação de mensagens e informações ou a circulação de obras. Porém, aqui já não é mais possível falar numa vedação absoluta, mas apenas numa forte presunção de inconstitucionalidade das medidas judiciais que impliquem neste tipo de restrição à liberdade de expressão. É que, não sendo a liberdade de expressão um direito absoluto, em algumas hipóteses extremas pode ser admissível a proibição de manifestações que atentem gravemente contra outros bens jurídicos constitucionalmente protegido.
E, diante da importância da liberdade de expressão no nosso regime constitucional, deve-se reservar apenas ao Poder Judiciário a possibilidade de intervir neste campo para decretar tais proibições, nas situações absolutamente excepcionais em que forem constitucionalmente justificadas" (SARMENTO, Daniel. "Art. 5º, IX". In CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang; STRECK, Lenio Luiz. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 275).
30. A censura é frequentemente relacionada ao ilegítimo e perverso atuar do Estado. Prática comum em regimes autoritários ou totalitários, não é, contudo, exclusividade do Estado. A censura permeia as relações sociais, propaga-se nas circunstâncias da vida, recorta a história, reinventa o experimentado, pessoal ou coletivamente, omite fatos que poderiam explicitar a vida de pessoa ou de povo em diferentes momentos e locais. Censura é repressão e opressão. Restringe a informação, limita o acesso ao conhecimento, obstrui o livre expressar o pensado e o sentido. Democracia deveria escrever censura com s no início: semsura...
31. A liberdade de expressão, exposição, divulgação do pensamento põe-se em norma jurídica, emanada do Estado, como dever estatal, conquanto voltando-se a proibição expressa de sua restrição ao exercício estatal (censura legislativa, censura administrativa, censura judicial). Além disso, há de ser assegurada também contra ação de particular. O homem, sujeito de outros direitos que se pretendem preservar – ou tanto se alega – também não pode praticar a limitação ou a extinção do direito à liberdade de expressão do outro quanto ao pensar sobre alguém. A censura particular não é legalmente vedada.
Mas não é novidade na história, nem menos grave, a censura implícita ou expressa exercida por particulares.
O Index Librorum Prohibitorum continha lista de publicações literárias proibidas pela Igreja Católica, sendo critério para a obra integrar essa lista nela se conter ou se referir a teorias que os Papas não apoiassem ou aceitassem.
A primeira versão do Index foi promulgada pelo Papa Paulo IV em 1559 e a versão revista foi autorizada pelo Concílio de Trento. A última edição do índice foi publicada em 1948. O Index foi abolido pela Igreja Católica em 1966 pelo Papa Paulo VI. Nessa lista, constavam livros que supostamente contrariariam os dogmas da Igreja, neles se contendo o que os censores consideravam conteúdo impróprio.
Em determinados momentos da história, obras de cientistas, filósofos, enciclopedistas ou pensadores como Galileu Galilei, Nicolau Copérnico, Giordano Bruno, Nicolau Maquiavel, Erasmos de Roterdão, Baruch de Espinosa, Jonh Locke, Berkeley, Denis Diderot, Blaise Pascal, Thomas Hobbes, René Descartes, Rosseau, Montesquieu, Dadiv Hume, Immanuel Kant teriam pertencido a essa lista, algumas removidas mais tarde.
Romancistas e poetas de inegável importância foram incluídos na lista, como, por exemplo, Laurence Sterne, Heine Heinrich, John Milton, Alexandre Dumas (pai e filho), Voltaire, Jonathan Swift, Daniel Defoe, Vitor Hugo, Emile Zola, Stendhal, Gustave Flaubert, Anatole France, Honoré de Balzac, Jean-Paul Sartre.
Os efeitos do Índice em todo o mundo, católico ou não, são inegáveis e nefastos. Em locais tão distintos como Portugal, Brasil ou Polônia, era muito difícil encontrar cópias de livros banidos.
Poderia parecer história. Talvez seja. Mas é história de que fomos – muitos de nós – sujeitos silenciados em ocasiões demasiadas. Nem sempre podíamos aprender a pensar para experimentar o que quiséssemos, menos ainda expressar o que pensávamos. O colégio de freiras tinha vasta biblioteca, com horário obrigatório de leitura, mas o que se lia e o que era proibido às estudantes faz-me engolir em seco quarenta anos com a só lembrança do maravilhamento e do temor de perambular cabisbaixa entre prateleiras lotadas de livros, mas intocáveis muitos deles, considerados impróprios. Alguém assim o decidira. Censura faz escola. E não é a que ensina e permite aprender a pensar e a saber.
32. A cultura do politicamente correto, expressão adotada desde a década de 80 do séc. XX, significando políticas tendentes a tornar a linguagem neutra para se evitar ofensa a pessoas ou grupos sociais discriminados historicamente, também vem sendo levada ao paroxismo, passando a constituir forma de censura da expressão. Adotam-se formas de censura implícita e particular, exercida de forma a tolher ou a esvaziar o direito à liberdade de expressão.
Com o politicamente correto, adotam-se formas de censura que mitigam ou dificultam o pluralismo ao qual a liberdade pessoal conduz, porque a censura, estatal ou particular, introduz o medo de não ser bem acolhido no grupo social. O medo e a vergonha fragilizam o ser humano em sua dignidade. Sem dignidade, não se resguarda a identidade, que faz cada ser único em sua humanidade insubstituível. Não se banem apenas ideias e pessoas. A censura cala a pessoa, a alma, a alegria, o sonho que se põe em expressão para se tornar ideia, que se pode converter em ação, que se pode tornar destino.
Do Índex da Igreja Católica ao McCartismo nos Estados Unidos, de Giordano Bruno ao affaire Charlie Hebdo, dois são os atributos da censura estatal ou particular: a intolerância à diferença e à sobranceria de uma em relação à outra pessoa, sobre a qual se pretende exercer o poder.
33. Conjugada com o direito à liberdade de expressão, a vedação a qualquer forma de censura exsurge como corolário lógico e imperativo.
J. J. Gomes Canotilho anota que
"O art. 5º, IV da Constituição Federal brasileira de 1988 dispõe que 'é livre a manifestação do pensamento'. No inciso IX do mesmo artigo dispõe-se que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença'. Ao consagrar, nestes termos, o direito à liberdade de expressão, o Brasil coloca-se em fina sintonia com o tipo de Estado Constitucional democrático e com o direito internacional dos direitos humanos.
Desde há muito que a doutrina constitucional proclama a função constitutiva e estabilizadora da livre formação individual e coletiva através de uma esfera de discurso público e aberta e pluralista. Os fundamentos dessa proclamação têm sido discernidos na procura da verdade e do conhecimento na expressão e autonomia individuais, na defesa do Estado de direito democrático, na livre concorrência de ideias, no desenvolvimento normativo, na libertação das tensões sociais, na proteção da diversidade de opiniões, na acomodação de interesses, na transformação pacífica da sociedade.
A liberdade de expressão permite assegurar a continuidade do debate intelectual e do confronto de opiniões, num compromisso crítico permanente. Com essa qualidade, ela integra o sistema constitucional de direitos fundamentais, deduzindo-se do valor da dignidade da pessoa humana e dos princípios gerais de liberdade e igualdade, juntamente com a inerente exigência de proteção jurídica. A liberdade de expressão em sentido amplo é um direito multifuncional, que se desdobra num cluster de direitos comunicativos fundamentais (Kommunikationsgrudrechte) que dele decorrem naturalmente, como seja, por exemplo, a liberdade de expressão stricto sensu, de informação, de investigação acadêmica, de criação artística, de edição, de jornalismo, de imprensa, de radiodifusão, de programação, de comunicação individual, de telecomunicação e comunicação em rede. As liberdades comunicativas encontram-se ainda associadas a outras liberdades, como a liberdade de profissão, a livre iniciativa econômica, de prestação de serviços e o direito de propriedade.
(...) Inerente ao direito à liberdade de expressão encontra-se uma presunção de inconstitucionalidade de todas as formas de censura, particularmente de censura prévia, seja ela pública ou privada. (...) A proibição de censura é de âmbito geral, do ponto de vista dos conteúdos expressivos, dos meios de comunicação envolvidos e dos destinatários por ela vinculados, valendo diante de qualquer entidade ou poder, de direito ou de facto, que esteja em condições de impedir a expressão ou divulgação de ideias e informações" (CANOTILHO, J. J. Gomes; MACHADO, Jónatas E. M. "Constituição e código civil brasileiro: âmbito de proteção de biografias não autorizadas". In JÚNIOR, Antônio Pereira Gaio; SANTOS, Márcio Gil Tostes dos. Constituição Brasileira de 1988. Reflexões em comemoração ao seu 25º aniversário. Curitiba: Juruá, 2014, p. 128-129).
34. Não são incomuns normas constitucionais e de direito internacional proibitivas de censura. Com o art. 220 da Constituição da República de 1988, não se inova o direito constitucional.
Nos sistemas jurídicos brasileiros, reiteraram-se normas sobre as restrições ao exercício do direito à liberdade de expressão.
Este Supremo Tribunal concluiu , em mais de uma ocasião, não existir direito cujo exercício seja juridicamente ilimitado:
"direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, (admitem) a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas - e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros" (MS n. 23.452/RJ, Relator o Ministro Celso de Mello, Plenário, DJ 15.2.2000).
35. Sem exceção, as Constituições brasileiras tratam da censura em suas disposições para proibi-la ou permiti-la em situações excepcionais. Na primeira Constituição brasileira, Constituição Política do Império do Brasil de 1824, declara-se:
"Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
(...)
IV. Pimenta Bueno, ao interpretar aquela Carta, ensina que, "como expresso formalmente em nossa tese constitucional, a liberdade não é, pois uma exceção, e sim a regra geral, o princípio absoluto, o direito positivo, a proibição, a restrição, isto sim é que são as exceções, e que por isso mesmo precisam ser provadas, achar-se expressamente pronunciadas pela lei, e não por todo duvidoso, Todos podem communicar os seus pensamentos, por palavras, escriptos, e publical-os pela Imprensa, sem dependencia de censura; com tanto que hajam de responder pelos abusos, que commetterem no exercicio deste Direito, nos casos, e pela fórma, que a Lei determinar".
sim formal, positivo, tudo o mais é sofisma" (BUENO, José Antônio Pimenta. Op. cit., p. 383).
Na primeira Constituição da República, de 1891, assegurava-se, no art. 72, a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, fazendo constar:
"Art. 72. (...)
Na Constituição de 1934, preceitua-se:
"Art. 113 - (...)
9) Em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento, sem dependência de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido anonimato. É segurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos independe de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda, de guerra ou de processos violentos, para subverter a ordem política ou social".
submetiam-se à censura livros, jornais ou quaisquer publicações, para posteriormente circularem sem entraves no estado de sítio.
dispunha também sobre a possibilidade de prescrição legal emcircunstâncias específicas:
"Art. 122. (...)
15) todo cidadão tem o direito de manifestar o seu pensamento, oralmente, ou por escrito, impresso ou por imagens, mediante as condições e nos limites prescritos em lei.
A lei pode prescrever:
a) com o fim de garantir a paz, a ordem e a segurança pública, a censura prévia da imprensa, do teatro, do cinematógrafo, da radiodifusão, facultando à autoridade competente proibir a circulação, a difusão ou a representação;
b) medidas para impedir as manifestações contrárias à moralidade pública e aos bons costumes, assim como as especialmente destinadas à proteção da infância e da juventude;
) providências destinadas à proteção do interesse público, bem- estar do povo e segurança do Estado".
Aquela Carta previa também censura a comunicações orais e escritas quando decretado estado de emergência:
"Art. 168 Durante o estado de emergência as medidas que o Presidente da República é autorizado a tomar serão limitadas às seguintes: (...)
b) censura da correspondência e de todas as comunicações orais e escritas".
A Constituição brasileira de 1946, no 5º do art. 141, expressa garantias similares às determinadas no art. 113 da Constituição de 1934:
"Art. 141 - (...)
de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe"
Em caso de decretação de estado de sítio, também a Constituição de
O art. 113 da Constituição de 1934 e o art. 141 da Constituição de 1946 foram mantidos na Carta de 1967 e na Emenda Constitucional n. 1 de 1969, com parcas modificações explicadas pelo fortalecimento da ditadura. No art. 153 da Emenda Constitucional n. 1 de 1969, preconizava-se:
"Art. 153. (...)
§ 8º É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica, bem como a prestação de informação independentemente de censura, salvo quanto a diversões e espetáculos públicos, respondendo cada um, nos têrmos da lei, pelos abusos que cometer. É assegurado o direito de resposta. A publicação de livros, jornais e periódicos não depende de licença da autoridade. Não serão, porém, toleradas a propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de religião, de raça ou de classe, e as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes".
Aquele dispositivo foi regulamentado pelo Decreto-Lei n. 1.077, de 1970, em cujo art. 1º preceituava-se: "não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação".
Atualmente prevalece a norma constitucional (art. 220, § 2º, da Constituição da República de 1988) pela qual proibida, expressa e taxativamente, "qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística".
A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 não contêm referência à censura. O Pacto Internacional estabelece possíveis restrições ao direito à liberdade de expressão no art. 19:
"3. O exercício do direito previsto no parágrafo 2 do presente artigo implicará deveres e responsabilidades especiais. Consequentemente, poderá estar sujeito a certas restrições, que devem, entretanto, ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para:
a) assegurar o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas;
b) proteger a segurança nacional, a ordem, a saúde ou a moral públicas".
36. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, diversamente de outros documentos internacionais, refere-se à censura, proibindo, no art. 13, a censura prévia a qualquer exercício do direito à liberdade de pensamento e de expressão. A única exceção prevista é a autorização prévia para espetáculos públicos com o intuito de proteger crianças e adolescentes:
"O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:
a. o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou
b. a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.
3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões.
4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2" (OEA, Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 1969, art. 13).
Quanto à norma constitucional brasileira vigente (art. 220), José Afonso da Silva ensina que a liberdade de comunicação, em especial a de imprensa,
"gera a repulsa a qualquer tipo de censura (...) seja a censura prévia (intervenção oficial que impede a divulgação da matéria) ou a censura posterior (intervenção oficial que se exerce depois da impressão, mas antes da publicação, impeditiva da circulação do veículo impresso. Em segundo lugar, é a mesma função social que fundamenta o condicionamento da sua liberdade, que, agora, se limitará à vedação do anonimato (em matéria não assinada, o diretor do veículo responde), direito de resposta proporcional ao agravo, indenização por dano material, moral ou à imagem e sujeição às penas da lei no caso de ofensa à honra de alguém (art. 5º, IV, V, X),pois nenhuma lei poderá embaraçar a plena liberdade de informação jornalística, em qualquer veículo de comunicação social, nem se admite censura de natureza política, ideológica e artística (art. 220, §§ 1º e 2º)" (SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 827).
37. O sistema constitucional brasileiro traz, em norma taxativa, a proibição de qualquer censura, valendo a vedação ao Estado e a particulares. Assentou-se a horizontalidade da principiologia constitucional, aplicável a entes estatais ou a particulares, ou seja, os princípios constitucionais relativos a direitos fundamentais não obrigam apenas os entes e órgãos estatais, mas também são de acatamento impositivo e insuperável de todos os cidadãos em relação aos demais. O exercício do direito à liberdade de expressão não pode ser cerceado pelo Estado nem pelo vizinho, salvo nos limites impostos pela legislação legítima para garantir a igual liberdade do outro, não a ablação desse direito para superposição do direito de um sobre o outro. Atualmente, doutrina e jurisprudência reconhecem que a eficácia dos direitos fundamentais espraia-se nas relações entre particulares. Diversamente dos primeiros momentos do Estado moderno, no qual, sendo o ente estatal o principal agressor a direitos fundamentais, contra ele se opunham as normas garantidoras desses direitos, hoje não é permitido pensar que somente o Estado é fonte de ofensa ao acervo jurídico essencial de alguém. O particular não pode se substituir ao Estado na condição de deter o poder sobre outro a ponto de cercear ou anular direitos fundamentais.
Quanto mais se amplia o espaço de poder social, mais se tem a possibilidade de ser a liberdade restringida pela ação de particulares contra um indivíduo ou grupo. A proteção dos direitos não se limita à ação estatal, mas estende-se também à ação dos particulares nas relações intersubjetivas.
A sociedade não é composta de pessoas em idênticas condições de força e poder. Essas diferenças podem permitir a determinado indivíduo interferir e sobrepor-se à atuação legítima de outro particular, estabelecendo-se relações de poder privado que podem restringir ou ofender direitos fundamentais.
Por isso a eficácia dos direitos fundamentais é tida como extensiva ao Estado e também aos particulares, que não podem atuar em desrespeito às garantias estabelecidas pelo sistema constitucional.
Os conflitos entre particulares podem atingir direitos fundamentais pela desproporcionalidade do poder exercido por um em relação a outro ou em contrariedade ao interesse público. Nem por ser particular se haverá de desconsiderar ilegítimo tal agir. Apesar de ser mais comum quando exercido pelo Estado, o particular pode também atuar com abuso ou exorbitância de poder em relação a outrem, a tornar o prejudicado legitimado a defender os seus direitos quanto à atuação contrária ao direito.
Quanto ao direito à liberdade de expressão, a eficácia dos direitos fundamentais não se limita ao provimento estatal, impõe-se a toda a sociedade, não persistindo o agir isolado ou privado pela só circunstância de não ser estatal. O poder individual não pode se substituir ao poder estatal, nem ser imune às obrigações relativas aos direitos fundamentais. Por exemplo: a conduta discriminatória ou preconceituosa praticada por síndico de condomínio não pode ser mais tolerada que o agir do Estado ao distinguir sem base de legitimidade entre iguais.
38. Em Estudo especial sobre o direito de acesso à informação, a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da OEA (2007) reitera não ser absoluto o direito de acesso à informação, pode ser submetido a regime de restrição, entendida como "a conduta definida legalmente como geradora de responsabilidade pelo abuso da liberdade de expressão" (Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos/OEA, Estudo especial sobre o direito de acesso à informação, 2007, p. 47).
Nesse estudo, reconhece-se a possibilidade de limitações ao exercício do direito de liberdade de expressão e de acesso à informação pautadas na proteção dos direitos ou da reputação de outras pessoas, da segurança nacional, da ordem pública e da saúde e da moral públicas.
Admitem-se tais limitações previamente estabelecidas em lei, sendo necessário harmonizarem-se com os princípios que regem a sociedade democrática. Qualquer limitação ao exercício dos direitos fundamentais deve conduzir-se pela conclusão de serem os danos produzidos maiores que os causados ao interesse público se a informação fosse retida.
Na Organização dos Estados Americanos – OEA, o direito assegurado no art. 13 da Convenção Americana expôs-se de forma expressa na Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão, elaborada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, destacando-se:
"5. A censura prévia, a interferência ou pressão direta ou indireta sobre qualquer expressão, opinião ou informação através de qualquer meio de comunicação oral, escrita, artística, visual ou eletrônica, deve ser proibida por lei. As restrições à livre circulação de ideias e opiniões, assim como a imposição arbitrária de informação e a criação de obstáculos ao livre fluxo de informação, violam o direito à liberdade de expressão. (...)
7. Condicionamentos prévios, tais como de veracidade, oportunidade ou imparcialidade por parte dos Estados, são incompatíveis com o direito à liberdade de expressão reconhecido nos instrumentos internacionais".
39. Essas normas são interpretadas de modo a assegurar sempre as liberdades e o exercício pleno de direitos, não se reconhecendo legítimo, por tribunais nacionais ou internacionais, medida tendente a eliminar ou elidir direitos fundamentais.
Exemplo de interpretação e aplicação daqueles princípios teve-se no julgamento do caso Olmedo Bustos e outros versus Chile (2001). O caso refere-se à proibição de exibição do filme A Última Tentação de Cristo com base no art. 19, inc. 12, da Constituição chilena, que então permitia censura prévia. O texto foi posteriormente alterado.
A proibição, determinada pelo Conselho de Qualificação Cinematográfica do Chile, fundou-se no Decreto-Lei n. 679, de 1974, que permitia a qualificação dos filmes. Contra a proibição, a empresa United International Pictures Ltda. peticionou ao Conselho de Qualificação, o que levou o órgão a permitir a exibição do filme com classificação para maiores de 18 anos.
Entretanto cidadãos chilenos recorreram à Corte de Apelação de Santiago alegando-se representantes de Jesus Cristo, da Igreja Católica e atuando na condição de cidadãos contrários ao filme.
A Corte sentenciou, sem efeito, a resolução administrativa determinante da classificação para maiores de 18 anos do Conselho de Qualificação, mantendo a proibição da obra cinematográfica.
O caso foi levado ao sistema interamericano de direitos humanos, sendo submetido à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que decidiu, em 1999, submeter a lide à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A Corte julgou ter o Estado chileno violado o art. 13 da Convenção Americana. Nos fundamentos da decisão, o Tribunal considerou comprovada a censura prévia a proibir a exibição do filme, em contrariedade ao direito à liberdade de expressão e ao direito à informação dos cidadãos chilenos que peticionaram no sistema interamericano.
No julgamento, a Corte Interamericana vale-se de fundamentos aproveitados no caso Handyside, julgado pela Corte Europeia de Direitos Humanos em 1976, para demonstrar a importância da liberdade de expressão para sociedade democrática informada e livre.
O art. 10.2 da Convenção Europeia de Direitos Humanos é válido não apenas para informações ou ideias favoravelmente recebidas ou consideradas como inofensivas ou indiferentes, mas também para as chocantes, inquietantes ou ofensivas ao Estado ou a parte da população. Nos fundamentos da decisão, fez-se referência aos princípios do pluralismo, da tolerância, sem o que sociedade democrática não prosperaria. Toda formalidade, condição, restrição ou punição imposta na matéria deve ser proporcional ao fim legítimo buscado (Corte Europeia de Direitos Humanos – Caso Handyside, 1976, parágrafo 49). No caso Olmedo Bustos versus Chile, a Corte Interamericana considerou ser o direito à liberdade de expressão e de pensamento formado tanto pelo direito de expressar o próprio pensamento (dimensão individual) quanto pelo direito de buscar, receber e difundir informações sobre qualquer matéria (dimensão social). Afirmou ser fundamental a garantia das duas dimensões para a efetivação do direito à liberdade de expressão consagrado no art. 13 da Convenção Americana:
"Art. 13 - Liberdade de pensamento e de expressão – 1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha. 2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei e que se façam necessárias para assegurar: a) o respeito dos direitos e da reputação das demais pessoas; b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas".
Este Supremo Tribunal pronunciou-se em mais de uma ocasião no sentido de renegar qualquer forma de censura imposta à liberdade de expressão, assegurando a ampla possibilidade de manifestação até mesmo sobre temas polêmicos, mas sobre os quais não se há de impedir a livre exposição do pensamento:
"AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI FEDERAL 8069/90. LIBERDADE DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE CRIAÇÃO, DE EXPRESSÃO E DE INFORMAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DE RESTRIÇÃO. 1. Lei 8069/90. Divulgação total ou parcial por qualquer meio de comunicação, nome, ato ou documento de procedimento policial, administrativo ou judicial relativo à criança ou adolescente a que se atribua ato infracional. Publicidade indevida. Penalidade: suspensão da programação da emissora até por dois dias, bem como da publicação do periódico até por dois números. Inconstitucionalidade. A Constituição de 1988 em seu artigo 220 estabeleceu que a liberdade de manifestação do pensamento, de criação, de expressão e de informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerá qualquer restrição, observado o que nela estiver disposto. 2. Limitações à liberdade de manifestação do pensamento, pelas suas variadas formas. Restrição que há de estar explícita ou implicitamente prevista na própria Constituição. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente" (ADI n. 869/DF, Relator o Ministro Ilmar Galvão, Redator para o acórdão o Ministro Maurício Corrêa, Plenário, DJ 4.6.2004).
40. IV. Direito à informação: liberdade/dever de informar e direito de se informar Para o deslinde da questão posta a exame na presente ação, não se pode deixar de enfatizar o direito à informação, constitucionalmente assegurada como fundamental, e que se refere à proteção a obter e divulgar informação sobre dados, qualidades, fatos, de interesse da coletividade, ainda que sejam assuntos particulares, porém com expressão ou de efeitos coletivos.
No inc. XIV do art. 5º da Constituição da República se estabelece:
"Art. 5º. (...)
XIV- é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional".
Assim disposto, o direito constitucionalmente garantido contempla a liberdade de informar, de se informar e de ser informado. O primeiro refere-se à formação da opinião pública, considerado cada qual dos cidadãos que livremente poderá receber dados sobre assuntos de interesse da coletividade e sobre as pessoas cujas ações, público-estatais ou público-sociais, que possam interferir no direito de saber, de aprender sobre temas relacionados a cogitações legítimas.
41. O direito de ser informado concerne àquele que recebe o teor da comunicação, tornando-se ator no processo de liberdade crítica e responsável por suas opiniões e, a partir delas, por suas ações. Liberdade desinformada é algema mental transparente, porém tão limitadora quanto os grilhões materiais. A corrente da desinformação não é visível, mas é sensível na cidadania ativa e participativa. Como em Brecht, o pior analfabeto é o analfabeto político. O direito de ser informado é a garantia da superação do analfabetismo político.
O direito de se informar relaciona-se à liberdade de buscar a informação em fonte não censurada e sobre qualquer tema de interesse do cidadão. Coartar a busca livre de assunto ou em fonte circunscrita antecipadamente significa limitar a liberdade de obter dados de conhecimento para a formação de ideias e formulação de opiniões.
O direito fundamental constitucionalmente assegurado compreende a busca, o acesso, o recebimento, a divulgação, a exposição de dados, pensamentos, formulações, sendo todos e cada um responsáveis pelo que exorbitar a sua esfera de direitos e atingir outrem.
José Afonso da Silva enfatiza que
"Freitas Nobre já dissera que "a relatividade de conceitos sobre o direito à informação exige uma referência aos regimes políticos, mas, sempre, com a convicção de que este direito não é um direito pessoal, nem simplesmente um direito profissional, mas um direito coletivo".'" Isso porque se trata de um direito coletivo da informação, ou direito da coletividade à informação." O direito de informar, como aspecto da liberdade de manifestação de pensamento, revela-se um direito individual, mas já contaminado de sentido coletivo, em virtude das transformações dos meios de comunicação, de sorte que a caracterização mais moderna do direito de comunicação, que especialmente se concretiza pelos meios de comunicação social ou de massa, envolve a transmutação do antigo direito de imprensa e de manifestação do pensamento, por esses meios, em direitos de feição coletiva. Albino Greco notou essa transformação: "Já se observou que a liberdade de imprensa nasceu no início da Idade Moderna e se concretizou - essencialmente - num direito subjetivo do indivíduo de manifestar o próprio pensamento: nasce, pois, como garantia de liberdade individual. Mas, ao lado de tal direito do indivíduo, veio afirmando-se o direito da coletividade à informação ... A Constituição acolheu essa distinção. No capítulo da comunicação social (arts. 220- 224), preordena a liberdade de informar completada com a liberdade de manifestação do pensamento (art. 5º, IV). No mesmo art. 5º, XIV e XXXIII, já temos a dimensão coletiva do direito à informação. O primeiro declara "assegurado a todos o acesso à informação''. É o interesse geral contraposto ao interesse individual da manifestação de opinião, idéias e pensamento, veiculados pelos meios de comunicação social. Daí por que a liberdade de informação deixa de ser mera função individual para tomar-se função social" (SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 110-111).
A expressão livre forma e informa o outro e torna o pensamento, a produção intelectual, artística, científica e de comunicação fonte de conhecimento e de novas ideias e ações. Nem por isso se dispensa a ela natureza tão absoluta que, provocado dano a alguém, torne-se imune o autor da lesão ao argumento de exercitar direito próprio.
– Responsabilidade constitucional pela informação
42. Democracia é modelo de convivência social na qual se respeitam direitos e liberdades, cada um respondendo – sendo responsável – pelo que exorbitar do que posto no sistema jurídico.
Não há democracia sem responsabilidade pública e cidadã. Ausência de responsabilidade não prospera sequer na acracia. Nem a ausência de governo pode ser confundida com desgoverno.
Na fórmula agora remota, mas sempre atual, de San Tiago Dantas,
"em toda relação jurídica existem dois elementos que se contrapõem: o direito e o dever. Conforme a natureza da relação jurídica, muda consideravelmente a natureza deste dever. Em alguns casos é um dever de fazer alguma coisa, e em outros casos o dever de abster-se; em outros casos o dever de tolerar. Sabe-se que essas variações do dever jurídico correspondem a outas tantas variações do direito que pode ser absoluto ou relativo, patrimonial e não patrimonial, real e pessoal. ... onde há uma relação jurídica, há um dever. Por conseguinte, está implicado em vários deveres jurídicos, que correspondem às várias relações em que se é parte" (DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977, I, p. 345).
O dever de respeito ao direito do outro conduz ao de responder nos casos em que, mesmo no exercício de direito legitimamente posto no sistema jurídico, se exorbite causando dano a terceiro.
43. Quem informa e divulga informação responde por eventual excesso, apurado por critério que demonstre dano decorrente da circunstância de ter sido ultrapassada esfera garantida de direito do outro.
A informação, a exposição e a divulgação de dado podem gerar dano como qualquer outro agir humano. Inúmeras vezes este Supremo Tribunal debruçou-se sobre esse tema e concluiu, com fundamento em normas constitucionais e legais, que a responsabilização compõe o sistema de liberdades (ADPF n. 130, Relator o Ministro Ayres Britto, Plenário, DJ 13.11.2009; AI n. 595.395/SP, Relator o Ministro Celso de Mello, decisão monocrática, DJ 3.8.2007; Rcl n. 9.428/DF, Relator o Ministro Cezar Peluso, Plenário, DJ 25.6.2010; ADI n. 4.451-MC-REF/DF, Relator o Ministro Ayres Britto, Plenário, DJ 24.8.2012; e RE n. 511.961/SP, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJ 13.11.2009).
44. No inc. V do art. 5º da Constituição da República, dispõe-se:
"Art. 5º. (...)
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem".
45. A responsabilidade civil, administrativa, contratual ou extracontratual evoluiu na ordenação do direito. No Brasil, a Constituição elevou a matéria à categoria de elemento fundamental de equilíbrio sistêmico, garantindo a mais ampla liberdade e fazendo a ela corresponder igual responsabilidade.
Mas manteve-se como cuidado do direito civil na esteira dos preceitos constitucionais, em especial no que se refere à relação entre particulares e suas consequências.
Maria Helena Diniz assinala a possibilidade de aquele que se sente lesado pela ação de outrem
"pleitear a reparação pelo dano moral e patrimonial (Súmula 37 do STJ) provocado por violação à sua imagem-retrato ou imagem- atributo e pela divulgação não autorizada de escritos ou de declarações feitas. Se a vítima vier a falecer ou for declarada ausente, serão partes legítimas para requerer a tutela ao direito à imagem, na qualidade de lesados indiretos, seu cônjuge, ascendentes ou descendentes e também, no nosso entender, o convivente, visto ter interesse próprio, vinculado a dano patrimonial ou moral causado a bem jurídico alheio. Este parágrafo único do art. 20 seria supérfluo ante o disposto no art. 12, parágrafo único" (DINIZ, Maria Helena. "Art. 20". In FIUZA, Ricardo (Coord.). Código Civil Comentado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 30).
Para a autora,
"o uso de um direito poder ou coisa, além do permitido ou extrapolando as limitações jurídicas lesando alguém, traz como efeito o dever de indenizar. Realmente, sob aparência de um ato legal ou lícito, esconde-se a "ilicitude", ou melhor, a antijuridicidade sui generis no resultado, por atentado ao princípio da boa-fé e aos bons costumes ou por desvio de finalidade socioeconômica para a qual o direito foi estabelecido. Pelo Enunciado n. 37 do Conselho da Justiça Federal (aprovado na Jornada de Direito Civil de 2002): "A responsabilidade civil decorrente do abuso de direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico" (DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 169).
46. A responsabilidade constitucionalmente estabelecida – corolário do Estado Democrático de Direito, no qual direitos e responsabilidades compõem-se para a convivência harmoniosa – não se afasta por ser o autor da ação danosa titular dos direitos fundamentais, no exercício dos quais terá exorbitado a intervir na esfera de direitos de outrem com igual natureza e idêntico resguardo.
Na gênese dos direitos humanos, Norberto Bobbio situa os códigos morais como as primeiras composições de comandos imperativos, a corporificarem não direitos propriamente, mas "código de deveres (ou de obrigações)" igualmente ínsitos à condição humana, iniciando-se pelos Dez Mandamentos adotados na Antiguidade, e durante séculos obedecidos como código moral de tantas nações, especialmente as europeias, chegando a ser interpretados como lei natural, conforme à natureza do homem.
Conclui o autor:
"poderíamos apresentar inúmeros outros exemplos, do Código de Hamurabi às Leis das XII Tábuas. Naturalmente, dever e direito são termos correlatos, como pai e filho (...) mas tal como o pai vem antes do filho, da mesma forma a obrigação sempre veio antes do direito. (...) Para que pudesse acontecer a passagem do código dos deveres para o código dos direitos, foi preciso que a moeda se invertesse: que o problema começasse a ser observado não mais apenas do ponto de vista da sociedade, mas também do ponto de vista do indivíduo" (BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política. A filosofia política e as lições dos clássicos. Trad. Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Campus. 2000, p. 476-477).
Ingo Sarlet ressalta que,
"em sentido amplo, a previsão, no art. 5º, V, da CF, juntamente com o direito de resposta, de um direito à "indenização por dano material, moral ou à imagem" opera como um limite à liberdade de expressão, embora não impeça o seu exercício. Afixação, na esfera de demandas judiciais, de valores altos a título de indenização, poderá não apenas inibir a liberdade ele expressão como mesmo levar, em situações - limite, à sua inviabilidade, de tal sorte que também nessa esfera há que respeitar os critérios da proporcionalidade e razoabilidade. O direito a indenização, neste contexto, há de reconhecido com prudência, sob pena de — apesar de posterior à veiculação do discurso ofensivo — se transformar em limitação ilegítima da liberdade de expressão.
Quanto aos seus titulares, cuida-se de direito cuja titularidade é universal (direito de todos e de qualquer um), sendo mesmo deferido às pessoas jurídicas, quando violados sua imagem e bom nome comercial, ou mesmo a sua honra objetiva, tal como amplamente consagrado no ordenamento jurídico brasileiro. No que diz com seus destinatários direito fundamental e autônomo à indenização pelos abusos no exercício da liberdade de expressão é, em geral, oponível diretamente nas relações privadas, inclusive por se tratar de direito consagrado em norma diretamente aplicável e que independe de regulamentação legal para a sua incidência nos casos concretos. Nesse sentido, o STF já havia reconhecido a não recepção da limitação estabelecida na Lei de Imprensa ( que também acabou sendo considerada como não recepcionada em face da Constituição Federal pelo STF em julgamento posterior, na ADPF 130, já referida) quanto ao montante da indenização do dano moral. Por outro, o STF tem adotado postura cautelosa no que diz com o reconhecimento de um direito a indenização, valorizando a doutrina da posição preferencial da liberdade de expressão, mormente no caso da liberdade de informação nos meios de comunicação social.
Importa destacar, dada a relevância do tópico, na esteira do que se sustenta Daniel Sarmento, que a responsabilidade pelo exercício da liberdade de expressão (ainda mais no âmbito da liberdade de comunicação e de informação jornalística) há de ser uma responsabilidade subjetiva, focada na análise sobre a existência de dolo ou culpa na ação do agente causador do dano, o que, por sua vez, implica a consideração de diversos fatores, tais como a posição da vítima, (por exemplo, se é ou não uma personalidade pública, hipótese em que só ensejará responsabilidade a culpa grave), a intenção e a negligência empregadas por quem apurou os fatos, quando o caso envolver a divulgação de notícias inverídicas, a existência de algum interesse social na questão, quando a hipótese resvalar no direito de privacidade, bem como a intensidade da lesão aos direitos fundamentais do ofendido.
Limitações não expressamente autorizadas pela Constituição Federal: a liberdade de expressão e a proteção de direitos e bens jurídicos fundamentais conflitantes.
Que também a liberdade de expressão, incluindo a liberdade de informação e de imprensa, (comunicação social), não é absoluta e encontra limites no exercício de outros direitos fundamentais e salvaguarda, mesmo na dimensão objetiva (por via dos deveres de proteção estatal), de outros bens jurídico-constitucionais, praticamente não é contestado no plano do direito constitucional contemporâneo e mesmo no âmbito do direito internacional dos direitos humanos. Contudo, a controvérsia a respeito de quais são tais limites e de como e em que medida se pode intervir na liberdade de expressão segue intensa e representa um dos maiores desafios, especialmente para o legislador, mas também para os órgãos do Poder Judiciário, a quem compete, no caso concreto e mesmo na esfera do controle abstrato de constitucionalidade, decidir a respeito" (SARLET, Ingo Wolfgang. "Direitos Fundamentais em espécie". In SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 466-467).
47. Não há, no direito, espaço para a imunidade absoluta do agir no exercício de direitos com interferência danosa a direitos de outrem. Ação livre é ação responsável. Responde aquele que atua, ainda que sob o título de exercício de direito próprio.
A fonte normativo-constitucional abrange a atuação estatal ou particular, apenas se resguardando que, em nome da responsabilidade, não se esvazie a liberdade do autor do comportamento lesivo, nem se cancele o que o direito construiu, impôs e garantiu.
Como concluiu este Supremo Tribunal, o exercício do direito às liberdades não se concilia com restrições ao direito de informar, menos ainda com a sua eliminação. Deve-se reivindicar sempre a responsabilidade democrática, princípio de cumprimento igualmente garantido:
"EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). LEI DE IMPRENSA. ADEQUAÇÃO DA AÇÃO. REGIME CONSTITUCIONAL DA "LIBERDADE DE INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA", EXPRESSÃO SINÔNIMA DE LIBERDADE DE IMPRENSA. A "PLENA" LIBERDADE DE IMPRENSA COMO CATEGORIA JURÍDICA PROIBITIVA DE QUALQUER TIPO DE CENSURA PRÉVIA. A PLENITUDE DA LIBERDADE DE IMPRENSA COMO REFORÇO OU SOBRETUTELA DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. LIBERDADES QUE DÃO CONTEÚDO ÀS RELAÇÕES DE IMPRENSA E QUE SE PÕEM COMO SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE E MAIS DIRETA EMANAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. (...) RELAÇÃO DE MÚTUA CAUSALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E DEMOCRACIA. RELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE PENSAMENTO CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE. A IMPRENSA COMO INSTÂNCIA NATURAL DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E COMO ALTERNATIVA À VERSÃO OFICIAL DOS FATOS.(...). EFEITOS JURÍDICOS DA DECISÃO. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO" (ADPF n. 130/DF, Relator o Ministro Ayres Britto, Plenário, DJ 6.11.2009, grifos nossos).
V. Direito à intimidade e direito à privacidade
48. No inc. X do art. 5º da Constituição da República, dispõe-se:
"Art. 5º (...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".
As dimensões da vida tidas por invioláveis nesse preceito são encarecidas exatamente por considerar-se que podem ocorrer, na convivência social, ofensas a esses direitos. A inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem constitui direito, cuja contrariedade acarreta apenação do autor da lesão: a indenização pelo dano material ou moral.
49. No sistema constitucional brasileiro, intimidade é distinta de privacidade. José Afonso da Silva aponta que
"o dispositivo põe logo uma questão: a intimidade foi considerada um direito diverso dos direitos à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, quando a doutrina os reputava, com outros, manifestação daquela. De fato, a terminologia não é precisa Toma- se, pois, a privacidade como 'o conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controlo, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito'. A esfera de inviolabilidade, assim, é ampla, ´abrange o modo de vida doméstico, nas relações familiares e afetivas em geral, fatos, hábitos, local, nome imagem, pensamentos, segredos, e, bem assim, as origens e planos futuros do indivíduo" (SILVA, José Afonso. Comentário contextual à Constituição. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 100).
O celebrado conceito de Brandeis – right to be alone – vem sendo revisto em tempos nos quais a invasão de privacidade se relaciona à evasão de privacidade. Há quem busque o direito de se manter em sossego e no controle das informações pessoais; e há os que busquem mostrar-se e difundir incessantemente informações sobre si. A proteção de escolha de vida contra o controle ou o descontrole de dados publicizados independente da escolha autônoma do interessado conforme o conceito apreendido em sua dicção constitucional.
Etimologicamente, intimidade vem de timo – glândula situada na altura do coração e que identificaria a essência ou a vocação da pessoa. De timo vem a palavra que marca o que, sendo tão próprio e único, somente ao indivíduo pertenceria. Pelo que não haveria como deixar de reconhecê-la como dimensão da vida resguardada na dignidade pessoal e indevassável pela ação de outro, inviolável em sua projeção além da vontade do sujeito.
A privacidade contrapõe-se à publicidade, constitui o que não se dá a público, por escolha de espaço próprio do controle das informações e dos dados sobre a vida da pessoa.
Esses conceitos, entretanto, não são unanimemente aceitos, continuando controversa, na doutrina, a sua significação. Agostini, por exemplo, aponta que,
"Ao analisar a origem filológica de intimidade se verifica que íntimo procede de intimus, que, por sua vez, é uma variação filológica de intimus, a forma superlativa do advérbio intus, que quer dizer, dentro. íntimo seria, nesses termos, aquilo que estaria o mais dentro possível. (...) Definir positivamente vida privada é extremamente difícil. Se a delimitação de sentido dos espaços público e privado já se mostrava bastante diluída e de difícil compreensão na passagem da Idade Média e no início da Era Moderna, ela complica-se ainda mais com o surgimento de uma nova esfera de desenvolvimento das atividades humanas: a esfera social. Como informa Hannah Arendt a passagem da sociedade do sombrio interior do lar, para a luz da esfera pública, não apenas diluiu a antiga fronteira entre privado e o político, mas também alterou o significado dos dois termos ao ponto de torna- los quase irreconhecíveis. (...) Desde o advento da sociedade, desde a admissão das atividades caseiras e da economia doméstica à esfera pública, a nova esfera, a esfera social, tem-se caracterizado principalmente por uma irresistível tendência e necessidade de crescer, de devorar as esferas mais antigas do político e do privado e, mais recentemente, da intimidade. Nerione Cardoso acrescenta que: 'a ascendência social, ou da sociedade, numa acepção heterodoxa do termo, constitui-se na elevação dos negócios econômicos do lar doméstico ao nível da esfera pública, isto é, as questões de subsistência ganharam importância pública, o que dilui a antiga divisão entre o público e o privado e alterou o significado dos dois termos e a sua importância para a vida do indivíduo e do cidadão, a ponto de torna- los quase irreconhecível. (...) Dessa forma a privacidade [na era moderna] passou a ser vista como uma resposta à emergência do social. Ela surgiu como a reação ao conformismo nivelador da sociedade que exigia que seus membros se comportassem como se fossem membros de uma grande família, com uma só opinião e um só único interesse. Este conformismo nivelador afetava a própria possibilidade da vida contemplativa (Hannah Arendt), pois o parar para pensar o significado das coisas, através do diálogo eu consigo mesmo, exige um provisório desligamento e afastamento do mundo exterior o que não era possível com a pressão externa social exercida sobre o indivíduo. Era necessário então proteger um espaço exclusivo de vivência para o indivíduo no qual este pudesse desenvolver todos os seus valores mais essenciais. Defendeu-se então a necessidade de proteger-se esse espaço próprio do indivíduo denominado privacidade. O princípio informador da privacidade seria o princípio da exclusividade. (...) Esse princípio visaria assegurar ao indivíduo sua identidade diante dos riscos proporcionados pela niveladora pressão social e pela incontrastável impositividade do poder político. Esse princípio vai reger tanto a vida privada quanto a intimidade. (...)Pelo sentido inexoravelmente comunicacional da convivência, a vida privada compõe então um conjunto de situações que, usualmente, são informadas se constrangimento. São informações que, embora privativas – como o nome, endereço, profissão, idade, estado civil, filiação, número de registro público oficial, etc. -, condicionam o próprio intercâmbio humano em sociedade, pois constituem elementos de identificação que tornam a comunicação possível, corrente e segura. Por isso, a proteção desses dados em si, pelo sigilo, não faz sentido. Assim, a inviolabilidade de dados referentes à vida privada só tem pertinência para aqueles associados aos elementos identificadores usados nas relações de convivência, as quais só dizem respeito aos que convivem. Dito de outro modo, os elementos de identificação só são protegidos quando compõem relações de convivência privativas: a proteção é para elas, não para eles. Em consequência, simples cadastros de elementos identificadores (nome, endereço, RG, filiação, etc) não são protegidos. Mas cadastros que envolvam relações de convivência privada (por exemplo, nas relações de clientela, desde quando é cliente, se a relação foi interrompida, as razões pelas quais isto ocorreu, quais os interesses peculiares do cliente, sua capacidade de satisfazer aqueles interesses, etc) estão sob proteção" (AGOSTINI, Leonardo Cesar. A Intimidade e a vida privada como expressões da liberdade humana. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2011, p. 107-126).
50. A privacidade foi conquista, não tendo sido sempre considerada direito, menos ainda qualificada como fundamental. No Brasil, as senzalas testemunham a ausência de privacidade, luxo conhecido pelos moradores da casa grande.
Para alguns, as origens da intimidade como direito estariam em seu primeiro defensor no Estado moderno, Jean-Jacques Rousseau:
"Um dos maiores expoentes desse movimento foi Jean-Jacques Rousseau, considerado por muitos como precursor da defesa da intimidade. Hanna Arendt e Celso Lafer identificam Rousseau como o primeiro defensor da intimidade (ARENDT, Hannah. A condição humana, p. 48; LAFER, Celso, A reconstrução dos direitos humanos, p. 266). Por outro lado Pérez-Luño indica que na Espanha Truyol y Serra e Ramón Villanueva Etcheverría defendem que raízes anteriores da intimidade seriam encontradas nos escritos de Santo Agostinho motivo pelo qual tais autores identificam Santo Agostinho como sendo o primeiro ocidental a conhecer e defender a intimidade (PÉREZ- LUÑO, Antônio Enrique. Derechos humanos. Estado de Derecho y Constitucion, p. 321). Também atribui a Santo Agostinho a origem da defesa da intimidade Norberto González Gaitano e seu livro El deber de respeto a la intimidad, pp. 39-40)" (AGOSTINI, Leonardo Cesar. Op. cit., p. 95).
A positivação da intimidade como direito é identificada por alguns autores como decorrência do movimento literário romântico do séc. XVIII, com a revalorização do sentimento em resposta ao excesso do racionalismo iluminista. É de Agostini o resumo histórico desse encaminhamento conceitual posteriormente positivado como direito autônomo e, agora, de sede constitucional:
"A modernidade, reconhecem os mais diversos autores, apresenta um solo fértil para germinação da semente de defesa da intimidade. É ali, naquele período, que um grupo de pessoas cria movimento artístico-literário (o romantismo) visando, dentre outros pontos, reservar um espaço de subjetivismo ao indivíduo. Com isso, objetiva- se resguardar o indivíduo de ingerências externas, no intuito de propiciar reflexão e o crescimento individual. Desenvolve-se assim um embrião da proteção da intimidade.
O embrião nasceu, mas pouco se desenvolveu. Apesar dos esforços dos idealizadores e simpatizantes do romantismo, a intimidade não logrou alcançar um lugar de maior destaque nas ordens jurídicas daquela época, uma vez que as pressões sociais não eram ainda tão grandes e ameaçadoras como as que atualmente se experimentam, além do que, a intimidade era vista muito mais como privilégio, do que, propriamente, direito.
A preocupação com a intimidade jaz adormecida até meados do século XIX quando volta a rondar a menta dos juristas. Para isso, vários fatores contribuíram. Até fins do século XIX as sociedades poderiam ser consideradas como sociedades predominantemente agrárias. (...) No entanto, no fim do século XIX e início do século XX (...) várias famílias saem do espaço rural migrando para os espaços urbanos. Isso provoca um inchaço das cidades o que instaura, nos dizeres de Nelson Saldanha, uma primeira crise na forma de convivência entre os indivíduos, a crise de 'saturação' das estruturas e dos resultados da própria vida urbana. (...) Com a falência do Estado liberal e a sua substituição pelo Estado social, cresce a intromissão do Estado no espaço que antes era privado e exclusivo do indivíduo. Ressurge o aforismo jurídico romano de que o público deve primar sobre o privado, acentuando-se, com isso, a intromissão do Estado das relações privadas. Sente-se, daí, forte ascendência da esfera pública sobre a esfera privada. O aumento da máquina pública provoca também o aumento do interesse das populações por informações sobre o exercício desse mesmo poder público. Mas não só informações sobre o exercício do poder político passam a ser objeto de interesse das populações urbanas. Também aumenta o interesse dos indivíduos sobre o que ocorre na sua comunidade. Essa curiosidade fomenta o desenvolvimento de novos meios de comunicação social. Esses novos meios de comunicação social surgem e propagam-se com rapidez, sem que o sistema jurídico tenha competência para regular-lhes. Diante da ausência de uma sólida regulamentação e, da avidez da notícia, muitos veículos passam a se intrometer cada vez mais nos espaços privados do cidadão, com a escusa de que a intimidade dos indivíduos poderia ser ofendida em nome do 'interesse público'.
Juntando então todos esses ingredientes (revolução urbana; advento do Estado social; primazia do público sobre o privado; fomentação da criação de diversos veículos de comunicação), se constata, facilmente, que a intimidade passou a ser fortemente ameaçada. (...) As duas grandes guerras mundiais do século XX não forma só palco de atrocidades cometidas contra os indivíduos. Elas foram a justificativa perfeita para que o homem acelerasse o desenvolvimento de novas tecnologias. A medida que a guerra avançava, os exércitos cada vez mais exigiam de seus corpos de inteligência o desenvolvimento de armas que pudessem ajudar a combater os inimigos. Nesse sentido, surgem lentes e microfones de alto alcance, binóculos com visão noturna, interne, além de vários outros incrementos tecnológicos que até então se mostravam inimagináveis.(...) E isso provoca grandes tensões sociais na media em que tais instrumentos facilitam a bisbilhotice, o enxerimento, a invasão da esfera privada do cidadão. (...) Autores afirmam que a técnica trouxe consigo uma própria barbárie, uma barbárie que ignora as realidades afetivas propriamente humanas. Nesse sentido, o cidadão da sociedade tecnologicamente avançada passa a se sentir arrepiado e atemorizado porque presume que as conquistas do progresso se veem contrapostas por graves ameaças à sua liberdade, sua identidade ou, quem sabe, à sua própria sobrevivência" (AGOSTINI, Leonardo Cesar. Op. cit., p. 97-99).
J. J. Canotilho e Vital Moreira sustentam que
"o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar analisa-se principalmente em dois direitos menores: (a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem. Alguns outros direitos fundamentais funcionam como garantias deste: é o caso do direito à inviolabilidade do domicílio e da correspondência, da proibição de tratamento informático de dados referentes à vida privada. Instrumentos jurídicos privilegiados de garantia deste direito são igualmente o sigilo profissional e o dever de reserva das caras confidenciais e demais papéis pessoais" (CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa anotada. Vol. I. 4. ed. Coimbra Editora: Coimbra, 2007, p. 467-468).
Igual dificuldade é apontada, por exemplo, por Sílvio Romero Beltrão:
"Dentro da categoria individual, Hubmann propõe uma subdivisão daquilo que integra a individualidade da pessoa, apresentando três esferas desta individualidade: a individual, a privada e a secreta. O círculo externo seria abrangido pela esfera individual, que define o homem socialmente, com sua unicidade e no seu modo de ser próprio, nomeadamente a identificação pessoal, o nome, a imagem, a honra, a palavra escrita e falada. A esfera privada, também denominada esfera da confiança, seria aquela em que somente poucas pessoas estariam autorizadas a participar, geralmente representadas por laços de parentesco ou amizade; na esfera privada, a pessoa salvaguardaria os seus aspectos íntimos e privados do conhecimento público, embora possam ser conhecidos por um número limitado de pessoas. No menor dos círculos estaria a esfera secreta, com o objetivo especial de preservar a mais íntima camada do indivíduo, garantida pela reserva mental de cada pessoa. Segundo Hubmann, abarcaria ações, expressões e pensamentos de que ninguém deve tomar conhecimento, a não ser, quando muito, de um círculo mais limitado de parentes, e relativamente aos quais persiste um interesse de guardar segredo" (BELTRÃO, Silvio Romero. Direitos da personalidade. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 145).
51. Tradicionalmente, no direito brasileiro, a matéria relativa à tutela da inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa foi deixada ao cuidado da legislação infraconstitucional. O Direito Civil e o Direito Penal contemplaram sempre forma de reparação do ilícito civil ou penal pelo dano causado pela ofensa àqueles direitos.
Ainda que implícito nas Constituições anteriores, a tutela ao direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem foi relegada ao ordenamento infraconstitucional, pela tipificação dos crimes contra a honra, constantes do Código Penal Brasileiro de 1940, no Capítulo V, arts. 138 a 145, e, posteriormente, pelo direito privado, como espécie de direito de personalidade.
A constitucionalização expressa da inviolabilidade do direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem é recente, por isso remanescem dificuldades na aceitação como direitos fundamentais opostos não apenas ao agir estatal, mas também aos particulares.
52. Foi preciso conquistar o reconhecimento de constituir direito fundamental de cada pessoa o direito de ser igual a todos os outros no que diz com a dignidade, essência da nossa humanidade; e o direito diferente de todos os outros no que diz com a nossa singularidade, essência da nossa identidade humana única e insubstituível.
O acúmulo e as possibilidades de obtenção/divulgação de dados a respeito de todos e de cada pessoa já não parecem compatíveis com o direito consubstanciado na fala de atriz famosa: "I want to be alone". Teve êxito. Hoje, a dificuldade em ser deixado em paz, respeitado o desejo de ficar só com os seus dados, controlando o que quer, pretende e aceita seja posto a público, ou, na fórmula camoniana, ser deixada posta em sossego, esbarra na quase ganância pelos dados que circulam, como fatos, fotos, versões e até inversões sem controle.
Stefano Rodotà anota que, no atual quadro global,
"indicando os riscos ligados à difusão dos computadores e tentando elaborar estratégias de defesa capazes somente de afastar os temores de uma iminente chegada do 1984 de Orwell ou do Brave New World por Aldous Huxley. (...) seguindo essa estrada, logo percebemos a inadequação das tradicionais definições jurídico- institucionais diante dos novos problemas impostos pela realidade dos sistemas informativos atuais. (...) Se este é o quadro global a ser observado, não é mais possível considerar os problemas da privacidade somente por meio de um pêndulo entre ´recolhimento´ e ´divulgação´, entre a ´casa-fortaleza´, que glorifica a privacidade e favorece o egocentrismo, e a ´casa-vitrine´, que privilegia as trocas sociais e assim por diante" (RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância. Rio de Janeiro: Renovar, p. 25).
53. Sejam como forem consideradas e conceituadas intimidade e privacidade, duas observações se impõem para os fins de interpretação das normas civis questionadas e sua compatibilidade com esses direitos constitucionalmente assegurados.
A primeira refere-se à circunstância constitucional de se distinguirem intimidade e privacidade para os fins de definição do seu conteúdo na forma protegida no sistema jurídico fundamental brasileiro e de sua eficácia social.
A segunda respeita à esfera de sua definição, que não é a mesma para todos, pois o maior ou menor resguardo de espaço indevassável da vida pessoal aos olhos dos outros altera-se de acordo com a escolha feita pelo sujeito de direito a submeter-se a atividade que a) componha, ou não, os quadros de agentes das instituições estatais, sujeitas estas à transparência plena para ciência e controle dos cidadãos. Vem dos Antigos que aquele que não se quer expor ao público há de se manter nos umbrais da porta de casa, em cujo espaço, naquele período histórico, era sinônimo de segredo; b) promova as suas atividades em público e para o público, do qual extraia a sua condição profissional e pessoal, difíceis como são os lindes de uma e outra quando o nome, a profissão ou a função extraem do público o seu desempenho e do qual dependa o seu êxito. Quem busca a luz não há de exigir espaço intocado de sombra; ou
c) extraia ou retire dos cidadãos, pelo exercício de sua função ou atividade, os ganhos materiais, profissionais ou de reconhecimento, com os quais se dá a viver, pelo que há de ser por eles conhecido.
Em qualquer dessas hipóteses, o indivíduo sujeita-se – quando não busca – conhecimento e reconhecimento público, não se podendo negar a tolerar, quando não quiser, que esse mesmo público busque dele conhecer. Não se há de pretender, assim, contar com o mesmo espaço de indevassabilidade que fixa os limites da privacidade de alguém que nada quer nem pretende do público em sua condução de vida.
A inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa tem, na Constituição da República, a resposta ao caso de desobediência a essa regra, pois é sabido que o homem descumpre normas. Os contratos de confidencialidade, por exemplo, mais comuns hoje em dia, têm por objetivo obrigar os indivíduos que convivem proximamente a fazer silêncio sobre o que virem e ouvirem do outro ou no espaço do outro.
Nem assim se supera a curiosidade que permite a vivência com o outro. Basta ler Gay Talese. Aprende-se que há como se contornar a proibição, seja ela de qualquer natureza ou vigor.
54. Por isso os textos normativos também insistem em aceitar restrições, mas por prever-se também as formas de se repararem eventuais abusos. A Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão preceitua:
"10. As leis de privacidade não devem inibir nem restringir a investigação e a difusão de informação de interesse público. A proteção à reputação deve estar garantida somente através de sanções civis, nos casos em que a pessoa ofendida seja um funcionário público ou uma pessoa pública ou particular que se tenha envolvido voluntariamente em assuntos de interesse público. Ademais, nesses casos, deve-se provar que, na divulgação de notícias, o comunicador teve intenção de infligir dano ou que estava plenamente consciente de estar divulgando notícias falsas, ou se comportou com manifesta negligência na busca da verdade ou falsidade das mesmas.
11. Os funcionários públicos estão sujeitos a maior escrutínio da sociedade. As leis que punem a expressão ofensiva contra funcionários públicos, geralmente conhecidas como "leis de desacato", atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação".
A Lei brasileira n. 8.730, de 1993, estabelece a obrigatoriedade da declaração de bens e rendas para o exercício de cargos, empregos e funções nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, a fim de informar-se o público com o que conta e como vive ou pode viver o agente público, obrigação repetida como norma de conduta ética obrigatória no art. 4º do Código de Conduta da Alta Administração Pública do País.
Na tentativa de aperfeiçoar os mecanismos para garantia do direito à informação sobre a condição e a condução dos agentes públicos no desempenho público e particular, que pode gerar a desconfiança do cidadão, formulou-se a Lei n. 12.527, de 2011, para garantir a transparência dos dados pessoais – normalmente, mas não somente – dos agentes públicos, prevendo-se:
"Art. 3º Os procedimentos previstos nesta Lei destinam-se a assegurar o direito fundamental de acesso à informação e devem ser executados em conformidade com os princípios básicos da administração pública e com as seguintes diretrizes:
I- observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção;
II- divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações;
III- utilização de meios de comunicação viabilizados pela tecnologia da informação;
IV- fomento ao desenvolvimento da cultura de transparência na administração pública;
V- desenvolvimento do controle social da administração pública".
Buscou-se, neste Supremo Tribunal, impedir a divulgação ampla de dados sobre ganhos de servidores públicos, o que foi negado ao argumento de os bens que compõem o acervo recebido pelo agente público interessar aos cidadãos, não havendo motivo para não se dar à sociedade a informação pretendida:
"AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. PRINCÍPIOS DA PUBLICIDADE E DA TRANSPARÊNCIA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO À INTIMIDADE E À PRIVACIDADE. DISTINÇÃO ENTRE A DIVULGAÇÃO DE DADOS REFERENTES A CARGOS PÚBLICOS E INFORMAÇÕES DE NATUREZA PESSOAL. OS DADOS PÚBLICOS SE SUBMETEM, EM REGRA, AO DIREITO FUNDAMENTAL DE ACESSO À INFORMAÇÃO. DISCIPLINA DA FORMA DE DIVULGAÇÃO, NOS TERMOS DA LEI. PODER REGULAMENTAR DA ADMINISTRAÇÃO. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. I – O interesse público deve prevalecer na aplicação dos Princípios da Publicidade e Transparência, ressalvadas as hipóteses legais. II – A divulgação de dados referentes aos cargos públicos não viola a intimidade e a privacidade, que devem ser observadas na proteção de dados de natureza pessoal. III – Não extrapola o poder regulamentar da Administração a edição de portaria ou resolução que apenas discipline a forma de divulgação de informação que interessa à coletividade, com base em princípios constitucionais e na legislação de regência. IV – Agravo regimental a que se nega provimento" (RE n. 766.390-AgR/DF, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, DJ 15.8.2014).
O olhar do outro, no entanto, não se atrai apenas pelo que se refere aos ocupantes de cargos públicos. O afã de se dizer e saber do outro, aqui como em outros lugares, não é desconhecido.
No conhecido Caso Balzac, a viúva daquele escritor francês recorreu à Justiça contra Alexandre Dumas (pai), por projetar erigir estátua em homenagem àquele autor. O Tribunal francês concluiu que homenagem prestada a pessoa notória independe de autorização da família.
Recentemente, ganhou espaço público o caso levado aos tribunais pela princesa Caroline de Mônaco. Em dois processos, a Princesa de Mônaco, Caroline von Hanover, buscou impedir a divulgação sobre eventos publicados sobre seus atos.
No caso Von Hanover versus Germany, de 2004, na Corte Europeia de Direitos Humanos, a Interessada alegou ofensa à privacidade (art. 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos), pela divulgação de fotos suas, em atividades cotidianas, com os filhos, acompanhada por ator ou sozinha. A Corte concluiu que as fotos referiam-se a situações particulares da vida de determinada mulher, que em nada interferiam ou contribuíam para debate de interesse público, critério então definido como decisivo a ser adotado para o balizamento entre o resguardo da privacidade assegurado pelo direito e a liberdade de expressão e comunicação, também reconhecido como direito fundamental.
Em 2012, a Corte Europeia de Direitos Humanos julgou outro caso apresentado pela mesma Autora, Caroline Von Hanover, princesa de Mônaco. Nesse processo, também atuou como Autor Ernst August Von Hanover. A alegação era transgressão ao mesmo dispositivo 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos e o objeto da inobservância da norma era provada pela divulgação de fotos com artigos descrevendo situações que diriam respeito à sua vida privada.
Diferente da conclusão antes adotada, a Corte decidiu, nesse momento, inexistir a pretensa contrariedade: a matéria tratava da doença do Príncipe Rainier, pai da princesa, e relatava o que teria sido a ausência da assistência a ele devida pela filha. Considerando as funções das pessoas noticiadas, a natureza das atividades e os fins de elucidação das relações entre as figuras da monarquia monegasca, a Corte concluiu que o público não tinha por que não ter ciência do que se passava e julgou inexistente o direito que se alegava ofendido.
A Corte Europeia, no segundo processo, adotou como critérios de decidir: a natureza da função exercida pela pessoa retratada, a natureza da atividade exercida, a conduta anterior em relação às fotos obtidas, o conteúdo e a forma de se dar a público o que retratado, as circunstâncias em que tiradas as fotos. Para a Corte, os critérios definidores da decisão fizeram pender a balança no sentido da garantia do direito à informação, no direito/dever de informar e na garantia de ser informado.
Não se alegue estar-se diante de circunstâncias que respeitam sempre a quem exerce cargo do povo, pelo que o público deveria dele saber, não se podendo escusar de deixar que a plena luz incida sobre todos os setores da vida. Primeiro, porque há sempre espaço de indevassabilidade e segredo no íntimo da pessoa, de parco ou nenhum conhecimento dos outros. Segundo, porque quem faz a sua vida e profissão na praça pública, com a presença e a confiança do povo, e angaria o prestígio que o qualifica e enaltece, não há de pretender esquivar-se desse mesmo público segundo o seu voluntarismo, como se a praça fosse mecanismo virtual, com botão de liga/desliga ao sabor do capricho daquele que buscou fazer-se notório. A notoriedade tem preço fixado pela extensão da fama, quase sempre buscada. Quando não, mas ainda assim é obtida, a fama cobra pedágio: o bilhete do reconhecimento público, que se traduz em exposição do espaço particular, no qual todos querem adentrar.
55. A proteção à honra e à imagem da pessoa fez-se objeto de preocupação dos legisladores desde muito.
Honra, conforme ensina Nelson Hungria, há de ser entendida como
"o bem material (...) entendida esta, quer como o sentimento de nossa dignidade própria (honra interna, honra subjetiva), quer como o apreço e respeito de que somos objeto ou nos tornamos merecedores perante os nossos concidadãos (honra externa, honra objetiva, reputação, boa fama). Assim como o homem tem direito à integridade do seu corpo c do seu patrimônio econômico, tem-no igualmente à indenidade do seu amor-próprio (consciência do próprio valor moral e social, ou da própria dignidade ou decoro) e do seu patrimônio moral. Notadamente no seu aspecto objetivo ou externo (isto é, como condição do indivíduo que faz jus à consideração do circulo social em que vive), a honra é um bem precioso, pois a ela está necessariamente condicionada a tranquila participação do indivíduo nas vantagens da vida em sociedade. Como diz CATHBEIN, "a boa reputação ó necessária "ao homem, constituindo o indispensável pressuposto ou "base, por assim dizer, de sua posição e eficiência social. " Os homens de bem somente se acercam daqueles que gozam " de boa fama. Se alguém adquire má fama, dele se afastam os conhecidos e amigos, e não mais é tolerado nas boas "rodas. Estará êle privado da confiança e prestígio com que " a sociedade resguarda os homens de bem. Sem boa reputação, além disso, é impossível alcançar ou exercer com " êxito postos de relevo, influência ou responsabilidade, porque os mal- afamados não merecem confiança" (HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1958, v. VI, p. 39).
Nelson Hungria adverte a permanente preocupação e o cuidado do direito com a honra protegida pelo Estado desde a Antiguidade:
"Entre todos os povos e em todos os tempos, depara-se a noção da honra como um interesse ou direito penalmente tutelável. Já nas leis de Manu eram objeto de punições as imputações difamatórias e as expressões injuriosas. Na Grécia, os crimes contra a honra eram previstos na legislação de SOLON. Em Roma, desde a mais remota época, eram punidas as ofensas ao illesae ãignatatis status, moribus ac legibus comprobatus. A honra, entre os romanos, era como um direito público dos cidadãos, cujos fatos lesivos desse status (carmen famosum, contumelia, conviclum, libellus famosus) eram compreendidos no conceito amplíssimo da injúria: "Generaliter injuria dicitur, omne quoã non jure fit; specialiter, alias contumelia quae a contemnendo dieta est, quam Graeci ébrin appelant... injuria autem committitur, non solum... sed et st convicium jactam fue-rit;... vel si quis aã infamiam alicufus libeüum aut carmen scripserit, cumposuertt, ediderit" (Inst., IV, 4, pr., e § 1.°). Na Idade Média, o direito canônico ocupava-se das ofensas à honra, notadamente do pasquttlus, do Ubettus famosus e da detractio, correspondendo esta à moderna difamação ("âctractio famae alterius -publica seu coram muttis jacta et cum âirecta vel indirecta intentione alterius infamiam in pu-blicum propalandi"). Os práticos, reproduzindo o conceito romanístico da injúria incluíram os crimes contra a honra e boa fama.
No direito germano-bárbaro, entretanto, já eram tratadas distintamente a lesão à honra, (laesio famae) como a lesão corporal (laesio in corpore); mas só em época relativamente moderna foi que os crimes contra a honra passaram a constituir uma classe autônoma, perfeitamente escondida pela sua especial objetividade jurídica" (HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1958, v. VI, p. 39).
No Código de Hamurabi, dispõe-se que "se alguém difama uma mulher consagrada ou a mulher de um homem livre e não pode provar se deverá arrastar esse homem perante o juiz e tosquiar-lhe a fronte" (IX – injúria – 127º).
56. Fontes mais recentes e que chegaram a ser aplicadas no Brasil, as Ordenações contêm regras que expressam a preocupação com o dizer sobre o outro em assunto não público ou configurador de inverdade.
As Ordenações Filipinas, mandadas observar em 1603, traziam normas que se observaram no Brasil até o advento do Código Civil de 1916 e cuidaram dos segredos, sua ruptura, difamação e injúria e as penas a serem imputadas aos que adotavam comportamentos proibidos:
"Título VIII – Dos que abrem as Cartas del Rey, ou da Rainha, ou de outras pessoas.
Qualquer, que abrir nossa Carta, assinada per Nós, em que se contenhão cousas de segredo, que specialmente pertenção à guarda de nossa pessoa, ou stado, ou da Rainha, minha mulher, ou do Príncipe, meu filho, ou à guarda e defensão de nossos Reinos, e descobrir o segredo dela, do que a nós poderia vir algum prejuízo, ou desserviço, mandamos que morra por isso.
... E se as ditas Cartas nos sobreditos casos abrir, e não descobrir os segredos, dellas, se for Scudeiro, ou pessoa de igual, ou maior condição, perca os bens, que tiver, para a Coroa do Reino, e seja degradado para a Africa para sempre; e se tal não for, além do dito degredo, seja publicamente açoutado.
E se somente abrir outras nossas Cartas cerradas, que forem assignadas por Nós, em que mandamos dizer algumas cousas que a Nós apraz, ou que pertencem a nosso serviço, que não são taes, como as que acima declaramos, ou abrir Cartas, que para Nós vierem, de qualquer pessoa que sejão, do que lhe aprouver, ou pertencer a nosso serviço, se for Scudeiro, ou de semelhante ou maior condição seja degradado quatro annos para a Africa, e seja riscado de nossos livros, se for nosso morador.
E se não for de dita qualidade, seja publicamente açoutado e degradado dous annos para a Africa".
Naquele documento, cuidava-se ainda da descoberta e divulgação de segredos:
"Título IX –
Das pessoas do Conselho del-Rey, e desembargadores, que descobrem o segredo.
Toda a pessoa de nosso Conselho, de qualquer stado e condição que seja, que descobrir os segredos, que Nós com ella em Conselho praticarmos e falarmos, em cousas, que specialmente pertenção à guarda de nossa pessoa, ou stado, ou da Rainha, ou Príncipe, ou guarda e defensão de nossos Reinos, ou de cousas, de que a eles se possa seguir algum dano, ou a Nós prejuízo, ou desserviço, morra por isso morte natural.
E se o segredo for de outras cousas, que pertenção a nosso serviço, que não são da qualidade das acima ditasl, o que o descobrir, será degradado para Africa até nossa mercê, e ficará infame e privado de mais ser do nosso Conselho."
"Título X –
Do que diz mentira a El-Rey em prejuízo de alguma parte Mandamos que toda a pessoa, que nos vier dizer mentira, em prejuízo de alguma parte, e sobre o que nos assi disser, não impetrar Alvará nosso, seja degradado dous annos, para Africa, e pague vinte cruzados para a parte, em cujo prejuízo nos assi disse a mentira, e mais ficará em arbítrio do Julgador dar-lhe mór pena, segundo a qualidade da pessoa, em cujo prejuízo for, e da cousa, que nos assi disse, e assi de julgar à parte sua injúria, se for caso de injúria".
57. O cuidado do direito com a proteção da honra passou a ser constitucionalmente tratado por respeitar dimensão do direito à vida digna da pessoa. Antes esse tratamento era civil e entendia-se como relação intersubjetiva no plano das relações privadas. Marcelo Malizia Cabral, por exemplo, menciona:
"A honra, entendida como projeção na consciência social do conjunto de valores pessoais de cada indivíduo, desde os emergentes de sua mera pertença ao gênero humano até aqueloutros que cada indivíduo vai adquirindo através do seu esforço social, encontra-se protegida pela Carta Civil e pelas Constituição portuguesas, ainda que genericamente, em dispositivos próprios, assim como pela ordem jurídica internacional. A honra juscivilisticamente tutelada abrange a projeção do valor da dignidade humana, que é inata, ofertada pela natureza igualmente a todos os seres humanos, insuscetível de ser perdida por qualquer homem em qualquer circunstância.Em sentido amplo, inclui também o bom nome e a reputação, enquanto sínteses do apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade da cada indivíduo nos planos moral, intelectual, sexual, familiar, profissional ou político. Engloba, ainda, o simples decoro, como projeção dos valores comportamentais do indivíduo no que se prende ao trato social e o crédito pessoal, como projeção social das aptidões e capacidade econômicas desenvolvidas por cada homem" (CABRAL, Marcelo Malizia. "A colisão entre os direitos de personalidade e o direito de informação". In MIRANDA, Jorge; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; BONATO FRUET, Gustavo (orgs.). Direitos da personalidade. São Paulo: Atlas, 2012, p. 118-119).
A intimidade, a privacidade, a honra e a imagem da pessoa constituem conteúdos insujeitos ao desrespeito de alguém, a configurar agir ilegítimo. No art. 5º, inc. X, da Constituição da República, preceitua- se a forma de se reparar dano advindo da transgressão a tal comando porque se reconhece que a contrariedade pode ocorrer.
Para Ingo Sarlet,
"A honra de uma pessoa (tal qual protegida como direito fundamental pelo art. 5º, X, da CF) consiste num bem tipicamente imaterial, vinculado à noção de dignidade da pessoa humana, pois diz respeito ao bom nome e à reputação dos indivíduos. A esse propósito convém relembrar, a exemplo do que se deu de modo geral com os direitos de personalidade, que o direito à honra, na condição de direito fundamental expressamente positivado, não constituiu, durante muito tempo, figura amplamente representada nos catálogos constitucionais de direitos, o que se deu mesmo no plano internacional, onde, para além da Declaração Universal da ONU (art. 12) e do art. 17 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o direito à honra nem sempre se faz presente, visto ser comum que os textos constitucionais e documentos internacionais se refiram—quando é o caso—ao direito ao bom nome e/ou à reputação. Também o direito à honra, em função da sua dupla dimensão subjetiva e objetiva, opera tanto como direito de defesa (direito negativo) quanto como direito a prestações (direito positivo), em que pese à prevalência do perfil "negativo'', visto que, em primeira linha, o direito à honra, como direito subjetivo, implica o poder jurídico de se opor a toda e qualquer afetação (intervenção) ilegítima na esfera do bem jurídico protegido. Dito de outro modo cuida-se do direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por terceiros, bem como do direito de defender-se em relação a tais ofensas e obter a competente reparação, que, de acordo com a ordem jurídica brasileira, abrange tanto a reparação na esfera criminal (por conta, em especial, dos delitos de calúnia, injúria e difamação, tipificados no Código Penal), quando em sede cível, de vez que o próprio art. 5º, X, da CF, que assegura o direito à honra, também contempla o direito à indenização pelo dano material e mora decorrente de sua violação. O direito à honra, no quadro dos limites aos direitos fundamentais, também não se reveste de caráter absoluto, mas desempenha papel relevante na condição de limite ao exercício de outros direitos fundamentais, em especial das liberdades de expressão (informação, imprensa, manifestação do pensamento). Embora no plano do direito à honra, diferentemente do que se dá com o direito à privacidade, não se justifique urna proteção em princípio menos intensa do direito à honra na esfera política do que na esfera pessoal, o direito à informação favorece uma interpretação generosa, sempre à luz do caso concreto, em relação à liberdade de expressão" (SARLET, Ingo Wolfgang. Op. cit., p. 436-439).
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal contempla multiplicidade de situações nas quais versada essa matéria, por exemplo:
"INDENIZAÇÃO. Responsabilidade civil. Lei de Imprensa. Dano moral. Publicação de notícia inverídica, ofensiva à honra e à boa fama da vítima. Ato ilícito absoluto. Responsabilidade civil da empresa jornalística. Limitação da verba devida, nos termos do art. 52 da lei 5.250/67. Inadmissibilidade. Norma não recebida pelo ordenamento jurídico vigente. Interpretação do art. 5º, IV, V, IX, X, XIII e XIV, e art. 220, caput e § 1º, da CF de 1988. Recurso extraordinário improvido. Toda limitação, prévia e abstrata, ao valor de indenização por dano moral, objeto de juízo de equidade, é incompatível com o alcance da indenizabilidade irrestrita assegurada pela atual Constituição da República. Por isso, já não vige o disposto no art. 52 da Lei de Imprensa, o qual não foi recebido pelo ordenamento jurídico vigente" (RE n. 447.584/RJ, Relator o Ministro Cezar Peluso, Segunda Turma, DJ 16.3.2007).
58. Diferente da honra é a imagem, que, para Maria Helena Diniz, traz duplo significado:
"A imagem-retrato é a representação física da pessoa como um todo ou em partes separadas do corpo, desde que identificáveis, implicando o reconhecimento de seu titular por meio de fotografia, escultura, desenho, pintura, interpretação dramática, cinematografia, televisão, sites: etc., que requer autorização do retratado (CF de 1988, art. 5º; X). E a imagem-atributo é o conjunto de caracteres ou qualidades cultivadas pela pessoa reconhecidos socialmente (CF de 1988, art. 5º, V). Abrange o direito: à própria imagem, ao uso ou à difusão da imagem; à imagem das coisas próprias e à imagem em coisas, palavras ou escritos ou em publicações; de obter imagem ou de consentir em sua captação por qualquer meio tecnológico. O direito à imagem é autônomo, não precisando estar em conjunto com a intimidade, a identidade, a honra etc. Embora possam estar, em certos casos, tais bens a ele conexos, isso não faz com que sejam partes integrantes um do outro" (DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 29).
A imagem recebe tratamento jurídico diferente dos demais itens, por comportar regime diferente, sendo permitida a divulgação quando a pessoa tiver notoriedade, o que não constitui anulação do direito à intimidade e à privacidade, mas diminui o espaço de indevassabilidade protegida constitucionalmente.
A notoriedade torna a pessoa alvo de interesse público pela referência, pelo destaque no campo intelectual, artístico, moral, científico, desportivo ou político. Quando o interesse advier de ou convier às funções sociais desempenhadas ou delas decorrer ou para a compreensão concorrerem as informações que extrapolem as linhas da quadra de jogo ou desempenho, a busca, produção e divulgação de informações não é ilegítima, nem pode ser cerceada sob o argumento de blindar-se a pessoa com a inviolabilidade constitucionalmente assegurada.
59. Estes são os direitos fundamentais assegurados no sistema interno brasileiro e em normas de direito internacional, que não poucas vezes têm sido considerados desrespeitados – ressalva feita ao direito à liberdade de informação e de ser informado – por pessoas que se veem sujeitos de estudos, pesquisas, obras, nas quais suas vidas são relatadas e os escritos produzidos e divulgados, independente de autorização da narrativa e das versões do autor da produção.
A determinação do recolhimento de obras produzidas, por decisão judicial em atendimento ao pleito do sujeito sobre o qual se escreve ou de seus familiares, ou o impedimento da produção da obra biográfica pela ausência de autorização, fundamenta-se atualmente nos arts. 20 e 21 do Código Civil:
"Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma".
60. O ponto central da discussão posta na presente ação é exatamente como interpretar esses dispositivos de modo a, sem exclusão do texto do sistema, por declaração de vício de inconstitucionalidade, torná-lo compatível com os princípios constitucionais, assecuratórios de direitos fundamentais, em caso de biografia produzida sem autorização.
VI. Biografia e liberdades individuais e públicas
61. Na obra O vendedor de passados, José Eduardo Agualusa dá voz a artista brasileira, que cantaria: "Nada passa, nada expira, o passado é um rio que dorme e a memória uma mentira multiforme".
As pessoas morrem, mas não passam. Pela singularidade, pela condição única no mundo, a vida segue como rio, mas as marcas da sequência fazem o traçado do que foi e do que tende a ser. Com o homem é igual. Especialmente alguns vivem para além da sua vida e a amostragem de sua experiência, mesmo quando ainda em plena ebulição, desperta curiosidade. Ninguém se engane: o buraco da fechadura atrai. Às vezes trata-se apenas de curiosidade malsã, outras, de vontade de saber o que há no quarto trancado. Segredo é comichão no olhar. As portas hoje não têm tranca, mas se selam mais as casas que antes. E há as câmeras que, a propósito de segurança, gravam, mostram e espalham-se em redes que repercutem no mundo em questão de segundos o que se quer e o que não se deseja mostrar. O tempo é outro. Não adianta chorar. "Sorria, você está sendo filmado".
62. Não constitui tarefa fácil identificar a natureza da obra biográfica. Menos dificultoso é identificar a obra biográfica.
Sobre o primeiro item muito se tem escrito na história e na literatura. De literatura a historiografia, de obra literária a produto investigativo, a biografia é gênero que caminha ao lado do andar histórico da humanidade.
Para André Maurois, não há tipo único de obra biográfica:
"se puden admirar muy sinceramente las cualidades de un tipo de biografia, admitiendo, sin embargo, que existe otro. Leed una página de una biografia victoriana, y leed en seguida uns pagina de Stranchey. Veréis inmeidatamente que tenéis ante vuestros ojos dos tipos diferentes de libros" (MAUROIS, André. Aspectos de la biografia. Ediciones Ercilla: Santiago de Chile, 1935, p. 16).
Para esse autor, na atualidade, o objeto da biografia é a transmissão verídica de uma personalidade, do qual decorre o
"doble problema de la biografia ... de un lado, está la verdad; del otro, la personalidad. Y si pensamos en la verdad como en algo que tiene la solidez del granito, y en la personalidad como en algo que tiene la intangibilidad del arco iris; si reflexionamos que el fin de la biografia es el de reunir esos dos aspectos en un todo sin costura visible, admitiremos que el problema es difícil y no nos assombraremos si, para la mayoria, los biógrafos no tienen éxito en resolverlo. Porque la verdad, de la que habla Sidney, la verdad que pide la biografia, es la verdad bajo su forma más dura, más resistente; es la verdad como se la encuentra en el museo britânico; es la verdad de la que se há expelido todo vapor de falsedad por la presión de la investigación" (MAUROIS, André. Op. cit., p. 16).
Edgard Cavalheiro aponta que, mesmo em períodos de decréscimo em todos os gêneros literários, não há recuo no interesse pelas biografias. A literatura, como a historiografia, tenta explicar as razões desse interesse, que ultrapassa o interesse apenas por figuras de destaque e referência até a busca de conhecer e escrever sobre a vida de pessoas comuns para a compreensão da forma de viver em determinado momento e em certa comunidade estudados.
Não há apenas uma teoria na qual se enquadrar a obra biográfica, nem há apenas uma razão para se chegar à escolha de tal gênero literário na busca de se passar do particular para o plural e também, não poucas vezes, da coletividade, que tenha absorvido o jeito e a influência de alguém, para o particular.
63. De Plutarco a Michelet, de Suetônio a Lytton Strachey, o gênero literário mudou, passando a dar vida aos biografados em dimensões muito além da roupagem aprontada e empoada, retrato com pose e enquadramento.
O biografado humanizou-se. A vida grafada estendeu-se. O interesse multiplicou-se. O retrato deixou de ser modelo produzido na praça, para o qual se preparou como se quis, como acontecia no popular "lambe- lambe". O retratista escarafunchou dentro de casa, na vida, na psique e incomodou.
No momento histórico em que a grafia da vida não esperou a morte e, mesmo morto, a família passou a questionar o relato, surgiu o conflito aparente de direitos fundamentais, núcleo da questão aqui posta e para a qual se pede solução.
64. Nenhuma discussão pende sobre os direitos fundamentais à vida digna, à liberdade de expressão, artística, científica e de comunicação. Tampouco padece de dúvida a inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem de cada pessoa.
A biografia é a escrita (ou o escrito) sobre a vida de alguém, relatando-se o que se apura e se interpreta sobre a experiência mostrada e que, não sendo mostrada voluntariamente, não foi autorizada pelo sujeito ou por seus familiares a ser transmitida para a coletividade.
As normas civis transcritas poderiam ser lidas como deixando esclarecido – mas nem tanto – que, sem autorização prévia dos biografados, não se poderia divulgar escritos, transmitir a palavra, publicar, expor a imagem de alguém que requeresse fosse proibido, sem prejuízo de ainda ser indenizado se tal comportamento lhe atingisse a honra, a boa fama ou a respeitabilidade e se se destinasse a fins comerciais.
– Biografia e história
65. Biografia é história. A história de uma vida, que não acontece apenas a partir da soleira da porta de casa. Ingressa na intimidade, sem que o biografado sequer precise se manifestar. A casa é plural. Embora seja espaço de sossego, a toca do ser humano, os que ali comparecem observam, contam histórias, pluralizam a experiência do que nela acontece.
O biógrafo busca saber quem é o biografado pesquisando a vida deste. Investiga, prescruta, indaga, questiona, observa, analisa, para concluir o quadro da vida, o comportamento não mostrado que ostenta o lado que completa o ser autor da obra que influencia e marca os outros.
A vida do outro há de ser preservada. A curiosidade de todos há de ser satisfeita. O biógrafo cumpre o segundo papel.
A intimidade, entretanto, respeita ao que
"a pessoa nunca ou quase nunca partilha com os outros, ou que comunga apenas com pessoas muitíssimo próximas, como a sexualidade, a afectividade, a saúde, a nudez; na esfera da privacidade, que é já mais ampla, incluir-se-iam aspectos de vida pessoal, fora da intimidade, cujo acesso a pessoa permite a pessoas das suas relações, mas não a desconhecidos ou ao público; a esfera pública abrangeria tudo o mais, aquilo que, na vida de relação e na inserção na sociedade, todos têm acesso" (VASCONCELOS, Pedro Pais. Direito de personalidade. Coimbra: Almedina, 2006, p. 80).
Esse espaço de quase segredo, entretanto, parece ser o que mais interessa ao pesquisador, ao biógrafo, que atende necessidades da história e a curiosidade das pessoas. Ressalto: o buraco da fechadura não foi esquecido, embora às vezes se busque ver até mesmo quando portas foram escancaradas. A busca por ver dentro do outro, com luzes e sombras, não tem fim.
Sem ver a totalidade da vida da pessoa, não há como conhecer a vida da figura que tenha marcado época, como sua obra foi elaborada, suas influências pretéritas e as que tenha provocado. O dilema entre o que foi e o que poderia ter sido, a luta do querer e do que se fez para se atingir, o que foi dor transformada em força, o que foi vigor desperdiçado e tornado obra de desabafo, tudo compõe a pessoa.
O mundo não é construção acabada, é permanente construir. Essa construção, especialmente a partir de figuras de referência, faz a história. Sem o saber dessas figuras, como avançar? Sem a autorização, como prosseguir?
Como conhecer a história para reprisar fatos bons e maus e repetir exemplos, negando os negativos, se a obra não pode ser mostrada? Como imaginar que novos holocaustos ocorram sem saber o que os envolveram, quem esteve à frente dos movimentos e como chegaram a seus atos? Como ignorar que é na privacidade que as coxias do poder estatal e social se engendram? Como saber como movimentos artísticos, científicos e políticos nasceram, suas causas, motivações e características se reuniram?
A biografia mostra a mesa do biografado, que, à maneira descrita de Paulo Mendes Campos, é a sua infância transformada em sonho futuro:
"Um homem é, primeiro, o pranto, o sal, O mal, o fel, o sol, o mar — o homem. Só depois surge a sua infância-texto, Explicação das aves que o comem.
Só depois antes aparece ao homem. A morte é antes, feroz lembrança Do que aconteceu, e nada mais Aconteceu; o resto é esperança".
66. Afirmou-se, no curso desta ação, que a biografia não estaria cerceada, apenas dependeria de autorização, porque as versões apresentadas poderiam comprometer a intimidade e a privacidade do biografado.
O argumento não convence: primeiro, porque a expressão é livre. Qualquer censura prévia é vedada no sistema. A autorização prévia constitui censura prévia particular. O recolhimento de obras após a divulgação é censura judicial, que apenas substitui a administrativa.
Segundo, a biografia autorizada é uma possibilidade que não exaure a possibilidade de conhecimento das pessoas, comunidades, costumes e histórias. Entre a história de todos e a narrativa de um, opta-se pelo interesse de todos.
Terceiro, a biografia autorizada não está proibida. Está não apenas permitida como pode ser estimulada. Deve-se levar em conta que a memória é traiçoeira. O mesmo fato pode ser lembrado com mecanismos cerebrais que impõem a seleção e até a recriação de fatos e casos que não foram o que a interpretação da pessoa sugere. Não se há de frustrar a história pela lembrança elaborada de uma única pessoa. Assim a humanidade não anda.
Quarto, a privacidade de quem sai à rua não pode ser considerada de igual quadrante da intimidade daquele que se mantém guardado em seu secreto quarto. Nem é que este não seja objeto de olhares. É que o seu dormente não abre a janela para resguardo pessoal constitucionalmente protegido.
As mulheres foram guardadas e silenciadas durante séculos. O seu silêncio fez a história das sobras das histórias que lhes foram reservadas. E foram contadas, até mesmo depois de sua passagem. Sem isso, não haveria como por elas e em nome delas lutar.
Os negros foram (em alguns lugares ainda são) segregados. Sem a narrativa, como saber que o sofrimento precisava ser sanado e superado? E como poderiam eles autorizar a grafia de vidas constrangidas e silenciadas?
Nem se lembrem os ditadores e tiranos de sempre. Sem a biografia, que eles jamais autorizariam, não haveria como saber história, pois a oficial estampa medalhas nos peitos e peitos bem passados em camisas de força nos adversários.
67. A biografia autorizada não está proibida. A não autorizada também não. Não se há de imaginar, porém, que a memória seja perfeita. A memória é enganosa. A autobiografia é imperfeita. Põe o olho no coração e a voz no ouvido. E não se escuta o que não é de agrado.
A leitura do direito há de se fazer no sentido de não se impedir que a cidadania saiba de sua história pelo interesse particular de quem fez história.
Temem-se versões equivocadas da história. Temem-se enganos e fraudes. O risco é compreensível e concreto, mas viver é arriscar. Há que se permitir o erro, para buscar-se o acerto. E garante-se a reparação sem tolher-se o direito do outro.
Aponta-se que o passado não importa na vida da pessoa. Tal assertiva, se não falsa, parece pelo menos equivocada. O passado compõe o que a pessoa se torna. E a interpretação plural de biografias variadas pode levar gerações futuras a chegar a conclusão sobre o que ocorreu, porque e como repetir, se positiva a experiência, ou evitar, em caso de episódios negativos.
A pesquisa histórica depende das biografias. É da vida e com as vidas que se estruturam as sociedades. Sociedade é todo composto de vidas singulares, mas que se erguem como esteios estruturadores das instituições e construtores de catedrais e capelas de gentes, ideias e costumes.
Viver conjuga-se no plural. Por isso, pode ocorrer que a escrita sobre a vida de alguém, tomado como referência propícia ao esclarecimento histórico, seja de natureza cultural, intelectual, artística ou científica, adentre espaços que se pretendam íntimos. Por isso argumenta-se que essas incursões seriam ilegítimas porque desrespeitariam a intimidade e da privacidade do biografado.
A autorização prevista na legislação civilista talvez tenha sido pretensão de se constituir em proteção jurídica asseguradora da inviolabilidade constitucionalmente prevista e sem a qual o rol de direitos fundamentais não tem plena eficácia relativamente ao Estado e aos particulares.
Não há, entretanto, como compatibilizar o que o direito garante como liberdade, assegurando a plena expressão, proibindo expressa e taxativamente qualquer forma de censura, definindo como direito fundamental a inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da privacidade e, para descumprimento dessa norma, prescrevendo a forma indenizatória de reparação, e norma de hierarquia inferior pela qual fixada regra para o exercício dessa liberdade, iniciando-se com a ressalva "salvo se autorizadas".
A Constituição da República garante a liberdade e a lei civil preconiza que o exercício não pode ser garantido salvo se autorizado pelo interessado!
68. Como a vida muda, a pessoa biografada ou seus familiares podem ver sombras nas paisagens retratadas do seu passado. Nem sempre tanto se quer.
Agualusa, em O Vendedor de Passados, alerta que "nada passa, nada expira, o passado é um rio adormecido, parece morto, mal respira, acorda-o e saltará num alarido".
Vida não é momento, é momentos que, juntos, formam o quadro da experiência relatada na biografia. Por isso, nos julgamentos sobre a matéria, não se esquece que o que foi vivenciado não pode ser extraído como não vida. A vida segue, mas não se esquece.
Celebrado como um dos mais decisivos processos julgados pelo Tribunal Constitucional da Alemanha, em 1958, o caso Lüth, como é conhecido, alterou a jurisprudência sobre direitos fundamentais e representou ponto de inversão na análise e no julgamento de lides nas quais se debatia o conflito aparente de direitos humanos com solução pela aplicação do critério de ponderação e balanceamento dos direitos em litígio.
O caso BVerfGE 7, 198, foi julgado pela Corte Constitucional Federal Alemã (Bundesverfassungsgericht) em 1958. O processo aborda o direito à liberdade de expressão do peticionário em emitir opinião contrária à distribuição de filme dirigido por Veit Harlan.
Cineasta famoso durante o regime nazista, responsável por filme de propaganda antissemita, sob encomenda de Joseph Goebbels, persistiu na profissão após a queda do Reich.
Na Semana de Filme Alemão de 1950, Erich Lüth, presidente de clube de imprensa de Hamburgo, dirigiu-se, em palestra, a empresários e a produtores cinematográficos, convocando-os a boicotar o realizador do filme Unsterbliche Geliebte, de Veit Harlam. Duas companhias de cinema moveram processo contra Lüth, com base na lei alemã de difamação. O tribunal Landgericht Hamburg ordenou que Lüth suspendesse a campanha de incentivo à não distribuição do filme e a que o público não o fosse assistir, sob pena de pagamento de fiança ou de ser preso.
Lüth, que, além de Presidente do Clube de Imprensa de Hamburgo, era membro do Senado de Hamburgo, recorreu à Corte Constitucional Federal Alemã, que decidiu a favor de Lüth, determinando ter sido o seu direito desrespeitado. A decisão do tribunal expressa a vinculação que os direitos fundamentais exercem sobre todo o ordenamento legal, incluído o Direito Civil (DO VALE, 2008). Para Jacco Bomhoff (2008), a relevância do caso Lüth se justifica pelas contribuições ao cuidado dos temas relativos aos direitos fundamentais. Marca o movimento em direção à aceitação da teoria da eficácia horizontal das normas constitucionais e a adoção da linguagem de balanceamento judicial para justificar decisões que envolvem direitos fundamentais. Confira-se trecho do julgamento que apresenta fundamento do tribunal para a decisão a favor de Erich Lüth:
"O que foi dito anteriormente sobre a relação entre os direitos fundamentais e o Direito Civil se aplica aqui também: "leis gerais" que tem efeito de limitação sobre um direito fundamental devem ser lidas à luz de seu significado e sempre ser construídas de forma a preservar o valor especial desse direito, com, em uma democracia livre, a presunção em favor da liberdade de expressão em todas as áreas, e especialmente na vida pública. Não podemos ver a relação entre direito fundamental e "leis gerais" no sentido de que as "leis gerais" por seus termos estabelecem limites ao direito fundamental, mas preferencialmente que a relação deve ser construída à luz do significado especial desse direito fundamental em um Estado democrático livre, de maneira que o efeito limitante das "leis gerais" sobre o direito fundamental seja, ele mesmo, limitado" (Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, BVerfGE 7, 198, 1958, tradução nossa).
A guinada hermenêutica do caso Lüth, dada pelo Tribunal Constitucional alemão, que passou a constituir os fundamentos da interpretação dos direitos fundamentais pelos tribunais em todo o mundo podem ser explicitadas, mais de cinquenta anos depois, por muitos de seus efeitos:
a) afirmaram-se os direitos fundamentais como primeira linha de direitos de defesa do cidadão contra o Estado;
b) fixou-se a irradiação da eficácia jurídica dos direitos fundamentais no direito infraconstitucional, definindo-se a sua eficácia também para os particulares;
c) ampliou-se o direito fundamental à liberdade de opinião, estabelecendo-se que o direito fundamental à liberdade de expressão garante mais que a livre manifestação de opinião, também o agir para influenciar outras pessoas, convencendo-as do que está convicto o autor;
d) afirmou-se a primazia do direito à liberdade pela ideia de ordem objetiva de valores inseridos em princípios constitucionais fixados no sistema normativo, como se tem nos arts. 1 a 19 da Lei Fundamental alemã (Grundgesetz), influindo em todas as esferas do direito;
e) adotou-se o critério de ponderação de bens e valores (Güterabwägung) como método de resolução dos casos difíceis, nos quais normas constitucionais tencionam e apresentam conflito aparente, que precisa ser solucionado.
Na espécie, a colisão pôs-se entre o direito fundamental da livre manifestação de opinião e outros interesses de idêntica natureza hierárquica, gozando de igual proteção constitucional (schutzwürdige).
69. Nem se afirme alterar a interpretação do direito a circunstância de a proteção da inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem ser agravada pela circunstância de se buscarem fins comerciais com a comercialização da obra biográfica.
Escreve-se para ser lido. E livro é produto de comércio. Logo, o que se está a obtemperar não é importante para o deslinde da questão relativa à interpretação da matéria.
O mesmo dá-se com a obra audiovisual. Produção cinematográfica é comercializável. E comércio faz-se com paga pela prestação do serviço.
Corre-se o risco de haver abusos, de se produzirem escritos ou obras audiovisuais para divulgação com o intuito exclusivo de se obterem ganhos espúrios pela amostragem da vida de pessoas com detalhes que não guardam qualquer traço de interesse público.
Risco é próprio do viver. Erros corrigem-se segundo o direito, não é se abatendo liberdades conquistadas que se segue na melhor trilha democrática traçada com duras lutas. Reparam-se danos nos termos da lei.
O mais doce mel não seria comercializado nem produziria lucro se não houvesse alguém afoito a adquiri-lo. Não se há de condenar cada comprador de mel ou livro ao argumento de se combater a diabetes ou o saber indevido sobre espaços recônditos das pessoas neste último caso.
Poder-se-ia também imaginar os riscos das mentiras contadas. Vendedores de passados criados sob o manto que o nome de alguém expusesse. Não são apenas passados que se inventam. Até o presente se vende. Pior: compra-se a boa-fé ou a crendice ingênua e desesperada vendendo-se até o futuro. São abundantes os anúncios de videntes e audientes que prosperam vendendo terrenos em céus que não se conhecem. Contam-se histórias de todos nós, a cada dia, que nem sempre aconteceram. Digo do que sobre mim mesma leio e que não tomo como mentiras, mas como verdades não acontecidas. Alguns são jornalistas. Outros, romancistas desnaturados. Não é com mordaça ou censura que se resolve a inverdade. É com mais verdade sobre o não ocorrido e narrado por má-fé ou por ignorância.
Pode-se afirmar que o mal tem mais força de ser acreditado. Se o homem prefere acreditar no pior, não há remédio para crenças tais. Faço direito, não faço milagre.
– Biografia: a intimidade e a privacidade do biografado
70. René Ariel Dotti leciona que
"algumas pessoas, pelo seu comportamento, em razão da profissão e outras atividades ou, ainda, por características especialíssimas, se distinguem das demais e projetam extraordinariamente a sua personalidade. Em consequência, os aspectos mais destacados são ansiosamente perseguidos pela curiosidade pública, numa espécie de duelo entre a intimidade e a publicidade para o qual a imprensa, a televisão e outros médios de informação, atuam como agentes provocadores Corretamente
Urabayen concluiu que ´a delimitação entre as esferas de atividade pública e de reserva privada varia consideravelmente segundo as épocas, as sociedades, o desenvolvimento das comunicações e a situação pessoal de cada homem. A doutrina, apesar de seus muitos e meritórios esforços, não chegou a proporcionar um conceito claro e completo para servir em cada caso. A definição mais antiga, formulada pelo juiz norte-americano Cooley – e mais tarde recolhida por Warren e Brandeis – continua sendo nos nossos dias tao válida como há um século: o direito à intimidade é o direito de ser deixado em paz. Não existem, pois, regras aplicáveis a qualquer ataque: cada caso deve ser estudado à luz dos princípios jurídicos que regulam a sociedade onde os fatos ocorrem" (DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1980, p. 208).
Por força dos princípios constitucionais garantidores dos direitos fundamentais, as normas infraconstitucionais devem ser interpretadas de acordo com os princípios constitucionais, dotando-os de plena efetividade, sem perda de conteúdo ou eficácia, para assegurar-se o bem viver de cada um e de todos. Mas os fins a que se destinam as normas constitucionais não se alteram senão para serem mais firmes em sua objetividade.
Não ignoro a bisbilhotice e o incômodo do olhar obsessivo do outro sobre a vida de certa pessoa. A vida de todos compõe a sociedade. A vida do outro, singular, deve ser o quanto mais deixada em paz. Mas quem sai à rua deixa-se ver. No mundo em que a praça virtual é mais intensa e mostra o que se passa na cama e até debaixo dela, não se há de pretender que o que prega no largo da cidade queira depois esconder-se daquele que o tenha encontrado.
VII. Transcendência do direito à intimidade e à privacidade
71. Não se extingue assim o direito à inviolabilidade da intimidade ou da vida privada. Respeita-se, no direito, o que prevalece no caso posto em juízo, sem julgamento prévio de censura nem possibilidade de se afirmar a censura prévia ou a posteriori, de natureza legislativa, política, administrativa ou judicial, deixando-se em relevo e resguardo o que a Constituição fixou como inerente à dignidade humana e a ser solucionado em casos nos quais se patenteie desobediência aos princípios fundamentais do sistema.
Não é diferente o que se passa em outros povos, como, por exemplo, no caso Éditions Plon vs. France (2004), relativo à publicação de biografia do Presidente François Mitterrand, da autoria de jornalista e do médico particular do presidente.
No dia da publicação do livro Le Grand Secret, a viúva e os filhos de Mitterand peticionaram alegando quebra de confidencialidade médica e invasão da privacidade do presidente. A distribuição do livro foi proibida pelo tribunal de Paris, baseado no abuso da liberdade de expressão. Essa decisão foi mantida pela Corte de Apelação francesa e pelas outras instâncias buscadas. O médico também foi sentenciado pela Corte Criminal francesa a quatro meses de prisão pela quebra de sigilo do tratamento médico.
Com fundamento no art. 10, parágrafo 2, da Convenção Europeia, a Corte Europeia de Direitos Humanos concluiu que a interferência da autoridade francesa sobre o direito à liberdade de expressão era justificada, estava prevista na lei francesa, tendo sido legítimo o propósito de proteção dos direitos de outras pessoas.
Ao avaliar a necessidade da interferência em sociedade democrática sobre o direito à liberdade de expressão, a Corte afirmou ausência de ofensa ao direito à liberdade de expressão definida na decisão de primeira instância francesa de proibir a distribuição do livro. A medida de proibição teria sido necessária para a proteção dos direitos de François Mitterrand, da viúva e dos filhos, porque o presidente tinha morrido poucos dias antes de a publicação ser liberada.
Ao avaliar decisões posteriores no ordenamento jurídico francês de manter a proibição de distribuir o livro, a Corte Europeia concluiu haver desrespeito ao art. 10 da Convenção, pela ausência de confidencialidade sobre os fatos, pois o livro circulava na internet e os relatos da obra tinham sido amplamente divulgados, pelo que o interesse público haveria de prevalecer sobre o sigilo médico.
A decisão proferida no caso Éditions Plon vs. France (2004) apresenta as limitações que a Convenção Europeia permite sobre o direito à liberdade de expressão. No parágrafo 2 do art. 10, ao qual se remeteu a Corte Europeia no julgamento, determina-se que essas restrições devem estar previstas em lei e devem ser providências necessárias em sociedade democrática, para proteção de objetivo legítimo. Sem liberdade de expressão, não há sociedade democrática.
VIII. Interpretação dos arts. 20 e 21 do Código Civil do Brasil: da colisão aparente de normas à harmonia dos princípios constitucionais e à submissão da interpretação para efetividade máxima das normas fundamentais
72. Os arts. 20 e 21 do Código Civil do Brasil contemplam, em leitura direta, a exigência de autorização prévia para divulgação de escritos ou transmissão da palavra ou publicação, exposição ou utilização da imagem de determinada pessoa, sem o que poderão ser proibidas, a requerimento do interessado ou, em se tratando de morto ou de ausente, do cônjuge, dos ascendentes ou descendentes, sem prejuízo da indenização cabível, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Essa interpretação, pretensamente protetiva do direito à intangibilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa, não pode ser adotada relativamente à produção de obra biográfica, pela circunstância de não se conter exceção expressa a esse gênero no dispositivo legal. Isso porque a liberdade de pensamento, de sua expressão, de produção artística, cultural, científica estaria comprometida e a censura particular seria forma de impor o silêncio à história da comunidade e, em algumas ocasiões, à história de fatos que ultrapassam fronteiras e gerações.
Nem se afirme cuidarem tais temas apenas do espaço da política, na qual não se poderia tolerar censura. Arte é política, ciência pode ser política, a cidadania faz-se na polis.
73. A aplicação daqueles dispositivos, entretanto, tem conduzido ao recolhimento das obras biográficas publicadas, ao impedimento da edição ou à proibição da exposição e venda ou a exibição, quando se cuide de obras audiovisuais. São múltiplos os exemplos havidos na jurisprudência brasileira:
73.1. Em novembro de 2011, descendente de Lampião requereu ao Poder Judiciário a proibição, "de forma definitiva, de publicar, veicular, expor publicamente, vender, doar onerosa ou gratuitamente, o livro intitulado [Lampião, o Mata Sete]" (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe – TJSE. Recurso de Apelação Cível processo n. 201200213096. Apelante: Pedro de Moraes Silva. Apelado: Expedita Ferreira Nunes. Relator: Desembargador Cezário Siqueira Neto. Acórdão, 30.9.2014). A Autora da ação alegava falta de autorização prévia para a publicação, que teria atentado contra a intimidade e a privacidade de Virgulino Ferreira (Lampião) e Maria Dea dos Santos (Maria Bonita) e configurado "aviltamento da honra". A peticionária também apontou a existência de elementos preconceituosos à orientação sexual e intolerância religiosa. Na obra Lampião, o Mata Sete, afirma-se que o famoso cangaceiro seria homossexual.
Em 2014, a Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Sergipe (Recurso de Apelação Cível, TJSE), por unanimidade, reformou sentença anterior pela qual proibido o lançamento da obra (Jornal Estado de São Paulo. Biografia de Lampião tem lançamento autorizado pela Justiça. 1.10.2014). Em decisão, o Relator Desembargador Cezário Siqueira Neto fundamentou o voto em posicionamento do Supremo Tribunal Federal de que "a superação de antagonismos existentes entre direitos fundamentais resolve-se, em cada situação ocorrente, pelo método da ponderação concreta de interesses", sendo papel do Poder Judiciário definir "a liberdade que deve prevalecer no caso concreto" (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe – TJSE. Recurso de Apelação Cível processo n. 201200213096. Acórdão, 30.9.2014). O Relator apoia-se em argumentos do Ministro Gilmar Ferreira Mendes e do Ministro Celso de Melo – o último em decisão no Agravo de Instrumento n. 595.395/SP – sobre o método de ponderação em caso de colisão de direitos fundamentais:
"Não é demais repetir que, se a recorrida, autora da ação, sentiu- se 'ofendida' com o conteúdo do livro pode-se valer dos meios legais cabíveis. Porém, querer impedir o direito de livre expressão do autor da obra, no caso concreto, caracterizaria patente medida de censura, vedada por nosso Constituinte" (Tribunal de Justiça de Sergipe, 2014).
73.2. No contexto do art. 20 do Código Civil, caso emblemático é o documentário produzido por Glauber Rocha, intitulado Di-Glauber, que retrata o funeral do pintor Di Cavalcanti, filmado em outubro de 1976. Em 1977, o filme ganhou o Prêmio do Especial do Júri do Festival de Cannes. Dois anos depois, em 1979, a filha do pintor solicitou ao Poder Judiciário a proibição da exibição do filme, tendo obtido decisão favorável em mandado de segurança proferida pela Sétima Vara Cível do Rio de Janeiro.
73.3. Em 2001, a biografia de Noel Rosa foi proibida. Lançada em 1990 pela editora UnB e de autoria de João Máximo e Carlos Didier, o livro ficou disponível para compra até 1994. Após esse ano, houve várias tentativas frustradas de republicar a obra.
Em 2001, as sobrinhas de Noel Rosa reivindicaram a herança do músico, após a morte da esposa do sambista, que detinha tutela sobre os bens. As sobrinhas decidiram processar os autores do livro e a UnB por invasão de privacidade da família (UnB AGÊNCIA. Uma história pouco compartilhada. 16 de fevereiro de 2010) e impediram reedições do livro.
Interpretadas as normas no sentido extintivo do direito à liberdade de pensamento, de expressão, de criação artística, literária, científica e cultural, ocorre ofensa constitucional em ponto sensível e enucleador da experiência democrática, pelo que se há de buscar outra trilha hermenêutica pela qual se assegure, se possível, a manutenção da lei sem embaraços ao direito constitucionalmente assegurado.
74. A Constituição da República assegura as liberdades de maneira ampla. Não pode ser anulada por outra norma constitucional, por emenda tendente a abolir direitos fundamentais (inc. IV do art. 60), menos ainda por norma de hierarquia inferior (lei civil), ainda que sob o argumento de se estar a resguardar e proteger outro direito constitucionalmente assegurado, a inviolabilidade do direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem.
Pela biografia, não se escreve apenas a vida do indivíduo, mas o relato de um povo, os caminhos da sociedade. Se o pensar, o investigar, o produzir e o divulgar a história de uma ou de várias pessoas são livres, como se poderia fazer conformar-se à Constituição ao que lhe atinge a essência, o direito de liberdade de pensar e divulgar o pensado, principalmente em se cuidando de produção intelectual decorrente de investigação sobre vida que se impõe como referência à sociedade?
75. Para ler-se constitucionalmente o que se contém nos arts. 20 e 21 do Código Civil, há de se considerar que:
a) as normas constitucionais de direitos fundamentais garantem a vida digna, para o que se assegura, expressamente, a liberdade de pensamento e de sua expressão, liberdade de informação e de criação intelectual, artística e científica.
b) como consequência lógica daquelas liberdades, está vedada qualquer forma de censura, estatal ou particular;
c) consectário lógico da dignidade da vida, a Constituição também garante, como direito fundamental, a inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem das pessoas, impondo-se, na norma, a forma pela qual se repara o descumprimento desse direito mediante indenização.
As normas constitucionais de direitos fundamentais são de cumprimento incontornável, impondo-se aos cidadãos e, mais ainda, ao Estado. Pelo que não pode o legislador restringir ou abolir o que estatuído como garantia maior. Mas as normas civis consideradas pretensamente estariam a servir ao comando da inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem constitucionalmente asseguradas, submetendo a produção biográfica ao consentimento ou à autorização prévia do interessado.
Não se há deixar de indagar se, pela regra de imposição de autorização prévia da pessoa, tal como às vezes vem se decidindo na jurisprudência, poderia a pessoa narrar a própria história (autobiografia), reportando-se a fatos experimentados com outros dos quais não tenha pedido autorização prévia. A norma civil não valeria para o biografado?
A história não seria mais bem contada pelo autor dos fatos porque seriam por ele vivenciados. A memória é traiçoeira. E perto demais a visão cega.
76. A coexistência das normas constitucionais dos incs. VI e IX do art. 5º requer, para a superação do aparente conflito do que nelas se contém, se ponderar se pode a pessoa assegurar-se inviolável em sua intimidade, privacidade, honra e em sua imagem se não é livre para pensar e configurar a sua intimidade, estabelecer o seu espaço de privacidade, formar o conceito moral e social que lhe confere a honradez e cunhar imagem que lhe garanta o atributo reconhecido que busca.
Para perfeito deslinde do caso em exame, há de se acolher o balanceamento de direitos, conjugando-se o direito às liberdades com a inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa biografada e daqueles que pretendem elaborar as biografias.
Segundo Robert Alexy,
"Las colisiones de principios deben ser solucionadas de manera totalmente distinta. Cuando dos principios entran eu colisión —tal como es el caso cuando según un princípio algo está prohibido y, según otro principio, está permitido— uno de los dos principios tiene que ceder ante el otro. Pero, esto no significa declarar inválido al principio desplazado ni que eu el principio desplazado haya que introducir una cláusula de excepción. Más bien lo que sucede es que, bajo ciertas circunstancias uno de los principias precede ai otro. Bajo otras circunstancias, la cuestión de la precedencia puede ser solucionada de manera inversa. Esto es lo que se quiere decír cuando se afirma que en los casos concretos los princípios tienen diferente peso y que prima el principio con mayor peso. Los conflictos de regras se Ilevan a cabo en la dimensión de la validez; la colisión de principios —como sólo pueden entrar en colisión principios válidos— tiene lugar mas allá de la dimensión de la validez, en la dimensión del peso. Ejemplos de la solución de colisiones de princípios los ofrecen las numerosas ponderaciones de bienes realizadas por el Tribunal Constitucional Federal. Aqui, a guisa de ejemplo, puede recurrirse a dos decisiones, a la del fallo sobre incapacidacl procesal y la del fallo Lebach. El análisis de la primera decisión conduce a intelecciones acerca de Ia estructura de las soluciones de colisiones que pueden ser resumidas en una ley de colisión; la segunda profundiza estas intelecciones y conduce a la concepción del resultado de la ponderación como norma de derecho fundamental adscripta" (ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. 89-90).
A adoção do critério da ponderação para interpretação de normas e solução de casos nos quais são elas aplicadas não é inédita neste Supremo Tribunal Federal. Assim, por exemplo:
"Ação direta de inconstitucionalidade. §1º do art. 28 da Lei n. 12.663/2012 ("Lei Geral da Copa"). Violação da liberdade de expressão. Inexistência. Aplicação do princípio da proporcionalidade. Juízo de ponderação do legislador para limitar manifestações que tenderiam a gerar maiores conflitos e atentar contra a segurança dos participantes de evento de grande porte. Medida cautelar indeferida. Ação julgada improcedente" (ADI n. 5.136-MC/DF, Relator o Ministro Gilmar Mendes, Plenário, DJ 30.10.2014).
"Habeas corpus. Ato obsceno (art. 233 do Código Penal). 2. Simulação de masturbação e exibição das nádegas, após o término de peça teatral, em reação a vaias do público. 3. Discussão sobre a caracterização da ofensa ao pudor público. Não se pode olvidar o contexto em se verificou o ato incriminado. O exame objetivo do caso concreto demonstra que a discussão está integralmente inserida no contexto da liberdade de expressão, ainda que inadequada e deseducada. 4. A sociedade moderna dispõe de mecanismos próprios e adequados, como a própria crítica, para esse tipo de situação, dispensando-se o enquadramento penal. 5. Empate na decisão. Deferimento da ordem para trancar a ação penal. Ressalva dos votos dos Ministros Carlos Velloso e Ellen Gracie, que defendiam que a questão não pode ser resolvida na via estreita do habeas corpus" (HC n. 83.996/RJ, Relator o Ministro Carlos Velloso, Redator para o acórdão o Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJ 26.8.2005).
Valendo-se daquele critério, em exame específico sobre os arts. 20 e 21 do Código Civil brasileiro e considerando as normas constitucionais garantidoras das liberdades, Gomes Canotilho conclui:
"Não temos dúvida que o balanceamento 'definitório categorial' ou 'universalizante' detectado no enunciado linguístico do art. 20 do Código Civil conduz a uma operação deôntica de proibição claramente inconstitucional".
77. No Projeto de Lei da Câmara n. 42, de 2014 (PL n. 393/2011, naorigem), propõe-se a modificação do art. 20 do Código Civil, para"garantir a liberdade de expressão, informação e o acesso à cultura na hipótese deParece de clareza tal a inconsistência da interpretação que vem sendo dada às regras dos arts. 20 e 21 do Código Civil que a polêmica instalada conduziu à ação legislativa na busca de alternativas normativas compatíveis com a Constituição.
alteração do art. 20 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil, para ampliar a liberdade de expressão, informação e acesso àcultura.)
de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade. (Congresso Nacional.
No § 3º, são estabelecidas normas para o caso de sobrevir dano decorrente da obra: "Na hipótese do § 2º, a pessoa que se sentir atingida em sua honra, boa fama ou respeitabilidade poderá requerer, mediante o procedimento previsto na Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, a exclusão de trecho que lhe for ofensivo em edição futura da obra, sem prejuízo da indenização e da ação penal pertinentes, sujeitas essas ao procedimento próprio" (Congresso Nacional. Redação final projeto de lei n. 393-C, de 2011).
A justificativa do projeto de lei está em que a alteração nos dispositivos impediria cerceamentos do direito à informação dos cidadãos, extinguindo-se a necessidade de autorização prévia para a publicação de biografias.
A interpretação pedida na presente ação e com a qual estou anuindo, para julgá-la procedente, significa que se faz necessário não mudar a norma civil, mas atribuir-lhe interpretação coerente com o que se põe constitucionalmente, sendo tanto suficiente para a garantia do exercício do direito à liberdade de expressão, do direito-dever de informar e ser informado sobre a vida de pessoa biografada pela sua importância sociocultural, resguardando-se a garantia da inviolabilidade do direito à intimidade e à privacidade, contra cujo abuso há normas pelas quais assegurada a responsabilidade dos autores da ação indevida.
Conclusão
78. Pelo exposto, julgo procedente a presente ação direta de inconstitucionalidade, para dar interpretação conforme à Constituição da República aos arts. 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística e de produção científica, declarar inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas ou ausentes).
10/06/2015 PLENÁRIO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL
ANTECIPAÇÃO AO VOTO
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Senhor Presidente, em primeiro lugar, cumprimento o voto da eminente Ministra Cármen Lúcia, o voto escrito que tive chance de folhear rapidamente, porque só o recebi agora há pouco, e também a exposição oral, não apenas pelo conteúdo, como também pela forma literária e prazerosa com que se manifestou. E, igualmente, cumprimento os eminentes advogados que estiveram na tribuna, Doutor Gustavo Binenbojm, Doutor Thiago Bottino, o Presidente da OAB, Marcus Vinícius Furtado Coêlho, Doutora Ivana Crivelli e Doutor Antônio Carlos de Almeida Castro. Registro que li com prazer e grande proveito dois pareceres notáveis da eminente Professora Ana Paula de Barcellos e do Professor Gustavo Tepedino, que me foram encaminhados pelas partes e por um dos amici curiae.
Presidente, estou, no geral, em linha de concordância com a eminente Relatora. Considero, no entanto, que este caso não apenas merece ênfase na sua conclusão, mas sobretudo nas razões de decidir. De modo que vou juntar um voto escrito, relativamente longo, de umas vinte páginas, e vou muito brevemente sintetizar as minhas razões, que não divergem das razões da eminente Relatora, embora talvez tratem a mesmíssima questão sob uma perspectiva ligeiramente diferente.
Quero dizer, Presidente, que as sociedades contemporâneas são abertas, são complexas, são plurais. Consequentemente, convivem na sociedade contemporânea valores contrapostos, que, muitas vezes, entram em rota de colisão ou pelo menos convivem com algum grau de tensão: o desenvolvimento nacional entra em tensão com a proteção ambiental com frequência; a liberdade de iniciativa entra em tensão com a proteção do consumidor com frequência; a liberdade individual do acusado, muitas vezes, entra em rota de tensão com a segurança pública.
Este caso que estamos analisando hoje, aqui, envolve uma tensão, uma colisão potencial entre a liberdade de expressão e o direito à informação de um lado; e, de outro lado, os chamados direitos da personalidade, notadamente no tocante ao direito de privacidade, ao direito de imagem e ao direito à honra.
Nessas situações em que convivem normas constitucionais que guardam entre si uma tensão, e a característica das Constituições contemporâneas é precisamente esse caráter compromissório e dialético de abrigarem valores diversos, a técnica que o Direito predominantemente adota para a solução dessa tensão ou desse conflito é precisamente a denominada ponderação.
E aqui eu gostaria de registrar que um dos princípios que norteiam a interpretação constitucional, e consequentemente a própria ponderação, é o princípio da unidade, que estabelece a inexistência de hierarquia entre as normas constitucionais. Uma norma constitucional não colhe o seu fundamento de validade em outra norma, portanto, elas têm de conviver harmoniosamente e uma não pode ser reconhecida como sendo superior à outra.
Dito isso, a ponderação, embora existam diversos autores que tratem do assunto, tal como eu a pratico, é uma forma de estruturação do raciocínio que se desenrola em três etapas. Na primeira delas, verificam- se quais são as normas que postulam incidência sobre aquela hipótese. No nosso caso concreto, são as normas que protegem a liberdade de expressão e o direito de informação, e as normas que protegem a privacidade, a imagem e a honra. A segunda etapa da ponderação exige que se verifiquem quais são os fatos relevantes. E, na terceira e última etapa, testam-se as soluções possíveis. E o ideal é que se produza a concordância prática das normas em conflito, eventualmente com concessões recíprocas. No limite, porém, muitas vezes, na hipótese de colisão de direitos fundamentais, é inevitável que se façam determinadas escolhas. Essa ponderação pode ser feita pelo legislador, em tese, ou pode ser feita pelo aplicador da lei, pelo juiz ou tribunal, em cada caso concreto.
Neste caso que nós estamos examinando, há uma ponderação que foi feita pelo legislador civil no Código Civil e que materializou esta ponderação entre os direitos em conflito nos artigos 20 e 21 do Código Civil, que são precisamente os dispositivos impugnados.
O artigo 20 do Código Civil, que eu não preciso reler, na essência, diz que o uso da imagem de qualquer pessoa, inclusive em obras biográficas, depende de autorização prévia da pessoa retratada ou de seus familiares. Portanto, é inequívoca a previsão do Código Civil de que é necessária uma autorização prévia. Em seguida, o artigo 21 diz que o interessado pode obter judicialmente a proibição da divulgação daquela obra. E, ao proteger os direitos da personalidade com essa intensidade, o Código Civil, claramente a meu ver, pretere a liberdade de expressão.
Em relação às biografias, que é o foco da nossa discussão, eu acho que a liberdade de expressão assume uma dupla dimensão. Em primeiro lugar, é a liberdade de criação intelectual e artística do autor da obra e, portanto, do biógrafo. E, em segundo lugar, a liberdade de expressão manifesta-se no direito do público a receber informações do seu interesse e o interesse da sociedade na proteção da memória e da história nacionais. Portanto, eu penso que o modo como o Código Civil conduziu esta ponderação importa numa subordinação da liberdade de expressão aos direitos da personalidade e, portanto, o Código Civil, em violação, a meu ver, ao princípio da unidade da Constituição, produziu uma hierarquização entre normas de direito fundamental. E pior do que isso, com todas as vênias a alguém que pense diferentemente, o Código Civil ponderou em manifesto e permanente desfavor da liberdade de expressão quando, a meu ver, a liberdade de expressão no Estado brasileiro e na democracia brasileira, por circunstâncias diversas que mencionarei brevemente em seguida, desfruta de uma posição preferencial dentro do sistema constitucional brasileiro.
Pela lógica do Código Civil, teriam sido legítimas e jurídicas todas as decisões que, em período recente, proibiram, em maior ou menor extensão, por algum tempo ou definitivamente, a divulgação de biografias. E há inúmeros precedentes relevantes.
Portanto, eu estou assentando, Presidente, no meu voto, que considero que os artigos 20 e 21 do Código Civil produzem uma ilegítima hierarquização entre os direitos à liberdade de expressão e os direitos da personalidade, em favor do direito da personalidade e em desfavor da liberdade de expressão.
Agora, gostaria de demonstrar, ainda que brevemente, Presidente, por qual razão eu afirmo que a liberdade de expressão, na democracia brasileira, deve ser tratada como uma liberdade preferencial. E acho importante insistir nisso, porque o Supremo tem sido um guardião importante da liberdade de expressão, mas é inevitável reconhecer que, nas instâncias inferiores, há uma quantidade impressionante de precedentes negativos em relação à liberdade de expressão. Eles vão desde a proibição de divulgação de fatos e a suspensão da circulação de revistas, até a proibição de biografias. Portanto, não é irrelevante que nós insistamos nesse argumento, ao menos os que acreditam que ele seja um argumento importante. E, aqui, diga-se que afirmar que a liberdade de expressão é uma liberdade preferencial não significa hierarquizá-la em relação a outros direitos fundamentais, porque, como disse, não há hierarquia entre eles. Porém, dizer-se que a liberdade de expressão é um direito ou uma liberdade preferencial significa, em primeiro lugar e acima de tudo, uma transferência de ônus argumentativo. Quem desejar afastar a liberdade de expressão é que tem que ser capaz de demonstrar as suas razões, porque, prima facie, em princípio, é ela, a liberdade de expressão, que deve prevalecer.
E por que razão eu penso que se deve considerar, e o Supremo deveria se pronunciar de maneira inequívoca sobre isso, por que razão se deve afirmar que a liberdade de expressão é uma liberdade preferencial numa sociedade como a brasileira? Compartilho, brevemente, três razões. A primeira delas é porque o passado condena. A história da liberdade de expressão no Brasil é uma história extremamente acidentada. Eu li em um livro do Eduardo Bueno, Brasil: Uma História, uma passagem em que ele diz assim: "Ao divulgar a carta de Pero Vaz de Caminha, certidão de nascimento do país, o padre Manoel Aires do Casal cortou vários trechos que considerou indecorosos". Portanto, já começamos sobre a égide da censura. A certidão de nascimento do Brasil já foi podada de alguns excessos.
Dando um salto de 500 anos e chegando à nossa última experiência ditatorial, a história condena ainda mais. A imprensa escrita, por exemplo, sofreu as agruras da censura. Quem foi dessa época, muitos de nós fomos, lembra que os jornais eram publicados com espaços em branco; ou, então, com poesias de Camões; ou com receitas de bolo. Apreendiam-se os jornais por motivos políticos, como acontecia com "O Pasquim", com o "Opinião", e por motivos de moralidade pública, como acontecia com a revista "Ele & Ela". Eu gosto de dizer que a censura, não importa as suas motivações, sempre costuma ser ridícula. E eu me lembro que, nessa época, "Ele & Ela" foi apreendida, porque só era possível exibir um seio e a "Ele & Ela" exibiu os dois seios da modelo e, consequentemente, foi apreendida por violação da regra, não sei se expressa ou tácita, que vigia naquela época. Como escrevi em artigo doutrinário e reproduzi em decisão recente, na Reclamação 18.638:
"Em todos os tempos e em todos os lugares, a censura jamais se apresenta como instrumento da intolerância, da prepotência ou de outras perversões ocultas. Ao contrário, como regra, ela destrói em nome da segurança, da moral, da família, dos bons costumes. Na prática, todavia, oscila entre o arbítrio, o capricho, o preconceito e o ridículo. Assim é porque sempre foi".
Mas não é só. Havia ainda - e eu também vivi, muitos de nós vivemos - uma forma mais medonha de censura, da qual a América Latina ainda não se recuperou totalmente: por pressão governamental, boicotava-se a publicidade dos jornais independentes ou de oposição para asfixiá-los economicamente e levá-los ao fechamento.
De modo que, em matéria de liberdade de expressão, a nossa história condena e muito. Mas a liberdade artística também. Quem é dessa época lembrará, aí na década de 70, que os filmes, quando tinham cenas de nudez, eram, em nome da moralidade pública, complementados com tarjas negras que cobriam seios e órgãos genitais. Quem tiver assistido a um filme chamado "Laranja Mecânica", que era um drama psicológico intenso, no Brasil, era uma comédia, porque os personagens corriam na tela e as tarjas tentavam acompanhar seios e órgãos genitais, nem sempre com sucesso. Eu me lembro de que o Balé Bolshoi foi proibido de encenar no Brasil, porque seria propaganda de comunista.
E, na música, as letras eram submetidas, previamente, ao Departamento de Censura. Mas isso não foi no século XIX, isso foi no quarto final do século XX. O artista, para divulgar uma música, tinha que se submeter ao Departamento de Censura, que aprovava e às vezes até dava palpites em coautoria, mudava as letras. Havia artistas malditos que não podiam ter músicas aprovadas e que, em razão disso, submetiam suas composições com pseudônimos. Era uma época em que o país vivia nas entrelinhas, nas sutilezas. Eu bem me lembro de uma música do Chico Buarque chamada "Apesar de Você", o censor não percebeu que havia uma crítica implícita e autorizou a execução da música. E, depois de uma, duas semanas tocando no rádio, alguém se deu conta que o "apesar de você" talvez fosse uma crítica política, e aí proibiram a execução da música.
Eu considero o ápice do obscurantismo a proibição, no início dos anos 70, da divulgação de que havia um surto de meningite em São Paulo, porque isso comprometeria a imagem do Brasil Grande.
Portanto, a história da liberdade de expressão no Brasil é uma história acidentada. Para citar uma passagem de um outro autor megacensurado, que era o Taiguara: "Só quem não soube a sombra é que não reconhece a luz". A luz, no caso, é viver num regime de liberdade de expressão.
Portanto, a primeira razão, no Brasil, talvez diferentemente da Alemanha, talvez diferentemente da França ou da Europa em geral, é que, aqui entre nós, a história é tão acidentada e o histórico da liberdade de expressão tão sofrido que ela precisa ser afirmada e reafirmada, eventualmente, com certo exagero.
A segunda razão pela qual a liberdade de expressão deve ser tratada como uma liberdade preferencial em uma sociedade como a brasileira, e talvez nas sociedades democráticas em geral, é que a liberdade de expressão é não apenas um pressuposto democrático, como é um pressuposto para o exercício dos outros direitos fundamentais. Para exercerem-se bem os direitos políticos, o direito de participação política, a liberdade de associação, a liberdade de reunião, o próprio desenvolvimento da personalidade, é preciso que haja liberdade de expressão, é preciso que haja uma livre circulação de fatos, opiniões e ideias para que cada um possa participar esclarecidamente do debate público. Ninguém deve ter o direito de selecionar quais são as informações que podem chegar ao debate público. Portanto, a segunda razão é que, sem liberdade de expressão, não existe plenitude dos outros direitos, não existe autonomia privada, não existe autonomia pública.
E a terceira e última razão é que a liberdade de expressão é essencial para o conhecimento da história, para o aprendizado com a história, para o avanço social e para a conservação da memória nacional.
De modo que eu assento, de maneira expressa, como uma das premissas teóricas e filosóficas da minha convicção nesta matéria, como nos casos de liberdade de expressão em geral, que, no Brasil, por força da Constituição e das circunstâncias brasileiras, a liberdade de expressão deve ser tratada constitucionalmente como uma liberdade preferencial. E as consequências de se estabelecer essa premissa são igualmente três. Em primeiro lugar, ao se dizer que a liberdade de expressão é uma liberdade preferencial, estabelece-se uma primazia prima facie da liberdade de expressão no confronto com outros direitos fundamentais. Não uma hierarquia superior, apenas uma primazia prima facie, a demonstrar que aquele que pretenda cercear a liberdade de expressão em nome do direito de imagem, em nome da honra, em nome da privacidade, é essa parte que tem o ônus de demonstrar o seu direito superador da preferência da liberdade de expressão. Portanto, o ônus argumentativo de quem pretende paralisar a incidência da liberdade de expressão no caso concreto é maior, evidentemente, do que de quem esteja preservando a liberdade de expressão.
A segunda consequência dessa posição preferencial da liberdade de expressão é a forte suspeição e o escrutínio rigoroso que devem sofrer quaisquer manifestações de cerceamento da liberdade de expressão, seja legal, seja administrativa, seja judicial, ou seja privada.
A terceira e última consequência dessa preferência da liberdade de expressão é a regra da proibição da censura prévia ou da licença. Quanto a essa, nem é necessária muita elaboração teórica, porque a Constituição, em cláusula expressa em dois lugares, proíbe terminantemente a censura. No art. 5º, inciso IX, quando fala "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença"; e o art. 220, § 2º, que cuida da comunicação social, provê de maneira categórica "é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística".
Portanto, a censura prévia e a licença prévia são vedadas pela Constituição Brasileira como regra geral, de modo que, em qualquer sanção pelo uso abusivo da liberdade da expressão - que pode ocorrer -, deve-se dar preferência para os mecanismos de reparação a posteriori e não impeditivas da veiculação da fala da manifestação. É que, para usar a expressão espirituosa registrada na boa memória da querida Ministra Cármen Lúcia, para a Constituição, "cala a boca já morreu". E, portanto, os mecanismos a posteriori são: retratação, retificação, direito de resposta, indenização, e, eventualmente - mas a meu ver por exceção -, a responsabilização penal.
E aqui chego, Presidente - já caminhando para o fim -, a uma questão crucial que foi suscitada da tribuna pelo advogado Antônio Carlos de Almeida Castro que é a circunstância de que a liberdade de expressão, como todos os direitos fundamentais numa sociedade democrática, não constitui um direito absoluto, é uma liberdade preferencial, mas não é um direito absoluto. É comum afirmar-se isso: nenhum direito fundamental é absoluto. O Ministro Celso de Mello, em diversas passagens, possui essa frase - geralmente, quando ele afirma de maneira vigorosa algum direito fundamental, ressalva, no entanto, para dizer que não é absoluto. Isso porque a vida civilizada depende da conciliação de muitos valores. Mas aqui gostaria de deixar claro que se a informação sobre determinado fato tiver sido obtida mediante extorsão, invasão de domicílio, interceptação clandestina de conversa telefônica, por exemplo, a ilegalidade na sua obtenção pode comprometer a possibilidade de ela vir a ser legitimamente divulgada.
E também considero que a mentira dolosa e deliberada, com intuito de fazer mal a alguém, pode ser fundamento para considerar-se ilegítima a divulgação de um fato. Por exemplo, às vésperas de uma eleição, se imputa falsamente a alguém a condição de pedófilo. Essa seria uma típica manifestação abusiva e ilegítima da liberdade de expressão, quando a mentira seja deliberada. Numa sociedade democrática, aberta e plural não existem verdades absolutas, nem verdades plenas, mas existem algumas certezas positivas e negativas, e, quando elas estejam bem caracterizadas, pode-se revelar a ilegitimidade da expressão.
E aqui, já no meu penúltimo tópico, eu faço uma breve reflexão sobre o que a liberdade de expressão não é e o que, a meu ver, ela deve ser. Faço uma observação muito importante com uma nota pessoal: a liberdade de expressão não é garantia de verdade, nem é garantia de justiça; ela é uma garantia da democracia, e, portanto, defender a liberdade de expressão pode significar ter que conviver com a injustiça, ter eventualmente que conviver com a inverdade. Isso é especialmente válido para as pessoas públicas, sejamos nós agentes públicos, sejam os artistas. E eu penso que na vida nada é mais revelador da convicção de alguém sobre alguma matéria do que se colocar no lugar da vítima ou ter experimentado pessoalmente o que é, por vezes, o abuso da liberdade da expressão. Portanto, faço aqui o meu próprio registro. Quando eu ingressei no Supremo Tribunal Federal e votei na AP nº 470 pela prescrição do crime de quadrilha ou bando - que era a minha convicção e continua a ser, sem demérito para qualquer pessoa que pense diferentemente -, eu amarguei ler nos jornais seguidamente que eu teria votado assim por ter sido o preço para a minha nomeação. E eu aqui posso ressalvar que a Presidente da República em nenhum momento tocou nesse assunto comigo, nem sei exatamente qual seria a preferência dela nessa matéria. Nem ela, nem ninguém em nome dela. No entanto, li isso não em um ou dois lugares, mas em dezenas de lugares. Quando não li coisa pior: que eu teria votado assim porque uma antiga sócia minha havia sido contratada para participar de uma arbitragem que envolvia uma empresa estatal de energia elétrica. Eu devo dizer que eu nem sabia que ela havia sido contratada e qualquer pessoa que tenha conhecimento dos fatos poderá testemunhar que eu não ia largar uma prática de advocacia, graças a Deus e felizmente bem sucedida, para vir atuar desonestamente no Supremo Tribunal Federal. Mas essas eram as notícias que eu li repetidamente, com grande amargura, mas sem nenhum problema de consciência, porque só a verdade ofende. O que eu quero significar é que qualquer pessoa que aceite operar no espaço público está sujeita a este tipo de crítica, está sujeita à crítica injusta e à crítica justa; está sujeita à crítica construtiva e à crítica destrutiva; está sujeita à crítica mal informada e à crítica bem informada; está sujeita à crítica bem intencionada e à crítica mal intencionada. Vem com o cargo, é o preço que nós pagamos; e acho que vem com a exposição pública de quem escolheu ganhar a vida exibindo-se - no bom sentido - para a plateia.
Portanto, eu queria registrar, porque considero isso importante, que defender a liberdade de expressão - como aqui defendo e reitero - não significa dizer que ela sempre seja protagonista da verdade ou protagonista da justiça, a liberdade de expressão é protagonista da liberdade, que é um valor em si relevante para as democracias.
Ainda, antes de concluir, Presidente, eu faço o registro sobre os efeitos negativos que a interpretação dessas duas cláusulas do Código Civil trouxeram para a liberdade de expressão no Brasil e para a existência de biografias em particular. Eu apenas vou dar um passo atrás para deixar claro: no momento em que falei que a liberdade de expressão não era um direito absoluto - e me referi à ilicitude na obtenção da informação ou na mentira dolosa, que eu entendo que qualquer pessoa conserva o seu direito de ir ao Poder Judiciário para manifestar seu inconformismo contra esse abuso, se o abuso existir -, o que eu recomendaria, intensamente, é uma autocontenção quase absoluta do Judiciário para só intervir nas situações, como essas, de ilicitude na obtenção da informação, ou da mentira deliberada, ou algum outro fundamento de gravidade insuperável, mas por exceção manifesta. Mas gostaria de consignar que o direito de ir ao Poder Judiciário é um direito constitucional, e que ninguém imaginaria retirar de qualquer pessoa que se sinta lesada.
Mas, por fim, Presidente, para exemplificar os efeitos negativos da exigência de autorização. O primeiro efeito negativo é o desestímulo à produção de obras biográficas. O Poder Público tem o dever de incentivar a cultura, de proteger a cultura, e não criar obstáculos à cultura como faz essa norma do Código Civil. E, sob a vigência desses arts. 20 e 21, contam-se em mais de dezena as hipóteses de cerceamento judicial da liberdade de expressão em matéria biográfica com base nesses malsinados dispositivos. Eu anotei alguns, a maior parte deles eu me lembrava de cabeça: (i) de Ruy Castro, "Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha" - ficou proibida a circulação dessa obra por anos e, ao final, salvo engano, houve necessidade de pagamento de uma indenização às herdeiras do retratado; (ii) de Paulo César Araújo, "Roberto Carlos em detalhes" - também retirado de circulação; (iii) de Alaor Barbosa dos Santos, "Sinfonia de Minas Gerais - a vida e a literatura de João Guimarães Rosa"; (iv) de Toninho Vaz, a biografia de Paulo Leminski - um grande poeta paranaense que escreveu "Distraídos venceremos" -, a biografia chamava-se "O bandido que sabia latim" - igualmente retirada de circulação; (v) a biografia do Anderson Silva, escrita por Eduardo Ohata, "Anderson Spider Silva, o relato de um campeão nos ringues da vida" - foi retirada de circulação não pelo retratado, mas porque um personagem secundário não gostou do modo como foi feita a referência a ele, e, portanto, pediu a retirada de circulação da obra, e foi atendido com base nesses artigos do Código Civil, que eu espero que nós estejamos hoje, aqui, fulminando de inconstitucionalidade. E, por fim, de Pedro de Morais, para interromper essa sequência, "Lampião, o mata sete" – teve igualmente proibida a circulação.
Portanto, Presidente, acho que os dispositivos dos artigos 20 e 21, do Código Civil, se interpretados inadequadamente, não apenas são inconstitucionais em tese - como de fato são -, como já produziram consequências concretas, nefastas para a cultura, para a história e para o mercado editorial brasileiro. E aqui, lembrando uma passagem célebre de um ministro da Suprema Corte Americana, Louis Brandeis: "A luz do sol é o melhor dos desinfetantes".
Desse modo, Presidente, acompanhando a eminente Relatora na parte que diz respeito aos artigos 20 e 21 do Código Civil, assentei, para o meu voto, as seguintes conclusões e aqui termino:
Como consequência, declaro a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos dispositivos impugnados para, mediante interpretação conforme a Constituição, afastar do ordenamento jurídico a necessidade de consentimento dos biografados, demais pessoas retratadas ou de seus familiares para a publicação e veiculação de obras biográficas.
Penso que o meu voto, que é alinhado com o da Ministra Cármen Lúcia, tem como tese final e singela a seguinte - e aqui sendo minimalista, seguindo um pouco o padrão que temos adotado aqui, que é a seguinte:
Não é compatível com a Constituição interpretação dos artigos 20 e 21 do Código Civil que importe na necessidade de autorização prévia de pessoa retratada em obra biográfica para fins de sua divulgação por qualquer meio de comunicação.
É como voto, Presidente.
10/06/2015 PLENÁRIO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL
VOTO
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO:
Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOS 20 E 21 DO CÓDIGO CIVIL. BIOGRAFIAS NÃO AUTORIZADAS. COLISÃO ENTRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO EM SENTIDO AMPLO E OS DIREITOS DA PERSONALIDADE.
1. A interpretação dos artigos 20 e 21 do Código Civil que confere àqueles que são retratados em biografias (ou a seus familiares, no caso de pessoas falecidas) a prerrogativa de autorizarem a publicação dessas obras e, na ausência de autorização, de obterem judicialmente a proibição da sua divulgação, é incompatível com a Constituição.
2. Tal leitura estabelece uma regra abstrata e permanente de primazia dos direitos da personalidade sobre a liberdade de expressão na divulgação de biografias, que viola o sistema constitucional de proteção e privilégio das liberdades de expressão e informação, configurando eminente censura privada.
3. Declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos dispositivos impugnados, para, mediante interpretação conforme a Constituição, afastar do ordenamento jurídico a necessidade de consentimento dos biografados, demais pessoas retratadas ou de seus familiares para a publicação e veiculação de obras biográficas.
I. A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL
1. Trata-se de ação direta de inconstitucionalidade proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros (ANEL), tendo por objeto a declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 da Lei Federal nº 10.406/2002 (Código Civil), para que seja afastada do ordenamento jurídico brasileiro a necessidade do consentimento da pessoa biografada e, a fortiori, das pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas) para a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais1.
2. Confira-se o teor dos dispositivos impugnados:
"Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma." (grifou-se)
3. Em síntese, a requerente alega que os dispositivos legais em questão, em sua amplitude semântica e abrangência protetiva, dão ensejo à proibição da publicação ou veiculação de biografias pelos biografados, por seus familiares ou por pessoas cuja trajetória é retratada nas obras, em razão da ausência de prévia autorização. Segundo a ANEL, o condicionamento de obras biográficas ao consentimento do biografado (ou de sua família) caracterizaria espécie de censura privada e violaria a sistemática constitucional da liberdade de expressão e do direito à informação (CF/88, art. 5º, IV, IX e XIV), essencial à construção de um mercado livre de ideias e à própria democracia.
4. Para a requerente, a abertura textual dos dispositivos impugnados, a pretexto de proteger a vida privada e a intimidade das pessoas, produziria um efeito censório, silenciador e distorcivo sobre a historiografia social, a construção da memória coletiva e a produção da cultural nacional, ao desestimular o trabalho de historiadores e autores em geral, incentivar disputas mercantis pela licença de produção das obras biográficas, e criar um monopólio das biografias autorizadas ou "chapa-branca", em que a história passaria a ser contada apenas pelos seus protagonistas, com a corrente omissão de fatos menos abonadores.
II. BIOGRAFIAS E AUTORIZAÇÃO: LIBERDADE DE EXPRESSÃO VS. DIREITOS DA PERSONALIDADE
5. A presente ação direta discute, portanto, a validade constitucional da interpretação dos artigos 20 e 21 do Código Civil que confere àqueles que são retratados em biografias (ou a seus familiares, no caso de pessoas falecidas) a prerrogativa de autorizarem a publicação dessas obras e, na ausência de autorização, de obterem judicialmente a proibição da sua divulgação, sempre que lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade ou que se destinarem a fins comerciais (ou seja, sempre que assim desejarem).
6. Claramente, está em jogo no caso a disputa entre as liberdades de expressão e de informação e os denominados direitos da personalidade. De um lado, as biografias constituem manifestação típica da liberdade de expressão em seu sentido amplo. A sua elaboração está inserida no âmbito da liberdade da atividade de criação intelectual e artística dos biógrafos, plenamente garantida pela Constituição, independentemente de censura ou licença (CF/88, art. 5º, IX). Já a produção e a divulgação de biografias se relacionam estreitamente com o direito de informação (CF/88, art. 5º, XIV), titularizado por toda a sociedade, que deve ter amplo acesso ao conhecimento e a informações tanto para que cada pessoa possa formar suas convicções, opiniões e personalidade, quanto para a participação na vida pública e a preservação da memória e da historiografia coletivas.
7. De outro lado, a exposição da imagem, privacidade, intimidade e honra do biografado, ainda que em graus variados, é da própria essência do gênero literário. Em uma biografia, a personalidade do biografado, seus relacionamentos interpessoais, sua trajetória e os episódios que compuseram sua vida são tomados como objeto de estudo e transformam-se em uma narrativa, a ser contada ao grande público a partir da perspectiva (sempre subjetiva) do biógrafo. É natural e mesmo inevitável que o autor da obra, além de interferir por meio da seleção dos fatos a narrar, não se limite à mera descrição dos acontecimentos, formulando também juízos de valor sobre as pessoas e casos. A história tampouco se restringe a elogios ou a descrições dos momentos de glória dos sujeitos retratados, incluindo correntemente críticas e fatos desabonadores ou controvertidos. Assim, é certo que a divulgação de tais pontos de vista pode causar sofrimento, ser desagradável ou prejudicial aos biografados (e a seus familiares) e, por consequência, ensejar pretensões indenizatórias e de interdição de veiculação das obras, ao argumento de que explorariam ou violariam seus direitos da personalidade, amparados pela ordem constitucional brasileira (CF, art. 5º, X).
8. É preciso dizer que a controvérsia constitucional submetida a esta Corte não diz respeito à forma adequada de solucionar todos os potenciais conflitos de interesses e valores constitucionais que podem emergir da publicação de obras biográficas. Cuida-se apenas de determinar se a lei pode arbitrar abstratamente a colisão entre os direitos fundamentais em jogo, de modo a consagrar a absoluta precedência dos direitos à honra, à intimidade e à imagem, em detrimento da liberdade de expressão, estabelecendo um direito potestativo das pessoas retratadas, seus parentes ou herdeiros, de impedir a divulgação de biografias não autorizadas. À luz da Constituição, a resposta há de ser necessariamente negativa.
II.1. Impossibilidade de hierarquização rígida e abstrata de direitos fundamentais
9. Isso se deve, em primeiro lugar, à impossibilidade de hierarquização dos direitos fundamentais em abstrato e de forma rígida. Como é sabido, por força do princípio da unidade da Constituição, inexiste hierarquia jurídica ou formal entre normas constitucionais. É certo que alguns autores têm reconhecido a existência de uma hierarquia axiológica ou material, pela qual determinadas normas influenciariam o sentido e alcance de outras, possuindo um maior peso abstrato. No entanto, ainda que se reconheça uma tal hierarquia axiológica, a Constituição não admite que a lei possa estabelecer uma regra abstrata e permanente de preferência de um direito fundamental sobre outro. Nesses casos, a solução de episódios de conflito deverá ser sempre apurada diante do caso concreto e a partir do teste da proporcionalidade.
10. Por óbvio, não se está a defender que o Poder Legislativo esteja impedido de atuar no arbitramento das colisões de direitos dessa natureza. Em verdade, na edição de normas jurídicas, o legislador é quase sempre chamado a ponderar interesses conflitantes. No entanto, quando ele assim procede, deve solucionar as tensões com base em critérios constitucionais, buscando a concordância prática entre os preceitos em jogo, de modo que se preserve, na maior extensão possível, os bens jurídicos em colisão. Daí porque, em regra, o estabelecimento de prioridades ou hierarquias rígidas e absolutas é incompatível com o sistema constitucional brasileiro.
11. As circunstâncias destacadas produzem algumas consequências relevantes para a solução da presente controvérsia constitucional. Tanto as liberdades de expressão e informação como os direitos à privacidade, honra e imagem têm estatura constitucional e estão inseridos no catálogo de direitos fundamentais. Vale dizer: entre eles não há hierarquia, de modo que não é possível estabelecer, em abstrato, qual deve prevalecer. No entanto, como visto, as leituras mais evidentes dos dispositivos do Código Civil impugnados estabelecem a absoluta primazia dos direitos da personalidade sobre a liberdade de expressão na divulgação de biografias não autorizadas. Como resultado, à luz do princípio da unidade da Constituição, tais interpretações não são válidas.
II.2. Liberdade de expressão, posição preferencial e consequências
12. Em segundo lugar, o regime estabelecido pelos artigos 20 e 21 do Código Civil, em sua abrangência protetiva, não resiste a um juízo de constitucionalidade, por não conferir qualquer peso à liberdade de expressão, subvertendo a própria ordem de precedência estabelecida pela Constituição Federal. Na verdade, a impossibilidade de hierarquização dos direitos fundamentais não obsta que o sistema constitucional atribua uma proteção privilegiada a alguns bens jurídicos e estabeleça posições de preferência prima facie em relação a determinados princípios ou valores dotados de elevado valor axiológico. Este é precisamente o caso da liberdade de expressão.
13. A Carta de 88 incorporou um sistema de proteção reforçado às liberdades de expressão, informação e imprensa, reconhecendo uma prioridade prima facie destas liberdades públicas na colisão com outros interesses juridicamente tutelados, inclusive com os direitos da personalidade. Tal posição de preferência – preferred position – foi consagrada originariamente pela Suprema Corte norte-americana, que assentou que ela "confere a estas liberdades uma santidade e uma autoridade que não admitem intrusões dúbias. (...) Apenas os abusos mais graves, que coloquem em risco interesses supremos, dão espaço a limitações admissíveis"2. Referida doutrina tem sido admitida no direito brasileiro e já foi adotada em diversos precedentes deste Supremo Tribunal Federal, como a ADPF 130 e a ADPF 187 3. Ela também é reconhecida por tribunais internacionais 4 e pelas cortes constitucionais de diversos países, como a Espanha5 e a Colômbia6.
14. Este lugar privilegiado que a expressão ocupa nas ordens interna e internacional tem a sua razão de ser. Ele decorre dos próprios fundamentos filosóficos ou teóricos da sua proteção, entre os quais se destacam cinco principais. O primeiro diz respeito à função essencial que a liberdade de expressão desempenha para a democracia. De fato, o amplo fluxo de informações e a formação de um debate público robusto e irrestrito constituem pré-requisitos indispensáveis para a tomada de decisões pela coletividade e para o autogoverno democrático7. A segunda justificação é a própria dignidade humana. A possibilidade de os indivíduos exprimirem de forma desinibida suas ideias, preferências e visões de mundo, assim como de terem acesso às ideias, preferências e visões de mundo dos demais é essencial ao livre desenvolvimento da personalidade, à autonomia e à realização existencial dos indivíduos, consistindo, assim, em uma emanação da sua dignidade8.
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Uma terceira função atribuída à livre discussão e contraposição de ideias é o processo coletivo de busca da verdade 9. De acordo com essa concepção, toda intervenção no sentido de silenciar uma opinião, ainda que ruim ou incorreta, seria perniciosa, pois é na colisão com opiniões erradas que é possível reconhecer a "verdade" ou as melhores posições. O quarto fundamento da proteção privilegiada da liberdade de expressão está atrelada à sua função instrumental para o exercício e o pleno gozo dos demais direitos fundamentais. A quinta e última justificação teórica se refere à preservação da cultura e história da sociedade. As liberdades comunicativas constituem claramente uma condição para a criação e o avanço do conhecimento e para a formação e preservação do patrimônio cultural de uma nação10.
16. Por fim, além dos fundamentos filosóficos, há uma importante razão de ordem histórica para a atribuição de uma posição preferencial às liberdades expressivas: o temor da censura. Existe uma suspeição, historicamente fundada, em relação a intervenções estatais para regular a expressão. No Brasil, o trauma é particularmente intenso e invoca memórias recentes. A história da liberdade de expressão no país é uma história acidentada. Desde o Império, a repressão à manifestação do pensamento elegeu alvos diversos, da religião às artes. Durante diferentes períodos ditatoriais, houve temas proibidos, ideologias banidas, pessoas malditas. No jornalismo impresso, o vazio das matérias censuradas era preenchido com receitas de bolo e poesias de Camões. Censuravam-se músicas, peças, livros e programas de televisão.
17. Diante desses fundamentos, as múltiplas e até redundantes disposições sobre a liberdade de expressão na Constituição de 1988 refletem a preocupação do constituinte em garantir o florescimento de um espaço de livre fluxo de ideias no cenário de redemocratização do Brasil, após o fim da ditadura militar, e de criar salvaguardas para impedir o retorno dos fantasmas do passado. O reconhecimento de uma posição preferencial às liberdades comunicativas é justamente um dos principais mecanismos dessa proteção.
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No Brasil, porém, ainda há pouco desenvolvimento teórico e jurisprudencial sobre o que tal posição significa e quais as suas consequências práticas. A meu ver, a tese abrange o estabelecimento de algumas presunções em favor da liberdade de expressão11. A primeira e mais conhecida delas é a presunção de primazia da liberdade de expressão no processo de ponderação. Ela se funda na ideia de que as colisões com outros valores constitucionais (incluindo os direitos da personalidade) devem se resolver, em princípio, em favor da livre circulação de ideias e informações. Isso não significa, por evidente, que a liberdade de expressão ostente caráter absoluto. Excepcionalmente, essa prioridade poderá ceder lugar à luz das circunstâncias do caso concreto. Sua posição preferencial deverá, porém, servir de guia para o intérprete, exigindo, em todo caso, a preservação, na maior medida possível, das liberdades comunicativas.
19. Uma segunda presunção se refere à suspeição de todas as medidas – legais, administrativas, judiciais ou mesmo privadas – que limitem a liberdade de expressão. Tais restrições deverão, por isso, submeter-se a um controle mais rigoroso, no qual se proceda a uma espécie de inversão da presunção de constitucionalidade das normas restritivas e se atribua um ônus argumentativo especialmente elevado para que se possa justificá-las.
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Por fim, a terceira presunção é a da proibição da censura e, consequentemente, da primazia das responsabilidades posteriores pelo exercício eventualmente abusivo da liberdade de expressão. A vedação à censura constitui, em verdade, uma das principais garantias da liberdade de expressão. A proibição prévia de divulgação de uma ideia, informação ou obra representa a violação mais extrema deste direito, uma vez que implica a sua total supressão. Tal opção não ignora o perigo de que o exercício das liberdades comunicativas seja abusivo e produza danos injustos. No entanto, ela decorre do reconhecimento, historicamente comprovado, da impossibilidade de eliminar a priori os riscos de abusos sem comprometer a própria democracia e os demais valores essenciais tutelados, como a dignidade humana, a busca da verdade e a preservação da cultura e da memória coletivas. Em uma sociedade democrática, é preferível arcar com os custos sociais que decorrem de eventuais danos causados pela expressão do que o risco da sua supressão. Disso resulta a necessidade de conferir à liberdade expressão uma maior margem de tolerância e imunidade e de estabelecer a vedação à censura.
21. Tal vedação foi textualmente acolhida pela Constituição de 1988, em seus artigos 5º, inciso IX, e 220, §2º. O regime constitucional adotado em matéria de liberdade de expressão é, portanto, o de responsabilização posterior, e não o de interdição prévia12. Isso, é claro, não significa que os demais princípios e valores constitucionais em conflito serão sacrificados. Em regra, nas hipóteses de exercício abusivo desta liberdade, o caminho para a acomodação dos interesses colidentes é o recurso aos diversos mecanismos de sanção e reparação a posteriori oferecidos pela ordem jurídica, que incluem a retratação, a retificação, o direito de resposta, a responsabilização civil e (muito excepcionalmente) penal. Somente em hipóteses excepcionalíssimas, extremas, teratológicas e justificadas por uma análise de proporcionalidade que considere a posição preferencial da liberdade de expressão – e.g. biografia que apenas contenha ataques pessoais e a divulgação dolosa de informações manifestamente falsas capazes de prejudicar gravemente o biografado – é que se pode cogitar de restrições prévias. No âmbito de biografias, como se verá, essas situações são raras e quase teóricas.
22. No caso dos dispositivos impugnados na presente ação direta, parece evidente que a aplicação das três presunções acima – primazia da liberdade de expressão no processo de ponderação, suspeição de medidas restritivas e vedação à censura – leva ao reconhecimento da inconstitucionalidade da interpretação que exige o consentimento do biografado para a publicação de biografias. Tal exigência de autorização confere aos direitos da personalidade um peso desproporcional no processo ponderativo, que restringe excessivamente a liberdade de expressão e permite uma injustificável censura privada. Por isso, não é possível compatibilizá-la com o regime constitucional de proteção reforçada das liberdades comunicativas.
II.3. Efeitos da exigência de autorização para a publicação de biografias
23. A discussão travada nesta ação não é meramente teórica. A interpretação que se tem conferido aos artigos 20 e 21 do Código Civil, no sentido de exigir a necessidade de autorização prévia do biografado (ou de seus familiares) para a produção e publicação de biografias, tem produzido efeitos perniciosos sobre o gênero literário e, por consequência, sobre a própria liberdade de expressão no Brasil.
24. Há três consequências evidentes. A primeira é o desestímulo à produção dessas obras. Como já se disse, a exposição da imagem, privacidade, intimidade e honra do biografado é da essência do gênero literário. Uma biografia não vive só de descrições objetivas e elogios. Ela envolve juízos de valor, perspectivas subjetivas muitas vezes controvertidas, fatos menos abonadores e críticas. Há, assim, grandes chances de que a obra desagrade as pessoas retratadas ou os seus familiares e de que estes acionem o Poder Judiciário para obter a interdição de veiculação ou a responsabilização civil. Os riscos de censura prévia e de pesadas indenizações tornam a sua elaboração pouco atraente aos autores, exercendo o chamado efeito resfriador (chilling effect) do discurso. Afinal, por que alguém iria dedicar anos de trabalho para produzir um livro que pode sequer chegar às prateleiras?
25. A segunda consequência é a criação de incentivos para a produção de biografias "chapa-branca" ou autorizadas. Ao invés de refletirem de forma séria as pesquisas sobre a vida e a personalidade do biografado, as obras passam a contar a versão da história que passar pelo crivo do retratado ou de seus herdeiros, não raro com a supressão de fatos desabonadores ou controvertidos. Tudo isso para evitar litígios e desavenças. Como Ruy Castro costuma dizer, para o sossego do biógrafo, o biografado ideal seria aquele que, em vida, foi órfão, filho único, solteirão e estéril13. Ou, na conhecida piada do meio literário, a primeira regra numa biografia é "matar a viúva"14.
26. Por fim, uma terceira consequência, que decorre diretamente das anteriores, é a sonegação da historiografia e da memória coletivas. Quantas biografias de personalidades importantes para a narrativa do país teriam deixado de ser produzidas por conta do atual regime legal? A proibição de publicação ou veiculação de um fato, informação ou obra não viola apenas a liberdade de expressão de seu autor, mas o direito de toda a coletividade a ter acesso ao seu conteúdo. Aqui, todos saem perdendo. Perdem o biografado, a sociedade e a história e a cultura brasileiras.
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Tais efeitos negativos são muito bem ilustrados por diversas decisões judiciais que proibiram a veiculação de obras biográficas de importantes políticos, autores, cantores, esportistas e figuras históricas nacionais, a requerimento dos biografados ou de seus familiares 15, em razão da ausência de consentimento e para a suposta proteção de sua privacidade e honra. Entre os casos mais emblemáticos, é possível mencionar as biografias de Garrincha, Roberto Carlos, Guimarães Rosa, Leminski, Anderson Silva, Lampião e a telenovela sobre Fernando Collor. As circunstâncias em que se deram as interdições trazem importantes insights para a compreensão da presente controvérsia constitucional.
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Uma das mais notórias polêmicas é a que envolveu a biografia "Estrela Solitária: Um Brasileiro Chamado Garrincha" sobre o famoso jogador de futebol, escrita por Ruy Castro 16. Apesar de ter sido elaborada com a condução de mais de 500 entrevistas e de diversas consultas à parceira e aos filhos do biografado 17, a obra ficou impedida de circular por quase um ano, por força de uma decisão liminar do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. A família de Garrincha pretendeu impedir o lançamento do livro, argumentando que não houve prévia autorização e que houve violação à imagem, honra e vida íntima do jogador, em razão de informações relacionadas ao seu alcoolismo, à sua relação tumultuada com os filhos e à exposição de detalhes anatômicos do craque 18. Posteriormente, a decisão liminar foi revertida e o livro pode circular. Nada obstante, o biógrafo foi condenado a indenizar as filhas de Garrincha por danos materiais – pela exploração comercial não autorizada do "nome" de Garrincha – e morais 19.
29. O cantor Roberto Carlos também esteve no centro dos debates sobre a autorização das biografias. Em 2007, o cantor acionou o Poder Judiciário para impedir a circulação da obra "Roberto Carlos em detalhes", do historiador Paulo Cesar de Araújo, sob o fundamento de que violaria sua intimidade, contando fatos dolorosos para ele como a amputação de parte da sua perna e a morte de sua última esposa20. Na decisão, o juiz da 20ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro entendeu que "[a] biografia de uma pessoa narra fatos pessoais, íntimos que se relacionam com o seu nome, imagem e intimidade e outros aspectos dos direitos da personalidade. Portanto, para que terceiro possa publicá-la, necessário é que obtenha a prévia autorização do biografado". Como resultado, mais de 11 mil exemplares foram recolhidos de todas as livrarias e, por força de acordo judicial firmado com Roberto Carlos, até hoje o livro está impedido de circular.
30. Outro caso emblemático foi o da biografia "Sinfonia de Minas Gerais — A vida e a literatura de João Guimarães Rosa", de Alaor Barbosa dos Santos. Em 2008, a filha do escritor, insatisfeita com a obra sobre o pai, obteve uma medida liminar para impedir a sua circulação 21. Segundo alegou, a biografia causaria graves danos à imagem e à vida privada do escritor e violaria direitos autorais. A herdeira pronunciou-se diversas vezes na mídia desqualificando a obra e o biógrafo. Somente cinco anos mais tarde a liminar foi revertida. O Judiciário, em primeira e segunda instâncias, rejeitou todas as alegações da filha do autor. O acórdão da apelação concluiu que "além de a obra chegar a ser criticada pelo excessivo cunho laudatório à pessoa de João Guimarães Rosa, sequer desce a aspectos delicados, polêmicos, com ênfase na vida pessoal e íntima do biografado". Recentemente, a filha do escritor foi condenada a indenizar o biógrafo pelos danos morais e materiais causados.
31. Imbróglio semelhante se deu no caso do poeta curitibano Paulo Leminski. Suas herdeiras vetaram a circulação de duas biografias sobre o autor, com apoio nas disposições legais que exigem autorização para veiculação das obras. A primeira obra "O Bandido que sabia Latim", de Toninho Vaz, foi barrada apenas em sua quarta edição, em função da suposta inclusão de novo trecho que detalhava as condições da morte do irmão de Paulo. De acordo com as filhas, o trecho não contribuiria "para elucidar a personalidade e obra do biografado" e elas não concordariam "com a atitude de explorar fatos trágicos" 22. Posteriormente, as filhas e a viúva do poeta convidaram um amigo de Leminski a escrever uma nova biografia. Quando a obra "Passeando por Paulo Leminski", de Domingos Pellegrini, ficou pronta, o resultado não as agradou. Em especial, menções ao uso de álcool, à precariedade de bens em sua casa e à 'falta de banho" teriam aborrecido a família. A obra então não foi autorizada, mas ainda assim o biógrafo resolveu disponibilizá-la na internet.
32. Já a biografia do lutador Anderson Silva, "Anderson Spider Silva - o relato de um campeão nos ringues da vida" de Eduardo Ohata, não foi proibida de circular a pedido do autor ou de sua família, mas um por coadjuvante da história. Seu professor, alegando ter tido a sua imagem e reputação ofendidas pela afirmação contida no livro de que seria uma "pessoa do mal", obteve judicialmente o recolhimento de todos os exemplares à venda nas livrarias do país. A tutela antecipada obtida foi mantida pelo Tribunal, que entendeu pela primazia, no caso, dos direitos da personalidade do professor23.
33. _______________
O livro sobre a vida do rei do cangaço, "Lampião — O Mata Sete", de Pedro de Morais, também teve o seu lançamento e venda proibidos pela Justiça em 2011. A filha do famoso casal de cangaceiros entendeu que a tese sustentada na obra de que Lampião era homossexual e de que Maria Bonita era adúltera teria violado a honra e a privacidade das figuras históricas brasileiras. Segundo o autor, porém, haveria diversos relatos históricos que confirmavam as suas afirmações. Em primeira instância, o magistrado considerou que "para provar a sua tese de que Lampião era um homem covarde e violento, não precisa o requerido imputar ao mesmo a conduta homossexual, uma suposta impotência sexual ou ainda as supostas traições de sua companheira Maria Bonita, bastava o requerido investigar e narrar os vários fatos públicos e notórios", entendendo que essa abordagem teria sido ofensiva à honra e à intimidade dos falecidos e da autora24. Somente em 2014 a decisão foi revertida pelo Tribunal e a obra pode voltar a circular.
34. Por fim, há o caso da telenovela "O Marajá", produzida pela Rede Manchete em 1993, que contava a vida de Fernando Collor de Mello durante o exercício da Presidência da República e seu impeachment, em uma espécie de biografia audiovisual, misturando dramaturgia e jornalismo. Em que pese a vida de um político importante ser de evidente interesse público, sobretudo no caso de Collor, a estreia nunca aconteceu. Sua exibição foi proibida pela Justiça, pela alegação de ofensa à honra do ex-presidente, e nenhum capítulo jamais foi exibido25.
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As circunstâncias das proibições têm sido, portanto, as mais diversas e teratológicas. Elas invocam importantes discussões sobre os limites da crítica, o âmbito da intimidade e da vida privada que se deve interditar à curiosidade do público, sobretudo em relação a pessoas públicas, a existência de interesse público na divulgação de determinados fatos e a exigência da veracidade do conteúdo das obras. Como já disse, porém, a controvérsia constitucional submetida a esta Corte não diz respeito à forma adequada de solucionar todos os potenciais conflitos que podem emergir da publicação de obras biográficas. Cuida-se apenas de determinar se a lei pode consagrar a absoluta precedência dos direitos da personalidade, em detrimento da liberdade de expressão, estabelecendo um direito potestativo das pessoas retratadas, seus parentes ou herdeiros, de impedir a divulgação de biografias não autorizadas. No entanto, algumas considerações adicionais se impõem.
36. Em primeiro lugar, parece natural que as pessoas não gostem de ver os seus defeitos, fragilidades e detalhes mais íntimos (ou o de seus entes queridos) divulgados, sobretudo em um livro comercial. É também normal que, nesses casos, elas sintam a sua honra, imagem e privacidade invadidas. No entanto, a vida em sociedade impõe a todos violações aos direitos da personalidade, sem que estas sejam necessariamente ilícitas ou indenizáveis. Uma crítica negativa a um filme, espetáculo ou livro certamente causa um dano (moral e material) aos atores e escritores. As salas de cinema e teatro podem ficar vazias, os livros podem mofar nas prateleiras. Não se pode admitir, porém, que essas críticas sejam proibidas ou que deem ensejo a indenizações, sob pena de se asfixiar a própria liberdade de pensamento e expressão.
37. Por isso, vale o registro de que a liberdade de expressão não deve proteger somente ideias positivas, socialmente aceitas, inofensivas e neutras, mas também aquelas negativas, ofensivas, incômodas e chocantes. Essa é uma exigência do pluralismo e da tolerância, essencial em uma sociedade democrática. Ainda que alguns tipos de discurso sejam mais protegidos que outros (o discurso político é mais tutelado que a publicidade comercial, por exemplo), há uma presunção de que todas as formas de expressão são, em princípio, amparadas pela liberdade de expressão. Portanto, a liberdade de criação artística e intelectual conferida aos biógrafos não se restringe aos casos em que pretendam divulgar informações elogiosas. Ao contrário, a proteção tende a ser necessária justamente quando a obra possa constituir embaraço para a pessoa retratada ou sua família. Uma publicação verdadeira e lícita não pode depender da boa vontade e elevação de espírito dos biografados.
38. Há, ainda, uma importante discussão sobre o âmbito de proteção da intimidade e da vida privada em relação a pessoas públicas e não públicas. A doutrina e a jurisprudência costumam identificar um elemento decisivo na determinação da intensidade dessa proteção: o grau de exposição pública da pessoa, em razão de seu cargo ou atividade, ou até mesmo de alguma circunstância eventual. A privacidade de indivíduos de vida pública – políticos, atletas, artistas – sujeita-se a parâmetro de aferição menos rígido do que os de vida estritamente privada. Isso decorre, naturalmente, da necessidade de auto-exposição, de promoção pessoal ou do interesse público na transparência de determinadas condutas. Convém sublinhar, porém, que o direito de privacidade existe em relação a todas as pessoas e deve ser protegido. Como bem afirmou Ana Paula de Barcellos,
Não é próprio afirmar, portanto, que alguns indivíduos teriam renunciado genericamente à inviolabilidade de sua intimidade e vida privada pelo fato de serem pessoas notórias. É certo que, dependendo de suas opções pessoais, o âmbito de proteção da intimidade e da vida privada de um indivíduo será menor que o de outros (...). Isso não significa, porém, que os indivíduos – todos eles – não sejam titulares de alguma esfera de intimidade que poderá ser protegida pelo Direito.26
39. Ainda que se reconheça que algum âmbito da privacidade de pessoas públicas deva ser interditado à curiosidade alheia, a definição do conteúdo dessa esfera de proteção é uma tarefa muito complexa. É por isso que se deve utilizar com cautela critérios como o de "interesse público", que deve ser presumido quando envolver pessoas notórias. Em certos casos, será inegável a existência de interesse público no conhecimento dos fatos narrados, ainda que privados. Todos conhecem Einstein por suas grandes realizações, mas o contexto em que foram produzidas suas descobertas e os elementos que moldavam sua personalidade também podem ser classificados como informações de interesse público. Outro bom exemplo seria o de Hitler. Não por acaso, trata-se de uma das personalidades mais estudadas da história, inclusive sob perspectiva psicológica e psiquiátrica. Parece difícil imaginar que algum dado de sua vida – por mais íntimo que seja – possa ser tido como indiferente ao interesse público.
40. Por outro lado, seria possível questionar se há interesse público a justificar a divulgação da orientação sexual de uma pessoa pública ou de detalhes da sua anatomia íntima (como no caso Garrincha). Essa, porém, é uma avaliação muito subjetiva, que, em regra, deve ser deixada para o julgamento do público. Não se pode permitir que o Estado possa proibir a divulgação de informações verdadeiras obtidas por meios lícitos, apenas por considerar que seriam frívolas ou de mau gosto.
41. Outra importante discussão no âmbito das obras biográficas é a exigência de veracidade de seu conteúdo. É que, como regra, as biografias são apresentadas aos leitores como obras de não- ficção. Assim, requer-se do biógrafo uma postura responsável e uma investigação mais cuidadosa do que aquela exigida dos jornalistas e da imprensa em geral. Na feliz formulação de Ana Paula de Barcellos,
[O] biógrafo, diferentemente do veículo de imprensa, não está premido pelo tempo nem tem o compromisso de divulgar, da forma mais célere possível, os fatos ocorridos no dia. (...) Daí porque não se haverá de empregar para biografias o mesmo critério acerca, e.g., da verdade ou falsidade dos fatos narrados que se utiliza no caso da imprensa. (...) O biógrafo, ao contrário, tem a sua disposição muito mais material, além de meses e por vezes anos para desenvolver seu trabalho, de modo que é natural que a exigência dirigida a ele no particular seja mais rigorosa.27
42. Não se trata de impedir a revelação de fatos pessoais, juízos de valor ou pontos de vista, ainda que controvertidos, positivos, neutros ou desagradáveis, mas sim de rechaçar que ataques pessoais e informações manifestamente falsas sejam apresentados de forma dolosa ao público sob a forma de relato isento. Deve-se ressalvar, porém, que haverá legítimo exercício do direito de manifestação do pensamento sempre que o autor atuar de maneira diligente, mesmo quando a informação transmitida não seja correta ou venha a se provar falsa.
43. Também parece evidente que biografias ou qualquer outro tipo de publicação devem ter limite na legalidade. Não se pode cogitar do cometimento de ilícitos para a obtenção de informações a serem narradas, como o grampo do telefone do biografado ou a instalação de escutas ilegais em sua na casa.
44. Por fim, uma vez que as informações sejam obtidas por meio lícito e sejam verdadeiras (ou não sabidamente falsas), não haveria ilicitude na divulgação, tampouco dever de compensar por um suposto uso comercial da "imagem" alheia. Não parece que o conhecimento sobre determinados eventos da vida de uma pessoa seja um patrimônio suscetível de apropriação privada. Embora esse conhecimento possa ser vertido em uma obra de interesse comercial, isso não significa que a pessoa retratada seja dona da sua notoriedade28.
III. INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONALMENTE ADEQUADA DOS DISPOSITIVOS IMPUGNADOS
45. Todas as considerações acima reforçam a inconstitucionalidade da solução estabelecida pelo legislador nos artigos 20 e 21 do Código Civil. Tais dispositivos, em sua extensão textual, não conferem o adequado peso à liberdade de expressão. Ao contrário, as liberdades de expressão e de informação são por ele esvaziadas, consagrando-se uma inválida precedência abstrata dos direitos da personalidade sobre as liberdades comunicativas. Tal primazia desconsidera a proteção especial conferida pela ordem constitucional à liberdade de expressão e dá ensejo à censura prévia. Por isso, esses dispositivos devem ser interpretados conforme a Constituição, para que seja firmado que, em sede de biografias, literárias ou audiovisuais, não há necessidade de se obter autorização prévia dos indivíduos retratados (ou de seus familiares, no caso de falecimento).
46. A dispensa de autorização prévia das pessoas retratadas em biografias, como se viu, não impõe uma primazia absoluta e abstrata da liberdade de expressão sobre os direitos da personalidade. Eventuais abusos de direito e danos ilegítimos à honra, à intimidade e à vida privada dos biografados estarão, como regra absolutamente geral, sujeitos a intervenções a posteriori. A opção pela composição posterior permitirá, na quase totalidade dos casos, que nenhum dos valores envolvidos seja totalmente sacrificado, realizando a ideia de ponderação e de concordância prática. A proibição de divulgação somente pode ocorrer em situações excepcionalíssimas, extremas teratológicas e justificadas por uma análise de proporcionalidade que considere a posição preferencial da liberdade de expressão. Por outro lado, não será cabível qualquer tipo de reparação pela divulgação de opiniões, juízos de valor ou fatos verdadeiros, cujo conhecimento acerca de sua ocorrência tenha sido obtido por meio lícito, presumindo-se, em nome da liberdade de expressão e de informação, o interesse público na livre circulação de notícias e ideias. Na dúvida, portanto, a resposta será sempre a liberdade de expressão. Na feliz frase de Louis Brandeis, "a luz solar é o melhor dos desinfetantes"29.
IV. CONCLUSÃO
46. Por todo o exposto, voto no sentido de dar integral provimento ao pedido do requerente, a fim de declarar a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil para, mediante interpretação conforme a Constituição, afastar do ordenamento jurídico brasileiro a necessidade do consentimento da pessoa biografada e, a fortiori, das pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas) para a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais.
É como voto.
10/06/2015 PLENÁRIO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL
ESCLARECIMENTO
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Agradeço a Vossa Excelência. Eu peço apenas um esclarecimento para efeito de anotação. Salvo melhor juízo, a eminente Relatora considera procedente integralmente a ação sem redução de texto, dá interpretação conforme a Constituição aos artigos 20 e 21. E Vossa Excelência julga parcialmente procedente.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - É, este é o pedido, exatamente parcial...
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - É, mas, quando a gente declara "sem redução de texto", a gente dá procedência parcial.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - É que o pedido é para dar procedência.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – É que o pedido é pela procedência nesses termos.
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Então, procedência sem redução de texto, está bem.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Pois não. Então, não há divergência entre ambos.
10/06/2015 PLENÁRIO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL
ANTECIPAÇÃO AO VOTO
A SENHORA MINISTRA ROSA WEBER - Senhor Presidente, eu estive presente, em 2013, na audiência pública promovida pela Ministra Cármen Lúcia, eminente Relatora, a quem mais uma vez parabenizo pela iniciativa. E, naquela oportunidade, assistindo às manifestações dos diferentes participantes, me convenci da extrema delicadeza e da dificuldade deste tema. E não poderia ser diferente, Senhor Presidente, a sociedade é plural, e nós vivemos, graças a Deus, em uma democracia.
Hoje, as sustentações orais, todas extremamente qualificadas, reforçaram a minha convicção quanto à extrema delicadeza do tema. Os pareceres também já foram bem destacados. A própria etimologia da palavra "biografia", de origem grega, todos sabemos -"bio"- vida- e "grafia" - escrita-, escrita da vida, história da vida, já estaria a corroborar a delicadeza do tema, enquanto diz com a vida, a vida de todos nós. Estamos aqui decidindo sobre algo que diz com todos nós. Chegaria mesmo a afirmar que a biografia é uma construção de memória, e não há povo – ou sociedade - que possa viver sem memória.
Ouvi, naquela audiência pública, em uma manifestação - pelo que me recordo foi de Ana Maria Machado, mas não voltei aos registros para confirmar, mas penso que foi dela que ouvi -, que a biografia sempre é uma versão. É uma versão sobre uma vida. Isso, confesso que me apaziguou o espírito, porque, na verdade, sobre uma vida pode haver várias versões. Nós mesmos somos versões de nós mesmo quantas vezes? Permitam-me lembrar um filme francês belíssimo a que assisti, não faz muito, A delicadeza do amor, em que um dos protagonistas dizia que amava uma determinada pessoa porque ela permitia que ele fosse a melhor versão dele próprio. Então, por essa ótica, fiquei apaziguada, porque afinal quantas versões comporta uma vida!
Ouvi referência da tribuna, com relação à Inconfidência Mineira, a estudo acadêmico que estaria tirando certo protagonismo de Tiradentes,
ADI 4815 / DF
enquanto líder do movimento, para atribui-lo a Tomás Antônio Gonzaga. Permitam-me homenagear, a propósito, a desembargadora Mônica Sifuentes, que agora escreveu sobre Bárbara Heliodora e Alvarenga Peixoto, justamente, quem sabe, a colocar o foco da Inconfidência Mineira sobre outros protagonistas. Ou seja, muitas versões sobre o mesmo fato, o mesmo evento.
Comungo, na íntegra, com o voto da eminente Relatora. Entendo que controlar biografias, na verdade, implica controlar a história ou tentar controlar a história, tentar controlar a vida, tentar controlar ou apagar ou impedir que venha a lume a história e a própria memória.
A autorização prévia, na minha compreensão, constitui uma forma de censura prévia incompatível com o nosso Estado Democrático de Direito.
Permito-me fazer essas breves considerações, registrando que tenho voto escrito com relação a todos os aspectos, inclusive a essa questão agora - e por isso me eximo de tecer qualquer consideração - tão bem explicitada pelo Ministro Luís Roberto, no que tange à ponderação dos valores envolvidos nessa aparente colisão de princípios constitucionais.
Requeiro a juntada do voto escrito.
Eu também, Senhor Presidente, julgo procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade parcial sem redução de texto dos arts. 20 e 21 do Código Civil, reputando inexigível o consentimento da pessoa biografada e, a fortiori, das pessoas retratadas como coadjuvantes ou de seus familiares, no caso de pessoas falecidas, para publicação ou veiculação de obras de cunho biográfico, sejam elas literárias, audiovisuais ou fixadas por qualquer outro suporte tecnológico.
É como voto, Presidente.
10/06/2015 PLENÁRIO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL
VOTO
A Senhora Ministra Rosa Weber: 1. Senhor Presidente, reconheço, nos moldes dos arts. 103, IX, da Constituição da República e 2º, IX, da Lei 9.868/1999, a legitimidade ativa ad causam da Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL, entidade de classe representativa, em âmbito nacional, dos interesses da categoria econômica dos editores de livros, comprovada a existência de membros ou associados em pelo menos um terço dos Estados da Federação e presente o vínculo de afinidade temática entre o objeto da demanda e os objetivos institucionais da autora.
Também satisfeitos os demais pressupostos de admissibilidade, conheço da ação e passo a seu mérito, com as reflexões a seguir.
2. Biografias. Como revela a própria etimologia do termo, de origem grega, a combinar bio (vida) e grafia (escrita), a biografia ou escrita da vida consiste em modalidade de narrativa cujo foco é a vida pessoal de um ser humano, transitando, enquanto gênero literário, entre o jornalismo e a história.
Biografias são histórias de vidas tais como percebidas, apresentadas e contadas por outra pessoa. Guardam conexão com a história, a investigação policial, a investigação jornalística, a psicanálise, o documentário, a arqueologia e até mesmo a fofoca, não se resumindo, nessa medida, a meros e assépticos relatos, à apresentação objetiva de fatos. Como explica Hermione Lee, teórica literária, professora da Universidade de Oxford e renomada biógrafa, dentre outros, de Virginia Woolf, Philip Roth, Edith Warton, Elizabeth Bowen e Willa Cather:
"Mesmo na mais sóbria e factual das narrativas biográficas, 'o que realmente aconteceu' pode ser ambíguo ou obscuro. Para algumas vidas – como a vida de Jesus, a de Shakespeare ou a de Cleópatra – pode haver uma vasta massa de enunciações e uma série de histórias e lendas, mas pouca ou nenhuma evidência primária. Onde há mais evidências de primeira mão ou acreditadas, pode frequentemente haver, também, mentiras, exageros e segredos. Biógrafos podem passar uma boa quantidade de tempo esclarecendo os mitos ou as falsas pistas que seus assuntos tenham criado a respeito das suas próprias vidas."1
A biografia traduz-se, em última análise, tal qual a psicanálise, a filosofia, a ficção, a poesia, a sociologia, a etnografia e a história, em um modo específico de entender e explicar o ser humano.2
Sigmund Freud, o pai da psicanálise, a despeito de manifestações aparentemente hostis ao gênero, não deixou de lhe reconhecer relevo para a compreensão da psique humana, tendo ele próprio escrito controvertida biografia de Leonardo da Vinci. Algum paralelismo de método também se detecta:
"(...) seguir pistas, construir um padrão de comportamento, interpretar toda uma personalidade através da observação a detalhes significativos, decidir o que é relevante, encontrar na infância as causas ocultas do comportamento adulto. Freud comparava o processo à escavação arqueológica, uma metáfora que funciona tanto para a análise quanto para a biografia".3
A biografia, outrora tida, nos círculos acadêmicos, como gênero literário de menor grandeza – o que pode ser creditado ao preconceito para com um estilo sempre presente no gosto popular -, hoje é objeto de estudo nos departamentos de literatura e de história das universidades. Desempenha, ainda, relevante função social ao instigar a sociedade à reflexão, ensejando que conheça mais não apenas sobre o biografado – que em geral só o é porque a sua história de vida tem algo a dizer – mas também sobre ela própria. Assim,
"A biografia sempre reflete, e oferece, uma versão de política social. (...) A popularidade de certos tipos de biografias em diferentes países, períodos, e culturas – biografias de santos ou de heróis navais, de líderes religiosos, de jogadores de futebol ou estrelas do rock – fornecem uma visão daquela sociedade. O que aquela sociedade valora, com o que se importa, quem são os seus homens e mulheres visíveis e invisíveis?"4
Nas palavras de Jonathan Fenby, aclamado biógrafo de Charles De Gaulle, "as sociedades precisam e têm esse direito, de saber sobre seu passado e o seu presente e as biografias são parte disso". Daí o arguto questionamento do Prof. Ives Gandra Martins ao escrever sobre o tema: o que seria do historiador se só pudesse investigar biografias autorizadas".5
A propósito, citada pelo jurista brasileiro, Kitty Kelley, autora de biografias – não autorizadas – de personalidades como Oprah Winfrey, Elizabeth Taylor, Frank Sinatra e Jacqueline Kennedy, ressalta que "os familiares do biografado têm uma tendência natural de apagar o que é real, doloroso ou pouco lisonjeiro da vida dos biografados. Essas eliminações infelizmente privam a história de vida de uma personalidade de sua profundidade"6.
3. Liberdade de expressão. A presente ADI, concernente à publicação de obras biográficas, a toda evidência diz não só com a liberdade de expressão em geral, mas com o resguardo da própria liberdade de imprensa, dada a nebulosa e por vezes inviável separação entre uma obra biográfica e um trabalho jornalístico. A obra biográfica, com a narrativa de fatos, encerra, por determinado ângulo, inequívoco conteúdo jornalístico. Não por acaso muitos dos mais competentes biógrafos são jornalistas reconhecidos.
Como espécie do gênero liberdade de expressão do pensamento, a liberdade de imprensa não admite restrição arbitrária a partir da modalidade textual adotada pelo emissor da expressão. Diante da finalidade informativa, incide a proteção constitucional independentemente da linguagem (código) escolhida pelo emissor para promover a veiculação, que pode ser textual – escrita ou falada – ou não textual – simbólica, audiovisual, imagética ou fotográfica –, e independentemente de juízo sobre a sua qualidade intrínseca – se informativa, opinativa etc.
Daí a pertinência da rememoração das balizas lançadas ao julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 130/DF, no qual esta Suprema Corte declarou não recepcionado pela Constituição da República "todo o conjunto de dispositivos da Lei federal nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967". Da ementa do acórdão paradigma (ADPF nº 130/DF), pelo qual o Supremo Tribunal Federal reconheceu a incompatibilidade da Lei nº 5.250/1967 (Lei de Imprensa) com a Constituição da República, destaco os seguintes excertos:
"ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). LEI DE IMPRENSA. ADEQUAÇÃO DA AÇÃO. REGIME CONSTITUCIONAL DA "LIBERDADE DE INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA", EXPRESSÃO SINÔNIMA DE LIBERDADE DE IMPRENSA. A "PLENA" LIBERDADE DE IMPRENSA COMO CATEGORIA JURÍDICA PROIBITIVA DE QUALQUER TIPO DE CENSURA PRÉVIA. A PLENITUDE DA LIBERDADE DE IMPRENSA COMO REFORÇO OU SOBRETUTELA DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. LIBERDADES QUE DÃO CONTEÚDO ÀS RELAÇÕES DE IMPRENSA E QUE SE PÕEM COMO SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE E MAIS DIRETA EMANAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. O CAPÍTULO CONSTITUCIONAL DA COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO SEGMENTO PROLONGADOR DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. TRANSPASSE DA FUNDAMENTALIDADE DOS DIREITOS PROLONGADOS AO CAPÍTULO PROLONGADOR. PONDERAÇÃO DIRETAMENTE CONSTITUCIONAL ENTRE BLOCOS DE BENS DE PERSONALIDADE: O BLOCO DOS DIREITOS QUE DÃO CONTEÚDO À LIBERDADE DE IMPRENSA E O BLOCO DOS DIREITOS À IMAGEM, HONRA, INTIMIDADE E VIDA PRIVADA. PRECEDÊNCIA DO PRIMEIRO BLOCO. INCIDÊNCIA A POSTERIORI DO SEGUNDO BLOCO DE DIREITOS, PARA O EFEITO DE ASSEGURAR O DIREITO DE RESPOSTA E ASSENTAR RESPONSABILIDADES PENAL, CIVIL E ADMINISTRATIVA, ENTRE OUTRAS CONSEQUÊNCIAS DO PLENO GOZO DA LIBERDADE DE IMPRENSA. PECULIAR FÓRMULA CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO A INTERESSES PRIVADOS QUE, MESMO INCIDINDO A POSTERIORI, ATUA SOBRE AS CAUSAS PARA INIBIR ABUSOS POR PARTE DA IMPRENSA. PROPORCIONALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS E MATERIAIS A TERCEIROS. RELAÇÃO DE MÚTUA CAUSALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E DEMOCRACIA. RELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE PENSAMENTO CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE. A IMPRENSA COMO INSTÂNCIA NATURAL DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E COMO ALTERNATIVA À VERSÃO OFICIAL DOS FATOS. (...) REGIME CONSTITUCIONAL DA LIBERDADE DE IMPRENSA COMO REFORÇO DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO EM SENTIDO GENÉRICO, DE MODO A ABARCAR OS DIREITOS À PRODUÇÃO INTELECTUAL, ARTÍSTICA, CIENTÍFICA E COMUNICACIONAL. A Constituição reservou à imprensa todo um bloco normativo, com o apropriado nome "Da Comunicação Social" (capítulo V do título VIII). A imprensa como plexo ou conjunto de "atividades" ganha a dimensão de instituição-ideia, de modo a poder influenciar cada pessoa de per se e até mesmo formar o que se convencionou chamar de opinião pública. Pelo que ela, Constituição, destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas respeitantes à vida do Estado e da própria sociedade. A imprensa como alternativa à explicação ou versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da sociedade e como garantido espaço de irrupção do pensamento crítico em qualquer situação ou contingência. Entendendo-se por pensamento crítico o que, plenamente comprometido com a verdade ou essência das coisas, se dota de potencial emancipatório de mentes e espíritos. O corpo normativo da Constituição brasileira sinonimiza liberdade de informação jornalística e liberdade de imprensa, rechaçante de qualquer censura prévia a um direito que é signo e penhor da mais encarecida dignidade da pessoa humana, assim como do mais evoluído estado de civilização. (...)
O art. 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena liberdade de atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados direitos de personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela própria, Constituição. (...) Os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa são bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos. Daí que, no limite, as relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às segundas; ou seja, antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do Estado, sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização ou consequência do pleno gozo das primeiras. (...) Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário, pena de se resvalar para o espaço inconstitucional da prestidigitação jurídica. Silenciando a Constituição quanto ao regime da internet (rede mundial de computadores), não há como se lhe recusar a qualificação de território virtual livremente veiculador de ideias e opiniões, debates, notícias e tudo o mais que signifique plenitude de comunicação.
MECANISMO CONSTITUCIONAL DE CALIBRAÇÃO DE PRINCÍPIOS. O art. 220 é de instantânea observância quanto ao desfrute das liberdades de pensamento, criação, expressão e informação que, de alguma forma, se veiculem pelos órgãos de comunicação social. Isto sem prejuízo da aplicabilidade dos seguintes incisos do art. 5º da mesma Constituição Federal: vedação do anonimato (parte final do inciso IV); do direito de resposta (inciso V); direito a indenização por dano material ou moral à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas (inciso X); livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer (inciso XIII); direito ao resguardo do sigilo da fonte de informação, quando necessário ao exercício profissional (inciso XIV). (...)
PROPORCIONALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E RESPONSABILIDADE CIVIL POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. Sem embargo, a excessividade indenizatória é, em si mesma, poderoso fator de inibição da liberdade de imprensa, em violação ao princípio constitucional da proporcionalidade. A relação de proporcionalidade entre o dano moral ou material sofrido por alguém e a indenização que lhe caiba receber (quanto maior o dano maior a indenização) opera é no âmbito interno da potencialidade da ofensa e da concreta situação do ofendido.
(...)
RELAÇÃO DE MÚTUA CAUSALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E DEMOCRACIA. A plena liberdade de imprensa é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloquente atestado de evolução político- cultural de todo um povo. Pelo seu reconhecido condão de vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do papel, a Imprensa passa a manter com a democracia a mais entranhada relação de mútua dependência ou retroalimentação. (...)
ELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE PENSAMENTO CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE. A IMPRENSA COMO INSTÂNCIA NATURAL DE FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E COMO ALTERNATIVA À VERSÃO OFICIAL DOS FATOS. O pensamento crítico é parte integrante da informação plena e fidedigna. O possível conteúdo socialmente útil da obra compensa eventuais excessos de estilo e da própria verve do autor. O exercício concreto da liberdade de imprensa assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero ou contundente, especialmente contra as autoridades e os agentes do Estado. A crítica jornalística, pela sua relação de inerência com o interesse público, não é aprioristicamente suscetível de censura, mesmo que legislativa ou judicialmente intentada. O próprio das atividades de imprensa é operar como formadora de opinião pública, espaço natural do pensamento crítico e "real alternativa à versão oficial dos fatos" (...)
NÚCLEO DURO DA LIBERDADE DE IMPRENSA E A INTERDIÇÃO PARCIAL DE LEGISLAR. A uma atividade que já era "livre" (incisos IV e IX do art. 5º), a Constituição Federal acrescentou o qualificativo de "plena" (§ 1º do art. 220). (...)" (ADPF 130/DF, Relator Ministro Ayres Britto, Tribunal Pleno, DJe 05.11.2009, destaquei)
A transcrição evidencia que, na interpretação empreendida por esta Suprema Corte, a imposição de restrições ao exercício das liberdades de expressão, opinião, manifestação do pensamento e imprensa que não se contenham nos limites materiais, expressamente excepcionados, da própria Lei Fundamental não se harmoniza com o regime constitucional vigente no país.
Rezam os arts. 5º, IV, IX, XIV, e 220 da Carta Política, in verbis:
"Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
(...)
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
(...)
XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;"
"Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
(...)
§ 6º - A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade." (destaquei)
Ao assegurar ampla liberdade à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, os arts. 5º, IV, IX e XIV, e 220, caput, da Constituição Brasileira reverberam um dos sustentáculos dos regimes democráticos, cuja imprescindibilidade a experiência política internacional se encarregou de consagrar.
Como amplamente conhecido, na história do constitucionalismo moderno, surgiu com a Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos a ideia de que a existência de amplas interdições ao poder do Estado de interferir nas liberdades de expressão e de imprensa constitui premissa de comunidade política caracterizada pelo autogoverno e pela liberdade individual. No dizer de Anthony Lewis, emérito professor da Escola de Direito de Harvard falecido em 2013, "liberdade para dizer e escrever o que se quer é uma necessidade inescapável da democracia".
No Estado Democrático de Direito, a liberdade de expressão é a regra, admitida a sua restrição somente em situações excepcionais e nos termos da lei que, em qualquer caso, deverá observar os limites materiais emanados da Constituição.
Mostra-se substantivamente incompatível com o Estado Democrático de Direito a imposição de restrições às liberdades de manifestação do pensamento, expressão, informação e imprensa que traduzam censura prévia.
O núcleo essencial e irredutível do direito fundamental à liberdade de expressão do pensamento compreende não apenas os direitos de informar e ser informado, mas também os direitos de ter e emitir opiniões e de fazer críticas.
Em nada contribui para a dinâmica de uma sociedade democrática reduzir a expressão do pensamento a aspecto informativo pretensamente neutro e imparcial, ceifando-lhe as notas essenciais da opinião e da crítica. Não se compatibiliza com o regime constitucional das liberdades, nessa ordem de ideias, a interdição do uso de expressões negativas em manifestação opinativa que pretenda expressar desaprovação pessoal por determinado fato, situação, ou ocorrência.
A sujeição da publicação de obra de caráter biográfico à prévia autorização ou licença da pessoa biografada e de outras pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares no caso de pessoas falecidas) aniquila a proteção às liberdades de manifestação do pensamento, de expressão da atividade intelectual, artística e científica e de informação, golpeadas em seu núcleo essencial. Tais liberdades, de um lado, e a autorização ou licença, de outro, são conceitos excludentes. A Constituição veda não somente ao Poder Público, mas também ao particular, a interferência nas liberdades de manifestação e de expressão mediante o emprego de artifícios institucionais, como a licença e a censura prévias, que atuem no sentido de delinear o seu conteúdo.
Vale lembrar a manifestação do então Chefe do Poder Judiciário da Inglaterra, Lord Chief Justice Harry K. Woolf, em 2002, no sentido de que os juízes "não devem agir como censores ou árbitros do bom gosto. (...) O fato de a publicação adotar uma abordagem mais sensacionalista do que o tribunal consideraria aceitável não é relevante. (...) Os tribunais não devem ignorar o fato de que, se os jornais não publicarem informações em que o público está interessado, haverá menos jornais publicados, o que não atenderá ao interesse público."
Assim como incompatível com o Estado Democrático de Direito instituído pela Carta de 1988 o arrogar-se, pelo Poder Judiciário, ou qualquer dos outros Poderes da República, do comando da linha editorial de qualquer veículo de imprensa, a publicação de obras de teor biográfico em absoluto pode ficar na dependência da chancela do biografado. A necessidade de autorização para biografias traduz censura prévia, em dissonância com as garantias albergadas nos arts. 5º, IV, IX e XIV, e 220, §§ 2º e 6º, da Lei Maior, em indevida reintrodução do espírito autoritário expurgado pela Constituição vigente.
4. O direito à privacidade. É certo que a Constituição da República qualifica como invioláveis, na condição de direitos fundamentais da personalidade, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, conferindo-lhes especial proteção, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação (art. 5º, X).
Tal como a liberdade de manifestação do pensamento – e seus desdobramentos como a liberdade de expressão intelectual, artística e científica e a liberdade de imprensa –, o chamado direito à privacidade (right to privacy) – e os seus consectários direito à intimidade, à honra e à imagem – também emana do reconhecimento de que a personalidade individual merece ser protegida em todas as suas manifestações.
Apesar da muita tinta despendida a respeito, o conceito de privacidade permanece, nas palavras de Richard Posner, elusivo e mal definido.7 No já clássico artigo The Right to Privacy, escrito a quatro mãos pelos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis, sugere-se a relação de tal estado de coisas com o fato de as mudanças políticas, sociais e econômicas demandarem incessantemente o reconhecimento de novos direitos, impondo, de tempos em tempos, a redefinição da exata natureza e extensão da proteção à privacidade do indivíduo.8
Na quadra atual, inegável que a privacidade, enquanto direito a ser deixado em paz, na expressão cunhada por Warren e Brandeis, merece proteção adequada e efetiva do ordenamento jurídico. Cumpre indagar, porém, o escopo e a extensão desse direito específico.
Privacidade em absoluto se confunde com isolamento. Já em 1624 anotava o poeta John Donne, com precisão científica, que "nenhum homem é uma ilha, completo em si mesmo; todo homem é um pedaço do continente, uma parte do todo" (tradução livre).
Proteção da privacidade em absoluto diz com direito a passar a vida sem ser contrariado, sem sentir desconforto social, sem ser ofendido.
Em uma abordagem contemporânea e integradora, pode-se dizer que o direito à privacidade visa a proteger "a subjetividade emergente, dinâmica, dos esforços de atores comerciais e governamentais para tornar indivíduos e comunidades fixos, transparentes e predizíveis. Ela protege as práticas (...) através das quais a capacidade de auto determinação se desenvolve".9
Assim compreendida a privacidade, duas conclusões se apresentam. A primeira é que, tanto quanto a ampla liberdade de expressão, a proteção da privacidade também é uma característica estrutural indispensável das sociedades democráticas.
A segunda conclusão é que o direito à privacidade e a liberdade de expressão não se contradizem, não se opõem. Ambos, ao contrário, são complementares, fornecendo proteção a diferentes dimensões da personalidade humana.
Tanto o reconhecimento de uma esfera de privacidade imune à ingerência quando a garantia de salvo-conduto à palavra proferida surgiram, na história do constitucionalismo moderno, como fatores de limitação do poder das autoridades constituídas sobre os cidadãos. Se aos cidadãos não for assegurada uma esfera de intimidade privada, livre de ingerência externa, um espaço onde o pensamento independente e novo possa ser gestado com segurança, de que servirá a liberdade de expressão?
Em vez de supor um choque entre liberdade de expressão e direito à intimidade, situando-os em polos opostos de uma arena, a fim de decidir, mediante o recurso a um critério valorativo qualquer (político, econômico, moral, ideológico etc.), aquele que deve prevalecer em cada caso, a melhor hermenêutica constitucional é a que afirma o caráter sistemático, harmônico, e não excludente dos direitos fundamentais. Se tanto um quanto o outro princípio envolvidos estão consagrados em normas de igual hierarquia, não se pode sacrificar nenhuma delas, negando-lhe vigência, ao simplesmente afirmar a prevalência de um em detrimento do outro. Cabe ao intérprete buscar solução que traduza reverência a todos os preceitos constitucionais envolvidos, esclarecendo, isso sim, o seu âmbito próprio de proteção.
O direito à privacidade tem como objeto, na quase poética expressão de Warren e Brandeis, "a privacidade da vida privada". Assim, em qualquer grau e em conexão a qualquer âmbito que a vida de alguém tenha cessado, previamente à publicação em questão, de ser privada, não mais fará jus, nessa extensão, a essa proteção. Há casos em que as vidas pública e privada de uma pessoa se confundem. E há casos outros em que a vida privada se confunde com as próprias obras intelectuais ou artísticas por ela produzidas. Seria possível separar a obra filosófica de Sócrates da sua vida privada?
O direito à privacidade não se presta à proibição da publicação de qualquer assunto que seja de interesse geral ou público, simplesmente, porque as matérias de interesse público estão situadas fora do seu escopo. Não se trata, pois, de afirmar uma suposta supremacia da liberdade de expressão sobre o direito à privacidade, e sim de delimitar os campos próprios a cada proteção.
Tampouco é possível classificar fatos ou feitos como públicos ou privados per se. Os mesmos fatos podem ser estritamente privados ou adquirir conotação pública e interesse público legítimo, a depender de se tratar de uma pessoa privada ou pública. O escopo da proteção são os assuntos pessoais, em relação aos quais não se vislumbra interesse público legítimo na sua revelação, e que o indivíduo prefere manter privados. "É a invasão injustificada da privacidade individual que deve ser repreendida e, tanto quanto possível, prevenida"10.
No caso do direito à privacidade, vale observar, ainda, que os seus maiores desafios contemporâneos nada tem a ver com a imposição de restrições à liberdade de manifestação, relacionados que são aos imperativos da segurança nacional e da eficiência do Estado, à proliferação de sistemas de vigilância e à emergência das mídias sociais, juntamente com a manipulação de dados pessoais em redes computacionais por inúmeros, e frequentemente desconhecidos, agentes públicos e privados.11
5. Pessoas públicas. Há interesse público prima facie em que seja assegurada a livre expressão relativamente a fatos da vida de pessoas públicas.
Os riscos envolvidos no exercício da livre expressão, em tal hipótese, não podem ser tais que apresentem permanente e elevado potencial de sacrifício pessoal como decorrência da exteriorização das manifestações do pensamento relacionadas a assuntos de interesse público, real ou aparente. Um sistema que sujeita a manifestação de opiniões e críticas ligadas a questões de interesse público a riscos sobremodo elevados traduz efetivo modo apofático de censura prévia, na medida em que induz, pela intimidação e pelo medo, o silêncio das consciências. O ônus social é enorme e o prejuízo à cidadania, manifesto.
Nesse contexto, é preciso ressaltar que afirmações destemperadas, descuidadas, irrefletidas, e até mesmo profundamente equivocadas, são inevitáveis em um debate, e sua livre circulação enseja o florescimento das ideias tidas por efetivamente valiosas ou verdadeiras, na visão de cada um. Àquelas manifestações indesejáveis estende-se necessariamente, pois, o escopo da proteção constitucional à liberdade de expressão, a despeito de seu desvalor intrínseco, sob pena de se desencorajarem pensamento e a imaginação, em contradição direta com a diretriz insculpida no art. 220, caput, da Carta da República.
No caso dos ocupantes de cargos ou funções na estrutura do Estado, investidos de autoridade, é inevitável – e mesmo desejável, do ponto de vista do interesse público – que eles tenham o exercício das suas atividades escrutinado seja pela imprensa, seja pelos cidadãos, que podem exercer livremente os direitos de informação, opinião e crítica. É sinal de saúde da democracia – e não o contrário –, que os agentes políticos e públicos sejam alvo de críticas – descabidas ou não – oriundas tanto da imprensa como de indivíduos particulares, seja no uso de papel e lápis, seja no uso das amplamente disseminadas ferramentas tecnológicas de comunicação em rede.
A esse respeito lembro, porque oportunas, as ponderações do Justice Brennan, da Suprema Corte dos Estados Unidos, no paradigmático caso New York Times vs Sullivan, no sentido de que a garantia de proteção conferida pela Constituição às aludidas liberdades de expressão e de imprensa se funda no
"princípio de que o debate de questões públicas deve ser irrestrito, robusto e aberto, e que ele bem pode incluir ataques ao governo e a funcionários públicos que sejam veementes, cáusticos e às vezes desagradavelmente contundentes. (...) Aqueles que pretendem criticar a conduta oficial podem ser dissuadidos de expressar sua crítica, mesmo que ela seja tida como verdadeira e mesmo que seja de fato verdadeira, por duvidar que ela possa ser provada em juízo ou pelo medo da despesa por ter de fazê-lo." (destaquei)
Não há dúvida de que a restrição à crítica tende a propiciar um ambiente percebido como mais confortável por aqueles investidos de autoridade na seara pública. O regime democrático, contudo, não tolera a imposição de ônus excessivos a indivíduos ou órgãos de imprensa que se proponham a emitir publicamente opiniões, avaliações ou críticas sobre a atuação de agentes públicos.
Esses aspectos ficaram muito bem delineado no julgamento do caso Lingens v. Austria pela Corte Europeia de Direitos Humanos que, já em 1986, considerou incompatível com as liberdades de expressão e de imprensa asseguradas na Convenção Europeia de Direitos Humanos a imposição de sanção pelo Estado demandado – Áustria –, com base na legislação doméstica de "proteção da reputação", ao uso de expressões tais como "oportunista vil", "imoral" e "indigno", que, embora possam, em princípio, ferir a reputação de alguém, foram direcionadas a agente público.
Na visão daquela Corte supranacional, a cláusula convencional da liberdade de expressão
"constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e uma das condições básicas para o seu progresso e para a autorrealização de cada indivíduo. (...) É aplicável não só a 'informação' ou 'ideias' que são recebidas favoravelmente, ou consideradas inofensivas, ou recebidas com indiferença, mas também àquelas que ofendem, chocam ou incomodam. Tais são as exigências do pluralismo, da tolerância e da abertura de espírito sem as quais não existe 'sociedade democrática' (...).
Tais princípios assumem particular importância na medida em que dizem respeito à imprensa. Embora a imprensa não deva exceder os limites definidos, entre outros, para a 'proteção da reputação de terceiros', é, no entanto, sua incumbência transmitir informações e ideias sobre questões políticas assim como sobre outras áreas de interesse público. Não só tem a imprensa a tarefa de transmitir tais informações e ideias: o público também tem o direito de recebê-las (...). Nesse contexto, a Corte não pode aceitar a conclusão, expressa no acórdão proferido pelo Tribunal de Apelação de Viena, no sentido de que a tarefa da imprensa era a de transmitir a informação, a interpretação da qual deveria ser deixada essencialmente para o leitor.
(...) embora a penalidade imposta ao autor, a rigor, não o tenha impedido de se expressar, ainda assim equivale a um tipo de censura, suscetível de desencorajá-lo de novamente fazer críticas desse tipo no futuro; (...) tal sentença seria suscetível de dissuadir jornalistas de contribuírem para a discussão pública de questões que afetam a vida da comunidade. Da mesma forma, uma sanção como esta é passível de afetar a imprensa no desempenho das suas tarefas como provedora de informação e cão de guarda do interesse público." (destaquei)
Quando em questão o exercício de função de interesse público, e não a vida privada ou a intimidade, a ponderação do interesse público na manifestação do pensamento conduz a um elevado grau de tolerância no tocante aos requerimentos de proteção do interesse individual.
Conforme já enfatizado, quando se trata de ocupante de um cargo público, investido de autoridade, e que está, no desempenho das suas funções, sujeito ao escrutínio da imprensa e do público em geral, mostram-se vultuosamente mais largos os limites da crítica aceitável. Em tais casos, não basta, à higidez dos limites à liberdade de manifestação do pensamento, que (i) estejam eles devidamente previstos em leis formalmente válidas e (ii) atendam a fins constitucionalmente legítimos. É necessário, ainda, que (iii) a pretendida interferência nas liberdades de expressão e de imprensa traduza, ao ser aplicada ao caso concreto, um limite necessário à preservação de uma sociedade democrática e plural.
Nesse contexto, o critério da proporcionalidade desautoriza a imposição de restrições à liberdade de expressão, ainda que teoricamente fundadas na proteção da honra ou da imagem pessoais, quando tiverem como efeito inibir a manifestação de juízos críticos a ocupante de função de interesse público no exercício das suas funções, que, apesar de mordazes, se mostram, na quadra atual, triviais.
A imposição de restrições às liberdades de expressão e de manifestação do pensamento que, embora destinadas em princípio à proteção de finalidades constitucionalmente legítimas, de modo algum se mostram necessárias ou adequadas no contexto de uma democracia plural, não sobrevive ao teste da proporcionalidade.
6. Conclusão. Penso que as liberdades de expressão e de manifestação do pensamento estarão submetidas a efetiva censura prévia não apenas se a publicação de biografias contemplando informações de interesse do público estiver sujeita à autorização do biografado, mas ao risco de pagamento de indenizações por todo e qualquer erro que não cause dano concreto e efetivo, mormente quando, ausente deliberada má- fé e não demonstrada a prévia ciência do caráter inverídico das afirmações ao tempo em que manifestadas, mostrarem-se puramente subjetivas as supostas ofensas.
O confinamento da atividade intelectual do biógrafo à mera divulgação de panfletos autorizados pelo biografado equivale a verdadeira destruição desse gênero literário, com potenciais reflexos desastrosos para o desenvolvimento das ciências, em especial para o estudo da história, das ciências sociais, da antropologia e da filosofia. Enquanto no restante do mundo democrático continuarão a ser escritas biografias, no Brasil só haverá hagiografias.
Basta uma breve incursão ao setor de biografias de qualquer livraria para verificar que a oferta de títulos dessa natureza sobre personalidades estrangeiras – sejam estadistas, políticos, escritores, esportistas ou músicos – em muito supera a disponibilidade de obras biográficas sobre personalidades importantes para a compreensão da história do Brasil, da sua política, suas artes ou suas letras.
Gostamos de apontar causas exógenas para justificar o nosso relativo estado de atraso cultural, social e econômico em relação a outras nações, mas não vemos que as próprias instituições que adotamos para regular a sociedade frequentemente são as responsáveis por moldar um ambiente social e político inóspito ao florescimento e desenvolvimento do conhecimento, das ciências e das artes.
É sintomático que, no Brasil, biógrafos e historiadores renomados pela seriedade de seus trabalhos não raro venham a público afirmar que pensam em desistir de escrever biografias no Brasil, diante dos perigos que a empreitada oferece, como o constante receio de ser alvo de ações judiciais de biografados ou seus familiares.
Não bastassem as já evidentes incompatibilidades com as liberdades de manifestação do pensamento e de expressão artística, intelectual e científica, ao desestimular a produção e publicação de biografias, o presente estado de coisas falha também em assegurar, quanto a essa espécie de manifestação cultural, o pleno exercício dos direitos culturais (art. 215, caput, da CF) e em promover e incentivar a educação com base na liberdade de aprender, ensinar e divulgar o pensamento, a arte e o saber (arts. 205 e 206, II, da CF). Igualmente, conduz a sociedade brasileira por caminho diametralmente oposto ao da promoção e difusão de bens culturais, dever do poder público, a teor do art. 215, § 3º, II, da CF.
Além de inconstitucional, a exegese dos arts. 20 e 21 do Código Civil segundo a qual é vedada a publicação sem autorização do biografado ou de seus familiares, é exemplo do tipo de regra que direta ou indiretamente contribui para, no longo prazo, manter o país culturalmente pobre, a sociedade moralmente imatura e a nação economicamente subdesenvolvida.
7. Ante o exposto, julgo procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos arts. 20 e 21 da Lei Federal nº 10.406/2002 (Código Civin( �/span>, a fim de, compatibilizando a sua exegese com os arts. 5º, IV, IX, XIV, 205, 206, II, 215, caput e § 3º, II, e 220 da Constituição da República, reputar inexigível o consentimento da pessoa biografada e, a fortiori, das pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares no caso de pessoas falecidas), para a publicação ou veiculação de obras de cunho biográfico, sejam elas obras literárias, audiovisuais ou fixadas qualquer outro suporte tecnológico.
É como voto.
10/06/2015 PLENÁRIO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL
ANTECIPAÇÃO AO VOTO
O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX - Senhor Presidente, egrégia Corte, ilustre representante do Ministério Público, senhores advogados presentes, estudantes.
Senhor Presidente, em primeiro lugar, tive a oportunidade de manusear as 119 páginas do voto da Ministra Cármen Lúcia. E, mercê da profundidade do voto de Sua Excelência, gostaria também de parabenizá- la pela sua capacidade de síntese, que inclusive me servirá de exemplo, na medida em que, na pauta de hoje, havia um processo em que foi suscitada a inconstitucionalidade de todos os artigos da lei, artigos totalmente independentes, fui obrigado a lavrar um voto longo e, agora, sinto-me muito estimulado por Vossa Excelência para promover essa redução necessária, que poupa a Corte, inclusive, no seu mister de julgar um caso tão difícil. Parabenizo Vossa Excelência pela profundidade de seu voto, com um índice sistemático que representa uma verdadeira obra literária, sem censura.
Por outro lado, entendo que o legislador processual é sábio na medida em que estabelece que os acórdãos são lavrados no final do julgamento, porque nos permite ouvir as opiniões convergentes, algumas fundamentações diversas e chegarmos a uma conclusão. Evidentemente que, num hard case como este, todos nós temos voto escrito, poderíamos aqui fazer a leitura. Vamos juntar os votos, mas vamos seguir o exemplo de Sua Excelência, agora também acrescido de diversos fundamentos trazidos pelo Ministro e Professor Luís Roberto Barroso, que tem um pendor bastante expressivo nessa área. E é dele exatamente que gostaria de me prevalecer sob dois ângulos técnicos.
No meu modo de ver - até porque o caráter desses dispositivos da lei material é múltiplo, fala em imagem, honra, enfim, nome, vida, integridade física -, nós temos que adotar uma posição minimalista em relação ao tema in judicando. Nós estamos, aqui, discutindo biografia vs. censura. Eu efetivamente entendo que possa haver intercessão desses valores, mas o que estamos discutindo, objetivamente, é que, para se lavrar uma biografia, é necessária a licença prévia do biografado, ou não, conforme dispõe o Código Civil. E, quando deparei com essa tese central, me veio imediatamente à mente algo que me encantou desde a minha juventude na faculdade, na obra "A Democracia na América", na expressão de Alexis de Tocqueville, quando afirma: Num País onde reina ostensivamente a soberania do povo, a censura não é apenas um perigo, mas é ainda um grande absurdo.
Então, esse tema envolve, no meu modo de ver, duas situações absolutamente paradoxais. Quer dizer, a liberdade de informação, que é a liberdade de expressão, a liberdade de pensamento - aqui, estamos no campo da liberdade de informação, o biógrafo vai informar sobre a vida do biografado -, e, em contraposição, estamos diante dessa licença prévia, que representa uma verdadeira censura obstativa do exercício da liberdade de informação.
Um segundo aspecto que essa metodologia de julgamento nos facilita concluir é que foi dito da tribuna, com muita propriedade, que o que se discute aqui é exatamente isso. Não se discute a possibilidade de o Supremo chancelar um bill de identidade para que se possa encartar, em qualquer biografia, tudo quanto se pretenda, inclusive sob o ângulo da degradação, difamação e etc. Então, o que se defende não é só a antijuridicidade da censura, mas também os limites éticos das informações, que devem ser baseados em fatos verdadeiros, fontes legítimas, ressalvando-se sempre a repressão em relação aos desvios. Isso é importante, porque é didático saber o que estamos decidindo aqui, saber se é necessária essa licença, e efetivamente o consectário, porque, quando há algum desvio ou abuso do direito, a própria lei se incumbe de reprimir.
Eu observo - eu sempre costumo assentar isso e vou ser bastante rápido - que o homem, quando ele caminha, o que vai à frente é o seu passado, ele constrói a sua biografia com o seu passado. Enquanto esse homem adquire essa notoriedade, isso passa a fazer parte da historiografia social, que está imanentemente ligada à ideia da necessidade de informação desse contexto social em que se encarta essa pessoa biografada.
E a grande verdade é que o biografado, quando ganha publicidade, no meu modo de ver, ele efetivamente aceita essa notoriedade, e essa notoriedade não é adquirida sponte sua. Essa notoriedade é adquirida pela comunhão de sentimentos públicos de que ele é destinatário. Então, na verdade, é admiração, é enaltecimento do seu trabalho, é por força do público que ele adquire essa notoriedade, aqui, como muito bem destacou o Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil.
Essa pessoa é notória pela vontade pública, e a vontade pública tem o direito de saber quem é essa pessoa que ela levou ao enaltecimento e à notoriedade. Isso é o direito imanente do ser humano. Ainda que não constasse da Constituição Federal, é um direito natural saber se nós estamos admirando a pessoa certa - até porque, num relacionamento humano, o elemento mais significativo é o elemento da admiração. Nós, que fomos juízes, sabemos que, quantas vezes, um vínculo conjugal se desfaz pela destruição daquele sentimento de admiração.
E o professor Tepedino, que ofereceu também aqui um parecer, ele destaca muito bem essa questão, ao ressaltar que essa notoriedade, por si só, era considerada um fato histórico e só com isso já revela o interesse público em favor da liberdade de informar e de ser informado, essencial não somente como garantia individual, mas como preservação da memória e da identidade cultural da sociedade.
Então, aqui, haveria muito que se destacar acerca dessa notoriedade que a pessoa alcança e do direito fundamental da informação, mas que se torna absolutamente despiciendo diante da profundidade do voto da Ministra Cármen Lúcia, com os fundamentos constitucionais trazidos pelo Ministro Luís Roberto Barroso.
E aqui, Ministro Luís Roberto, eu faço, assim, uma operação de ousadia, no plano constitucional, para assentar que a Constituição Federal, quando estabelece aquelas garantias fundamentais que são inerentes ao centro de gravidade da Constituição, que é a dignidade da pessoa humana, e, no campo do Direito Civil, os direitos da personalidade, ela se refere às pessoas em geral, ela está se referindo à pessoa natural: é inviolável, tem privacidade, tem reserva, tem honra e boa fama. Mas, ali, é um princípio geral. Mas, além do princípio geral - Vossa Excelência tocou nesse ponto também -, além do princípio geral, nós temos um princípio setorial, que é o princípio inerente àquilo que se está discutindo agora, que é o princípio referente à comunicação social.
E o que diz a Constituição? Eu vou pular a manifestação do pensamento de criação, porque acho que não é disso que estamos tratando. O que diz a Constituição? A manifestação da informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerá qualquer restrição - §1º que diz respeito ao caput do artigo. Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação a qualquer veículo de comunicação, observado o disposto no art. 5º. Isso é um princípio setorial. E agora vem a regra de encerramento: apesar de todo o respeito a esses valores que estão consagrados nos princípios gerais, eu, constituinte originário, encerro esse preceito com a seguinte afirmação: é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
No meu modo de ver, esse dispositivo, consagrado no campo setorial da comunicação social, seria o suficiente para demonstrar o antagonismo do Código Civil, ao exigir licenças prévias para biografia, com o que está na Constituição Federal. Nós sabemos que o fundamento do Código Civil não é senão a nossa Constituição da República. E ela estabelece notadamente isso no campo referente às pessoas que adquirem notoriedade, porque, evidentemente, são poucas as pessoas biografadas, são poucas as pessoas que despertam o interesse na coletividade por sua biografia.
O Ministro Luís Roberto fez uma pesquisa interessante, minuciosa e, muito embora uma lesão ao direito já seja intolerável, nós verificamos que as pessoas cujas biografias foram censuradas são pessoas de expressão nacional em todos os campos da atividade humana.
Então, na medida em que cresce a notoriedade da pessoa, diminui-se a sua reserva de privacidade. Nós, juízes, temos que ter notório saber e reputação ilibada na vida pública e privada. E assim também aquele que se expõe a se tornar uma pessoa pública à mercê de não exercer um cargo público.
O que uma pessoa que participa de um reality show pode alegar em termos de privacidade se ela permite, inclusive, ser filmada dormindo, praticando atos absolutamente involuntários?
E até para me filiar a esse toque mais sensível e característico de nós dois, não só como colegas da agremiação acadêmica, mas também como colegas do Rio de Janeiro, o carioca tem essa característica irreverente, também, e Vossa Excelência citou aqui vários casos interessantes. Mas temos que concordar que, em matéria de liberdade de expressão gestual, evoluímos bastante. Vossa Excelência citou casos recentes, mas hoje estamos num patamar bastante elevado. Aliás, se não me falha a memória, o Supremo Tribunal Federal concedeu habeas corpus a um diretor de teatro que se manifestou, através de um gesto, contra a crítica do auditório. Então, evoluímos bem graças, exatamente, à interpretação conforme à Constituição.
Exatamente nesse sentido em que se faz necessária a proteção com densidade desse princípio, que também pode ser considerada uma regra setorial, específica à Comunicação Social, é que se tem que ter em mira que não há ponderação possível entre uma regra do Código Civil e a regra constitucional. Evidentemente que o legislador ponderou mal, como disse o Ministro Luís Roberto Barroso, porque é mister que haja uma proteção intensa a essa liberdade de informação na medida em que a Constituição Federal dispõe que é vedada toda e qualquer censura a essa manifestação de informação como sói ocorrer com as biografias.
E aqui eu colho, por fim, do Professor Claus-Wilhem Canaris: quanto maior o nível do direito fundamental afetado, quanto mais severa a intervenção que se ameaça, quanto mais intenso o perigo, quanto menores as possibilidades do seu titular para uma eficiente autoproteção, e quanto menor o peso dos direitos fundamentais e interesses contrapostos, tanto mais será de reconhecer um dever jurídico-constitucional de proteção.
Foi exatamente esse texto que encerrou esse brilhantíssimo voto da Ministra Cármen Lúcia, que me faz trazer a inspiração de um psicanalista ao indagar de um cliente seu qual seria a sua opção de vida. Eu, então, entendo, à semelhança de Sua Excelência, a Relatora, que liberdade e censura são tão inconciliáveis como a ira e o amor.
E o Supremo Tribunal Federal é um guardião da Constituição Federal e é guardião dessa liberdade plena a que se refere o artigo 220 da Constituição Federal.
De sorte, Senhor Presidente, que estou integralmente acompanhando o voto da Ministra Cármen Lúcia no sentido de julgar procedente a presente ação direta de inconstitucionalidade para dar interpretação conforme à Constituição aos artigos 20 e 21, nos termos do voto de Sua Excelência.
10/06/2015 PLENÁRIO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL
VOTO
O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX: Senhor Presidente, egrégia Corte, ilustre representante do Ministério Público, senhores advogados presentes, estudantes.
Em primeiro lugar, parabenizo a Ministra Cármen Lúcia pela profundidade e concisão de seu voto, com um índice sistemático que representa uma verdadeira obra literária, sem censura.
No meu modo de ver - até porque o caráter dos dispositivos impugnados é múltiplo, tratando de imagem, honra, nome, vida, integridade física -, temos que adotar aqui uma posição minimalista em relação ao tema in judicando. O que se discute aqui é apenas a questão da censura prévia nas biografias. Embora possa efetivamente haver intercessão desses valores, objetivamente deve o Supremo Tribunal Federal decidir se para se lavrar uma biografia é necessária a licença prévia do biografado, conforme dispõe o Código Civil, ou não.
Ao me deparar com essa tese central, veio-me imediatamente à mente algo que me encantou desde a minha juventude na faculdade, na obra A democracia na América, na expressão de ALEXIS DE TOCQUEVILLE, quando afirma: "num país onde reina ostensivamente o dogma da soberania do povo, a censura não é apenas um perigo, mas ainda, um grande absurdo" (Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 4ª Edição, 1998, tradução de Neil Ribeiro da Silva, p. 141).
Então, esse tema envolve, na minha visão, duas situações absolutamente paradoxais: a liberdade de informação, que é a liberdade de expressão, a liberdade de pensamento e a liberdade de informar - o biógrafo vai informar sobre a vida do biografado - e, em contraposição, estamos diante dessa licença prévia, que representa uma verdadeira censura obstativa do exercício da liberdade de informação. De fato, a censura pode decorrer não apenas da intervenção estatal nas liberdades individuais, mas também de atos praticados nas relações entre particulares, como lecionam J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa anotada, Volume 1. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 574-575):
"(...) quanto aos seus destinatários, a proibição da censura não vale apenas perante o Estado, mas sim perante toda e qualquer entidade ou poder que esteja em condições de impedir a expressão ou a divulgação de ideias ou de informações (...). Isto é relevante, sobretudo, para os 'poderes sociais' (igrejas, partidos, organizações profissionais, empresas, etc.) mas é de alcance geral. Pertence ao Estado prosseguir o dever de protecção deste direito contra privados, sendo admissível a eventual responsabilidade dos órgãos públicos pelo não cumprimento desse dever (...)"
Sendo assim, parece-me que a censura prévia, seja ela executada por órgãos públicos ou por particulares, aniquila completamente o núcleo essencial dos direitos fundamentais de liberdade de expressão e de informação, bem como, por via de consequência, fragiliza todos os demais direitos e garantias que a Constituição protege. Nas palavras de THOMAS JEFFERSON, "a liberdade de falar e escrever guarda nossas outras liberdades" (Jefferson on freedom. New York: Skyhorse Publishing, 2011, p. 104).
Não se discute, por outro lado, a possibilidade de o Supremo chancelar um bill de indenidade para que se possa encartar, em qualquer biografia, tudo quanto se pretenda, inclusive sob o ângulo da degradação e da difamação. O que se defende não é só a antijuridicidade da censura, mas também os limites éticos das informações, que devem ser baseadas em fatos verdadeiros e fontes legítimas, ressalvando-se sempre a repressão em relação aos desvios. Isso porque, embora a liberdade deva ser a regra nas relações entre indivíduos iguais perante o ordenamento jurídico, a dignidade da pessoa humana deve servir de limite e garantia mínima contra excessos eventualmente praticados (ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 3ª Edição, 2006, p. 273-274). É importante saber, portanto, o que o Supremo Tribunal Federal está decidindo aqui, saber se é necessária essa licença e efetivamente o consectário, porque, quando há algum desvio ou abuso do direito, a própria Constituição se incumbe de reprimir, mediante a reparação de danos - morais, materiais e à imagem - e a concessão do direito de resposta (artigo 5º, incisos V e X).
Observo que o homem, quando caminha, o que vai à frente é o seu passado; ele constrói a sua biografia com o seu passado. Enquanto esse homem adquire notoriedade, isso passa a fazer parte da historiografia social, que está imanentemente ligada à ideia da necessidade de informação do contexto social em que se encarta a pessoa biografada.
A verdade é que o biografado, quando ganha publicidade, efetivamente aceita essa notoriedade, que não é adquirida sponte sua. Essa notoriedade é adquirida pela comunhão de sentimentos públicos de que ele é destinatário - admiração e enaltecimento do seu trabalho. Não há que se falar, por conseguinte, em renúncia aos direitos fundamentais de privacidade e intimidade pela pessoa biografada – o que seria inconstitucional – ocorrendo, na verdade, limitação voluntária ao seu exercício pelo próprio titular, ao aceitar a notoriedade - o que é possível, desde que respeitados o núcleo essencial dos aludidos direitos fundamentais e a cláusula geral de dignidade da pessoa humana (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 7ª Edição, 2003, p. 464-465).
Uma pessoa se torna notória, portanto, pela vontade pública e esse público tem o direito de saber quem é essa pessoa que ele levou ao enaltecimento e à notoriedade. Tal direito é imanente ao ser humano e, ainda que não constasse da Constituição Federal, haveria um direito natural de se saber se a admiração é merecida pela pessoa admirada, até porque, nos relacionamentos humanos, o elemento mais significativo é o da admiração. No cotidiano forense, por exemplo, muitas vezes se verifica que um vínculo conjugal se desfaz pela destruição desse sentimento de admiração.
O professor GUSTAVO TEPEDINO, que ofereceu um parecer sobre o tema em questão, juntado aos autos pela autora, destaca muito bem esse ponto, ao ressaltar que a notoriedade, por si só, é considerada um fato histórico e só com isso já revela o interesse público em favor da liberdade de informar e de ser informado, essencial não somente como garantia individual, mas como preservação da memória e da identidade cultural da sociedade. Em última análise, a liberdade de informação se apresenta como elemento fundamental para a construção da Democracia, conforme a arguta observação de KONRAD HESSE (Elementos de direito constitucional na República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, tradução de Luís Afonso Heck, p. 304-305):
"O equivalente necessário para a liberdade de manifestação da opinião é a liberdade de informação, como base de formação da opinião democrática. (...) Porque a liberdade de informação é pressuposto da publicidade democrática; somente o cidadão informado está em condições de formar um juízo próprio e de cooperar, na forma intentada pela Lei Fundamental, no processo democrático."
De fato, a liberdade de expressão permite que ideias minoritárias no bojo de uma sociedade possam ser manifestadas e debatidas publicamente, enquanto o discurso mainstream, amplamente aceito pela opinião pública, não precisa de tal proteção (DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1978, p. 201). Cabe ao Judiciário, consectariamente, cumprir a sua função contramajoritária, assegurando a divulgação até mesmo de ideias inconvenientes perante a visão da maioria da sociedade.
Pode-se assentar, ademais, que a Constituição Federal, quando estabelece aquelas garantias fundamentais que estão ligadas ao seu centro de gravidade, que é a dignidade da pessoa humana, e, no campo do Direito Civil, os direitos da personalidade, refere-se à pessoa natural, que é inviolável em sua privacidade e tem a reserva da sua honra e boa fama. Ali há um princípio geral. Mas, além desse princípio geral, existe um princípio setorial, que é inerente à comunicação social.
Princípios setoriais regulam atividades econômicas ou estatais específicas, disciplinando-as através de regime jurídico próprio, adequado às suas singularidades, como ocorre, por exemplo, no Direito Administrativo, cujos princípios reitores são delineados pelo artigo 37, caput, da Constituição (BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 373-374).
E o que diz a Constituição sobre o setor da comunicação social? Segundo o seu artigo 220, caput, a propagação da informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerá nenhuma restrição. E prossegue o parágrafo primeiro do mesmo artigo estabelecendo que nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação em qualquer veículo de comunicação, observado o quanto previsto pelo artigo 5º, incisos IV, V, X, XIII e XIV. Eis aqui um princípio setorial. Finalmente, como regra de encerramento, apesar de todo o respeito aos valores que são consagrados pelos princípios gerais, o constituinte originário arremata o preceito com a seguinte afirmação constante do parágrafo segundo: é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
Entendo que esse dispositivo, insculpido no campo setorial da comunicação social, seria suficiente para demonstrar o antagonismo do Código Civil, ao exigir licença prévia para a biografia, com o que está expresso na Constituição Federal. Deveras, "a Constituição funciona como fundamento de validade das normas infraconstitucionais, no sentido de que estas valem enquanto se conformam com seus preceitos, princípios e valores, e não valem quando com estes contrastam" (SILVA, José Afonso da. Teoria do conhecimento constitucional. São Paulo: Malheiros, 2014, p. 883). O fundamento de validade do Código Civil não é outro senão a Constituição da República e ela estabelece, notadamente no campo referente às pessoas que adquirem notoriedade e despertam o interesse na coletividade pela sua biografia, a vedação à censura prévia do biografado.
ADI 4815 / DF
Note-se que, na medida em que cresce a notoriedade da pessoa, diminui a sua reserva de privacidade. Aos juízes, por exemplo, exige-se a reputação ilibada na vida pública e privada. E assim também àquele que se expõe ao se tornar uma pessoa pública, ou à mercê de exercer um cargo público. E o que uma pessoa que participa de um reality show pode alegar em termos de privacidade se ela permite, inclusive, ser filmada dormindo, praticando atos absolutamente involuntários?
Faz-se necessária, pelo exposto, a proteção com densidade desse princípio setorial, específico à comunicação social, tendo-se em mira que não há ponderação possível entre a norma do Código Civil e a norma constitucional. É mister que haja uma proteção intensa a essa liberdade de informação, na medida em que a Constituição Federal dispõe que é vedada toda e qualquer censura à difusão da informação, inclusive daquela contida nas biografias. Sob esse enfoque, colho do professor CLAUS-WILHELM CANARIS a seguinte lição (Direitos fundamentais e direito privado. Coimbra: Almedina, 2003, tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto, p. 114):
"(...) quanto maior o nível do direito fundamental afectado, quanto mais severa a intervenção que se ameaça, quanto mais intenso o perigo, quanto menores as possibilidades do seu titular para uma eficiente auto-protecção, quanto menor o peso dos direitos fundamentais e interesses contrapostos, tanto mais será de reconhecer um dever jurídico-constitucional de protecção."
E o Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição Federal e o guardião dessa liberdade plena a que se refere o artigo 220 da Constituição Federal, de sorte, Senhor Presidente, que estou integralmente acompanhando o voto da Ministra Cármen Lúcia, no sentido de julgar procedente a presente ação direta de inconstitucionalidade para dar interpretação conforme a Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil, nos termos do voto de Sua Excelência.
É como voto.
10/06/2015 PLENÁRIO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL
ANTECIPAÇÃO AO VOTO O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI:
Senhor Presidente, Senhores Ministros, inicio cumprimentando o belíssimo voto trazido pela Ministra Relatora, Ministra Cármen Lúcia, e também as sustentações orais, as manifestações feitas da tribuna.
A respeito da liberdade de expressão, questões e temas relativos à atuação do Estado a respeito da possibilidade de censura, eu trouxe voto na ADI nº 2.404, em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente, ação essa em que se impugna o art. 254 do Estatuto, que traz o tema da classificação indicativa por parte do Estado em relação aos horários de exibição de programas, no sentido de proteger a criança e o adolescente.
Esse processo ainda está em andamento; houve um pedido de vista do Ministro Joaquim Barbosa - que deixou a Corte sem trazer a vista -, vista esta que deve ser herdada pelo novo Colega, que assume na próxima terça-feira.
Naquela ação, então, eu votei pela procedência da ação para se declarar a inconstitucionalidade da expressão "em horário diverso do autorizado", contida no art. 254 do Estatuto, que é a Lei nº 8.069/90, ou seja, para que não haja uma proibição de transmissão nos horários, de modo que a classificação seja estritamente indicativa, e não proibitiva. Tema extremamente relevante, inclusive porque se trata de proteção de criança e adolescente, ou seja, de quem ainda não tem a plena capacidade intelectual e também não tem a capacidade civil para o discernimento.
Aqui, o art. 20 do Código Civil, na óptica colocada na ação apresentada pela requerente, aborda apenas uma face desse multifacetário dispositivo. Por exemplo, aqui se trata do direito à imagem, um patrimônio personalíssimo de cada pessoa.
Imaginem uma modelo. O Brasil teve a que se tornou a mais famosa no mundo, recentemente se despedindo, a Gisele Bündchen. Imaginem que se dá a plena liberdade para o uso da imagem dela. Ela não teria conseguido exercer sua profissão, pois bastaria a qualquer empresa que quisesse vender um produto com sua imagem colá-la ao produto e divulgá-lo. Isso seria liberdade de expressão? Isso estaria dentro de uma plena liberdade relativa à vida da pessoa, aos direitos?
Então, essa questão da liberdade de expressão tem que ser muito ponderada. E, como foi colocado na tribuna, aqui não se trata única e exclusivamente de liberdade de expressão. Aqui se trata de direito à imagem, à honra, à intimidade e à vida privada de cada ser humano. E, nesse sentido, é que o Código Civil vem proteger esse patrimônio personalíssimo de cada um de nós.
Eu farei juntada, Senhor Presidente, de algumas manifestações por escrito, mas eu não poderia deixar de ponderar aqui exatamente neste sentido de que esse dispositivo que estamos a julgar - e até porque esse é um tema que será muito divulgado após este julgamento - não está dando nenhum tipo de autorização plena ao uso da imagem das pessoas, ao uso da vida privada das pessoas de uma maneira absoluta, por quem quer que seja, havendo ainda possibilidade, sim, de intervenção judicial no que concerne aos abusos, às inverdades manifestas, aos prejuízos que ocorram a uma dada pessoa. Se alguém tem sua imagem associada, por exemplo, a uma marca comercial, como no caso de uma modelo, sem sua autorização, a Justiça vai retirar isso do comércio e vai proibir. E isso não é censura, nem afronta à liberdade de expressão. É importante se registrar isso, porque a dimensão do art. 20 do Código Civil vai muito, muito, muito além do que diz respeito àquelas realidades de pessoas públicas ou de personalidades que geram o desejo na sociedade de conhecê-las melhor e de saber sua história.
Aqui no caso concreto, Senhor Presidente, muito me recorda - e até comentei com alguns advogados quando recebi memoriais - uma peça teatral a que eu fui assistir que conta a história da vida e da morte de Elis Regina. Quem teve a oportunidade de assistir aquela emocionante e tocante peça de teatro fica a imaginar quão difícil não deve ter sido para obter as inúmeras autorizações de tantos descendentes de personalidades que são ali retratadas. Talvez tenha sido mais difícil obter todas essas autorizações do que achar a artista que tão bem interpretou o papel de Elis e cantou, maravilhosamente, interpretando a protagonista da história.
Pois bem, ali eu me convenci, Senhor Presidente, de que realmente obter essas autorizações impediria que a sociedade tivesse conhecimento, primeiro, de uma obra artística intelectual de envergadura; segundo, da realidade dessas personalidades em seu dia a dia e da construção das suas personalidades - como suas personalidades se construíram, se formaram e se estabeleceram.
Por outro lado, o fato de se estar aqui a dar uma interpretação conforme sem redução do texto - porque o texto continuará valido, eficaz para todas as incidências relativas ao patrimônio jurídico personalíssimo do ser humano, do cidadão, e continuará sendo tutelado pelo Poder Judiciário nas suas infrações, nas suas ilicitudes - nada impede que, para evitar um questionamento jurídico posterior, por precaução, aquele que está fazendo uma obra literária, um obra teatral, uma obra intelectual a respeito de dada pessoa, obtenha essas autorizações como uma precaução para, no futuro, não ser questionado. Agora, previamente obrigar a pessoa a obter isso, pode até levar a uma obstrução do estudo da história, da análise da história, como foi o enfoque colocado pelo Dr. Thiago, falando em nome do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Nós temos aí idas e vindas da história a respeito de personagens, não só Tiradentes, como Zumbi, como outros, e podemos até ir à ideia das tradições criadas de Hobsbawm, quando ele fala da invenção das tradições, que, às vezes, são inclusive necessárias até para a ideia de uma nação, como foi a invenção da nação italiana, da nação alemã - Hobsbawm aborda esses temas.
Pois bem, essa necessidade de se obter essas múltiplas autorizações é que nós estamos aqui a afastar, também afastando a ideia de censura, que realmente, no Estado democrático de Direito, é inaceitável, mas deixando claro, como faz a Relatora e, é importante que se diga, o próprio pedido inicial, que os abusos, os excessos, as inverdades manifestas, a utilização para fins ilícitos - como abordou também, em seu voto, há pouco proferido, o Ministro Luís Roberto Barroso - serão sempre tutelados e poderão sempre ser tutelados pelo Poder Judiciário.
Feitas essas considerações e outros alinhamentos que farei juntar, Senhor Presidente, cumprimentando uma vez mais a Ministra Cármen Lúcia pelo voto trazido, eu acompanho a eminente Relatora.
10/06/2015 PLENÁRIO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL
VOTO
O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI:
Cuida-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pela Associação Nacional de Editores de Livros (ANEL) em face dos arts. 20 e 21 da Lei Federal nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). O autor argumenta, em síntese, que os referidos textos de lei têm dado ensejo à proibição da publicação e da veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais quando não precedidas de autorização dos biografados, de pessoas retratadas como coadjuvantes, ou dos respectivos familiares. Aduz que tal interpretação vulnera a liberdade de expressão e de manifestação do pensamento (art. 5º, IV e IX, da Constituição Federal) e o direito à informação (art. 5º, XIV).
Com base em tais argumentos, requer
"seja declarada a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil para que, mediante interpretação conforme a Constituição, seja afastada do ordenamento jurídico brasileiro a necessidade do consentimento da pessoa biografada e, a fortiori, das pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas) para a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais".
Eis o teor das normas impugnadas:
"Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.
Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma."
De início, é importante observar que os dispositivos em tela são multifacetados, pois tutelam o direito à imagem, à honra e à vida privada da pessoa natural de forma abrangente e sob diversas perspectivas. Nem poderia ser diferente, tendo em vista a fundamentalidade desses direitos, patrimônios personalíssimos de cada um de nós.
Com efeito, o art. 20 do Código Civil possibilita que o interessado proíba as condutas arroladas no dispositivo quando lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se destinarem a fins comerciais.
Nesse sentido, é passível de proibição pelo interessado a divulgação de escritos relativos à pessoa, visto que tais documentos podem conter mensagens ofensivas à honra ou à imagem – a denominada "imagem- atributo", ou seja, "o conjunto de caracteres ou qualidades cultivadas pela pessoa reconhecidos socialmente", segundo definição de Maria Helena Diniz (SILVA, Regina Beatriz Tavares da; FIUZA, Ricardo (Coord.). Código Civil comentado. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2012) – ou revelar dados da vida privada do interessado.
A norma também se refere à "transmissão da palavra", que pode ocorrer por diversos meios, tais como "alto falante, gravação ambiental, gravação de conversa mediante interceptação telefônica, rádio, televisão, cinema, internet, etc." (MONTEIRO FILHO, Raphael de Barros; TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. Das Pessoas Naturais. In: TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2010). Tem-se, ainda a tutela da chamada "imagem-voz", prevista no art. 5º, inciso XXVIII, a, da Constituição Federal.
O art. 20 do Código Civil possibilita, de igual modo, a proibição da publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa. Ao referir-se à "exposição" da imagem, a norma é bastante abrangente, podendo englobar, dentre outras condutas, a publicação (explicitamente referida na norma) da imagem por diversos meios, como os veículos de comunicação social (televisão, internet, revistas, jornais). Nesse ponto, o preceito refere-se mais precisamente à chamada "imagem-retrato", que é a representação física do indivíduo, determinada por seus traços fisionômicos.
Nessa esteira, uma pessoa que tenha como fonte de renda a própria imagem, a qual é explorada profissionalmente – uma modelo, por exemplo – está protegida pela Constituição e pelo Código Civil, de modo que aquele que, sem autorização, fizer uso dessa imagem, para fins econômicos ou comerciais, poderá ser condenado ao pagamento de indenização, independentemente de prova de prejuízo.
Vale citar, ainda, hipótese de matéria jornalística que, de forma absolutamente infundada, imputa a determinada pessoa fato indecoroso, expondo seu nome e sua imagem a escárnio público. Em tais circunstâncias, a pessoa ofendida poderá pleitear indenização, em decorrência de ofensa a sua imagem e a sua honra.
O art. 21, por seu turno, constitui cláusula geral de tutela da vida privada, a qual se apresenta, aqui, como direito autônomo, visto que a obtenção de tutela judicial nesse caso independe de ofensa a outro direito correlato, como a honra, por exemplo.
Note-se, portanto, que muitas podem ser as implicações jurídicas dos preceitos impugnados, em razão da abrangência com a qual buscam tutelar a vida privada, a imagem e a honra da pessoa natural. No entanto, a autora da ação impugna tão somente uma interpretação dos preceitos, no sentido da necessidade de autorização do biografado, de pessoas descritas como coadjuvantes da história ou dos respectivos familiares para a publicação de obras biográficas.
Assim como ocorre em relação a outras questões polêmicas envolvendo a aplicação dos arts. 20 e 21 do Código Civil, o presente caso suscita hipótese de colisão entre os direitos da personalidade aqui mencionados e outros direitos fundamentais igualmente relevantes, quais sejam, a liberdade de expressão, de manifestação de pensamento e de informação (art. 5º, incisos IV, V, IX e XIV, da Constituição Federal).
Se, de um lado, a biografia constitui um relato sobre a trajetória de uma pessoa, acabando por, inevitavelmente, adentrar aspectos da vida privada desta; de outro, constitui gênero literário de importante valor histórico e cultural, sendo, a um só tempo, fonte de informação e forma de expressão artística, literária e histórica.
Ocorre que a interpretação a partir da qual se conclui pela necessidade, de forma geral e abstrata, de autorização do biografado para a publicação de biografias atribui absoluta precedência aos direitos à vida privada, à imagem e à honra, em detrimento da liberdade de expressão, de manifestação de pensamento e do direito à informação, razão pela qual concluo pela sua incompatibilidade com a Constituição de 1988.
Outrossim, devemos considerar os efeitos deletérios que restrição de tal abrangência poderia causar à produção biográfica no Brasil, e, consequentemente, à formação da nossa memória social.
Segundo Lindjane dos Santos Pereira (A biografia no âmbito do jornalismo literário. Análise comparativa das biografias Olga, de Fernando Morais e Anayde Beiriz, paixão e morte na Revolução de 30, de José Joffily. Universidade Federal da Paraíba. João Pessoa, 2007), a biografia integra o grupo das chamadas "narrativas de memória" – ao lado das autobiografias, confissões e das memórias propriamente ditas – ou seja, "narrativas que são construídas através da memória e que se tornam "locais" de memória". Sendo assim, tais obras sempre envolvem um resgate do passado, o qual deve ocorrer da forma mais fidedigna possível.
Com efeito, a reconstituição do passado realizada na biografia traz consigo não só o resgate de histórias individuais, mas também, e necessariamente, de elementos do contexto histórico, social e cultural em que inserido o biografado. Em muitos casos, fatos da vida do biografado estão tão imbricados a fatos determinantes para a história do país que o trabalho biográfico realizado pelo autor/pesquisador revela-se uma grande contribuição para a escrita da história. Outrossim, relatos sobre vidas privadas têm o condão de revelar hábitos e comportamentos próprios de determinado tempo e lugar, de modo que as biografias funcionam como registros das práticas sociais através do tempo e do espaço.
Por tais razões, é inegável o valor histórico e cultural dessas obras, que exercem papel fundamental na construção da memória de dada sociedade. Assim, a narrativa biográfica, que busca escrever a história de uma vida, acaba por se confundir com a própria escrita da História.
Ao longo dos tempos, o perfil das biografias mudou drasticamente. Como descreve Mary Del Priore, em artigo intitulado Biografia: quando o indivíduo encontra a história, "[n]o início era o verbo e o verbo, a narrativa. E a narrativa era história em Heródoto, mas, também, retórica, em Tucídides. Em um quanto em outro, a preocupação com o efeito literário era maior do que com a exatidão das informações" (Topoi, v. 10, n. 19, jul.-dez. 2009, p. 7).
O termo biographia, segundo Peter Burke, surgiu na Grécia antiga, a partir do vocábulo bioi, que significava "escrever vidas". Na sua biografia de Alexandre da Macedônia, o Grande, Plutarco fez a importante distinção entre escrever história narrativa e escrever "vidas": "[n]as 'vidas havia espaço para abordar tanto a esfera privada quanto a pública, para descrever a personalidade individual através de pequenas pistas, 'algo pequeno como uma frase ou um chiste'" (BURKE, Peter. A invenção da biografia e o individualismo renascentista. Estudos Históricos. Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, n. 19, 1997, p. 91).
Essa afirmação de Plutarco teve ampla receptividade no Renascimento, em especial em Florença, a partir do século XV, uma vez que, como afirmado por Plutarco, certos gestos aparentemente banais eram verdadeiras vistas sobre a personalidade do biografado. Como descreve o historiador inglês, "[n]ão é difícil explicar por que essas ideias foram tão atraentes para os autores teatrais renascentistas. Jodelle fez uso de Plutarco para o Marco Antônio de sua peça Cleopatre (1559), tal como Shakespeare no seu Antônio e Cleópatra" (BURKE, Peter. p. 92).
Enfim, a obra de Plutarco acabou por estimular e legitimar o interesse pela vida privada, seja de personagens históricos, seja de cientistas, artistas, religiosos, entre outros.
Peter Burke, ao analisar as biografias renascentistas, cita inúmeras biografias em todas as épocas e países. Entre as biografias medievais aponta como as mais citadas
"as de Luís VI por Suger, de Luís IX por Joinville e de Luís XI por Commynes, as vidas de Guilherme Marechal e de Bayard, anônimas, e, mais ao norte, as vidas dos reis nórdicos, escritas na Islândia do século XIII por Snorri Sturluson. Podemos acrescentar as vidas do Rei Alfredo por Asser e de Santo Anselmo por Eadmer, e as de São Tomás de Aquino e São Francisco escritas no século XIII" (op. cit. p. 83).
Sobressai ainda em seus estudos a importância das biografias italianas dos séculos XV e XVI. Conforme descreve:
"[a] parte italiana da história é a mais bem conhecida. Tal como em outros campos do Renascimento, o ponto de partida evidente é Petrarca, neste caso com sua coleção de vidas de romanos famosos e outros, De viris illustribus. Depois veio Boccaccio, com sua coleção de vidas de mulheres famosas, De claris mulieribus, e as vidas individuais de Dante e Petrarca. No século XV, as coleções de vidas incluíram De viris illustribus de Fazio, Vitae Pontificum de Platina, as memórias de Vespasiano sobre os homens famosos que conheceu, e o livro de Foresti sobre mulheres famosas (1497), incluindo as humanistas Isotta Nogarola e Cassandra Fedele. Houve ainda biografias individuais: o humanista Leonardo Bruni escreveu biografias de Aristóteles, Cícero, Dante e Petrarca, enquanto Guarino escreveu sobre Platão e Giannozzo Manetti sobre Sócrates e Sêneca. Entre os contemporâneos cujas vidas foram narradas individualmente figuram Nicolau V, Alfonso de Aragão, Filippo Maria Visconti, Cosimo de Medici, o arquiteto Brunelleschi, o humanista Pomponio Leto e o condottiere Braccio da Montone.
Na Itália do século XVI, a biografia se tomou um componente ainda mais importante da paisagem cultural. Hoje em dia, muitas pessoas se lembram principalmente das vidas de artistas escritas por Vasari, mas os contemporâneos provavelmente preferiam as biografias de soldados e sultães escritas por Giovio, seguidas das mulheres retratadas por Betussi, que atualizaram Boccaccio ao incluir (entre outras) Isabella d'Este e Margarida de Navarra. As biografias individuais escritas nesse período incluem as de Corsi sobre Fieino (1505), de Maquiavel sobre Castruccio Castracani (1520), de Sansovino sobre Boccaccio (1546), de Giovio sobre Leão X (1548), de Condivi sobre Miguel Ângelo (1553) e de Pigna sobre Ariosto (1554). A essa altura, no entanto, o gênero biográfico estava crescendo rapidamente também fora da Itália (op. cit. p. 86).
As biografia desempenharam, ainda, relevante papel na construção da ideia de nação, através da imortalização de personagens, símbolos, tradições populares etc. Como aborda Eric Hobsbawn, a respeito do conceito de "tradições inventadas", as indas e vindas da história e da vida de grandes personagens e mitos da história foram imprescindíveis para a "construção" de várias nações. O historiador cita as nações francesa, italiana, alemã e norte-americana. A respeito dos Estados Unidos, assevera o autor que os americanos tiveram de ser construídos, pois, após o término da secessão, era preciso assimilar uma massa heterogênea de pessoas que eram americanas não por nascimento, mas por imigração (HOBSBAWN, Eric e RANGER, Terence (Org.). A invenção das tradições. Tradução de Celina Cardim Cavalcante. Paz e Terra 1984. p. 287).
Como afirma Hobsbawn, "a invenção de tradições é essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado" (op. cit. p. 12). Dessa forma, complexos simbólicos e rituais que inculcam certos valores e normas de comportamentos são criados ou mesmo surgem na sociedade, estabelecendo-se uma continuidade com um passado histórico apropriado. A retratação e o estudo dessas tradições tem o efeito de esclarecer "as relações humanas com o passado", de forma que "toda tradição inventada, na medida do possível, utiliza a história como legitimadora das ações e como cimento da coesão grupal. Muitas vezes, ela se torna o próprio símbolo do conflito" (op. cit. p. 20-21).
Nesse contexto, os escritos biográficos fazem emergir "tradições inventadas", frutos de elementos do passado para fins presentes e futuros, com ressignificações culturais e históricas relevantes. Para tanto, é imprescindível entender os sujeitos históricos, tendo as biografias papel fundamental nessa missão.
Exatamente por isso as biografias vêm ganhando cada vez mais destaque e relevância. Segundo Jacques Le Goff, membro da Escola dos Annales e um dos maiores responsáveis pela renovação mais recente do gênero biográfico, "a biografia é um modo particular de fazer história". Em sua obra biográfica São Luís, o rei santo da França, o autor desfaz a pretensa oposição entre indivíduo e sociedade. Nas suas palavras: "O indivíduo não existe a não ser numa rede de relações sociais diversificadas, e essa diversidade lhe permite também desenvolver seu jogo. O conhecimento da sociedade é necessário para ver nela se constituir e nela viver uma personagem individual" (São Luís. Biografia. Tradução de Marcos de Castro. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1999. p. 26).
Nesse mesmo sentido, em 2004, em conferência realizada na Alemanha, a qual reuniu historiadores, escritores e jornalistas de vários países, concluiu-se ser "preciso trazer as pessoas de volta para a História, e a biografia é o gênero literário certo para investigar as questões".
Enfim, como conclui Marcel Schwob, em sua célebre obra Vidas imaginárias, na qual retrata a vida e os feitos fabulosos de personagens reais:
"A ciência histórica nos deixa na incerteza sobre os indivíduos. Ela só nos revela os pontos pelos quais eles se ligaram às ações gerais. Ela nos diz que Napoleão sofria no dia de Waterloo, que é preciso atribuir a excessiva atividade intelectual de Newton à continência absoluta de seu temperamento, que Alexandre estava bêbado quando matou Clitos e que a fístula de Luís XIV pode ser a causa de algumas de suas resoluções. Pascal especula sobre o nariz de Cleópatra, ao supor que pudesse ter sido mais curto, ou sobre um grão de areia na uretra de Cromwell. Todos esses fatos individuais só têm valor porque modificaram os acontecimentos ou porque poderiam ter desviado a série. São causas reais ou possíveis. É preciso deixá-las aos sábios.
(...)
O livro que descrevesse um homem em todas suas anomalias seria uma obra de arte, como uma estampa japonesa em que se vê eternamente a imagem de uma pequena lagarta percebida uma única vez a uma hora particular do dia." (Tradução de Duda Machado. São Paulo, Ed. 34, 1997. p 11-13).
É importante ressaltar ainda que não há, de igual modo, que se menosprezar a importância das biografias realizadas por romancistas ou jornalistas, enfatizando-se somente as biografias escritas por historiadores. A biografia é um gênero literário que traz à tona coisas do passado de uma trajetória individual, independentemente de quem a escreve. Deve-se reconhecer o valor das biografias para a construção da nossa memória social, política e cultural, sendo certo que não podemos prescindir desse tipo de obra. Esse ponto foi destacado pela escritora Ana Maria Machado, ao falar em nome da Academia Brasileira de Letras (ABL), na audiência pública ocorrida no dia 21 de novembro de 2013 nesta Suprema Corte. Confira-se:
"As biografias constituem gênero literário e fonte histórica. Não podemos prescindir delas. A continuidade da civilização se fez lentamente pelo acúmulo de obras históricas e literárias. A literatura permite conhecer a sociedade através dos tempos.
Conhecer a vida dos nossos antepassados é uma ferramenta fundamental para a construção do nosso futuro e a formação da nossa identidade cultural."
Ocorre que a exigência de autorização do biografado ou de seus familiares para a publicação dessas obras tende a desestimular esse tipo de produção literária. É o que observa Rebeca Garcia, que identificou a formação, no Brasil, de uma "cultura da autorização". Segundo a autora, essa realidade acaba por gerar um "efeito paralisante" das produções biográficas. A autora leciona:
"Pode-se dizer que ainda predomina, no cenário atual, o que se identificou como 'cultura da autorização'; na falta desta, prefere-se não arriscar a publicar qualquer coisa. Não raro, contudo, a negativa é exercida sem qualquer justificativa razoável – por vezes, pode-se dizer, mesmo de forma abusiva –, sobretudo por parte dos herdeiros, quando se trata da biografia de pessoa já falecida ou ausente. A postura acaba por desencorajar a pesquisa e a divulgação de obras biográficas, sedimentando o referido 'efeito paralisante'" (GARCIA, Rebeca. Biografias não autorizadas: liberdade de expressão e privacidade na história da vida privada. Revista de direito privado, v. 13, n. 52, p. 37-70, out./dez. 2012).
As dificuldades enfrentadas por escritores/biógrafos são ainda potencializadas em razão do caráter relacional da vida privada, noção abordada por Rebeca Garcia. Com efeito, a vida em sociedade implica uma vida de relações, de modo que as produções biográficas sempre acabam por envolver uma abordagem também da vida privada dos personagens retratados como coadjuvantes da trajetória do biografado. Muitas vezes são esses coadjuvantes ou seus descendentes que tentam impedir a publicação da obra.
Ademais, a possibilidade de controle prévio de tais conteúdos também interfere na fidedignidade do relato contido na obra. Nesse sentido foi a explanação de Sônia da Cruz Machado de Moraes Jardim, que falou em nome do Sindicato Nacional de Editores de Livros (SNEL) na audiência pública ocorrida neste Tribunal:
"Os efeitos deletérios produzidos por tal mecanismo censório sobre o livre mercado de ideias e informações são gravíssimos. Primeiro: um efeito silenciador sobre escritores, historiadores, pesquisadores, jornalistas, editores e produtores audiovisuais, que se veem proibidos de divulgar suas obras em razão do veto exercido por biografados, personagens secundários ou seus respectivos familiares. Segundo: um efeito distorcivo sobre fatos, documentos, depoimentos e informações, que acabam vetadas ainda quando existe o consentimento com a publicação. Terceiro: a criação de um verdadeiro balcão de negócios em torno de licenças, que alcançam cifras muito elevadas, e acabam, muitas vezes, por inviabilizar a publicação ou a veiculação da obra" (grifou-se).
Veja-se, pois, que a exigência, de forma geral e abstrata, de autorização do biografado para a publicação de obra biográfica traria uma série de consequências negativas para a produção biográfica no Brasil, interferindo não só na quantidade de obras dessa natureza circulando no mercado, as quais possuem inegável valor histórico e cultural, como na fidedignidade desses relatos.
Ora, o pleno desenvolvimento da democracia pressupõe a liberdade de manifestação de pensamento e de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, como forma de viabilizar a manutenção de uma sociedade plural, na qual diferentes ideais e opiniões, muitas delas absolutamente antagônicas, possam tomar parte no debate público, atuando na formação de dissensos, os quais são da essência do regime democrático. É o que observa Guilherme Gouvêa Pícolo, ao se referir a um estado democrático de direito ideal:
"A política, num Estado Democrático de Direito ideal, é uma construção possível apenas pela articulação inter-humana, pavimentada por meio de um processo sucessivo de proposições e debates, que levam ao confronto de valores, e mais adiante, à justaposição ou harmonização dos interesses a serem impressos por instrumentos legítimos de poder. A crítica e a oposição, livremente externadas, são pré-requisitos do pluralismo político, baluarte do jogo democrático e fundamento do raciocínio dialético" (PÍCOLO, Guilherme Gouvêa. Direito de Livre Expressão vs Direito à honra, vida privada e intimidade. Ciência Jurídica ad Literas et Verba. Ano XXVII, vol. 179, set./out. 2014).
Nesse cenário, também assume relevância o direito à informação, pois é a partir dela que o cidadão reúne elementos para a formação de opinião e ideias. Não por outra razão, a Constituição Federal de 1988, de conteúdo fortemente democrático, em diversos momentos refere-se à liberdade de expressão, bem como à liberdade de informação.
Com efeito, o art. 5º inciso IV, afirma ser livre a manifestação de pensamento, vedando, no entanto, o anonimato. O inciso IX, por seu turno, dispõe ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. O inciso XIV, por sua vez, assegura a todos o acesso à informação, resguardando o sigilo da fonte quando necessário ao exercício profissional.
A Carta atribuiu tratamento especial à liberdade de expressão no contexto dos meios de comunicação social, dispondo, no art. 220, que "[a] manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição" (grifos nossos).
O § 1º do art. 220, reforçando essa impossibilidade de restrição, coloca a liberdade de informação jornalística a salvo de qualquer embaraço por meio de lei, explicitando que as balizas ao exercício dessa liberdade restringem-se àquelas prescritas no próprio texto constitucional, no art. 5º, incisos IV, V, X, XIII e XIV (vedação ao anonimato, direito de resposta, possibilidade de indenização por dano à imagem, respeito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas, livre exercício de trabalho, ofício ou profissão, direito de acesso à informação e garantia de sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional).
Nesse quadro, nota-se que um dos aspectos centrais do direito fundamental à liberdade de expressão – aspecto esse que deve ser reforçado tanto mais democrática for dada sociedade – é, que, como regra geral, não são admitidas restrições prévias ao exercício dessa liberdade.
De fato, conforme assinala Daniel Sarmento, o direito à liberdade de expressão caracteriza-se como um direito negativo, visto que protege seus titulares das ações do Estado ou de particulares que visem impedir ou prejudicar o exercício das faculdades que a ele são inerentes. O mencionado autor afirma:
"Como os demais direitos fundamentais, a liberdade de expressão reveste-se de uma dupla dimensão. Na sua dimensão subjetiva, ela é, antes de tudo, um direito negativo, que protege os seus titulares das ações do Estado e de terceiros que visem a impedir ou a prejudicar o exercício da faculdade de externar e divulgar ideias, opiniões e informações. Tal direito opera em dois momentos distintos: antes da ocorrência das manifestações, para protegê-las de todas as formas de censura prévia, e depois delas, para afastar a imposição de medidas repressivas de qualquer natureza, em casos de exercício regular da liberdade de expressão" (SARMENTO, Daniel. Artigo 5º, inciso IV. In: CANOTILHO, J. J. Gomes, SARLET, Ingo Wolfgang, STRECK, Lenio Luiz e MENDES, Gilmar Ferreira (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil, São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013).
Ainda na linha do que leciona Daniel Sarmento, apenas em hipóteses excepcionais admitem-se restrições prévias à liberdade de expressão, as quais devem estar fundadas numa ponderação com outros direitos ou bens jurídicos contrapostos.
Abordei esta característica da liberdade de expressão no voto que proferi na ADI 2404. A ação fora ajuizada pelo Partido Trabalhista Brasileiro em face do art. 254 da Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente), que prevê sanção administrativa para a emissora que transmitir, por rádio ou TV, espetáculo em horário diverso do autorizado ou sem aviso de sua classificação. Trata-se da chamada classificação indicativa.
No caso, está em discussão a colisão entre a liberdade de expressão dos meios de comunicação social, conforme prevê o já mencionado art. 220 da Constituição Federal, e a proteção da criança e do adolescente, preconizada no art. 227 da CF/88.
Assinalei em meu voto que a própria Constituição trouxe a solução para a colisão entre tais valores. Se, de um lado, o art. 220 veda a imposição de qualquer restrição à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à informação, sob qualquer forma, processo ou veículo de comunicação social, de outro, o artigo 21, inciso XVI, da CF/88, confere à União competência exclusiva de "exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão". Nesse quadro, a natureza meramente indicativa da classificação seria justamente o ponto de equilíbrio adotado pela Constituição para compatibilizar os dois axiomas.
Consignei, em meu voto, que a norma impugnada seria inconstitucional por impor e condicionar, prima facie, a veiculação da programação no horário autorizado, sob pena de se incorrer em ilícito administrativo, configurando verdadeira hipótese de censura prévia ao conteúdo da programação, o que é vedado pela Carta de 1988. Assim, votei pela inconstitucionalidade do preceito, no que fui acompanhado pelos Ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia e Ayres Britto. O julgamento da referida ação não foi concluído, em razão do pedido de vista do Ministro Joaquim Barbosa.
Vale lembrar, ainda, que esta Corte, em momento antológico, no julgamento da ADPF nº 130 (Relator o Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, DJe de 6/11/09), debruçou-se com percuciência sobre o tema da liberdade de expressão, ressaltando, na ocasião, a plenitude do exercício desse direito como decorrência imanente da dignidade da pessoa humana, e como meio de reafirmação/potencialização de outras liberdades constitucionais. Na mesma sede, foi assentada a regulação estritamente constitucional do tema, imunizando o direito de livre expressão contra tentativas de disciplina ou autorização prévias por parte de norma hierarquicamente inferior, a teor do art. 220 da Carta Federal.
Asseverou a Corte, ainda, a existência de óbice constitucional ao controle prévio pelo Poder Público do conteúdo objeto de expressão, sem, contudo, retirar do emissor a responsabilidade por eventual desrespeito a direitos alheios, imputados à comunicação.
Nesse quadro, é incompatível com a Constituição Federal a interpretação dos arts. 20 e 21 do Código Civil no sentido de condicionar a edição ou a publicação de toda e qualquer obra biográfica à autorização do biografado, das pessoas descritas como coadjuvantes da história ou dos respectivos familiares. Parece-me uma restrição excessiva e peremptória às liberdades de expressão e de manifestação de pensamento dos autores e ao direito que todo cidadão tem de se manter informado a respeito de fatos relevantes da história social.
Ademais, tal interpretação equivale a atribuir, de forma absoluta e em abstrato, maior peso aos direitos à imagem e à vida privada, em detrimento da liberdade de expressão, compreensão que não se compatibiliza com a ideia de unidade da Constituição.
Ressalte-se, por fim, que não estou afirmando a total impossibilidade de se obstar uma (re)publicação de determinada obra biográfica. Em casos excepcionalíssimos, configuradores de séria violação de direitos fundamentais, atestada à luz das circunstâncias do caso concreto, é sim possível atribuir predominância a outro direito fundamental. Trata-se, no entanto, de uma ponderação a ser feita caso a caso pelo Poder Judiciário.
Pelo exposto, voto pela procedência do pedido formulado na ação direta para dar-se interpretação conforme à Constituição aos arts. 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, de modo a se afastar a necessidade de consentimento da pessoa biografada, de pessoas retratadas como coadjuvantes ou dos respectivos familiares para a publicação de obras biográficas.
10/06/2015 PLENÁRIO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL ANTECIPAÇÃO AO VOTO
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Presidente, gostaria de iniciar cumprimentando a ministra Cármen Lúcia por seu brilhante voto. Também, vou fazer juntada de voto e não vou me alongar, só gostaria de rememorar dois aspectos que me parecem importantes.
De um lado, em relação a todos os dispositivos que já foram multicitados, é bom lembrar que as disposições que estão em questionamento, na verdade, tentam, de algum forma, densificar aquilo que está no texto constitucional, especialmente o que está no artigo 5º, inciso X, quando fala que:
"X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;"
Então, esse é um ponto importante, a meu ver, porque o texto é muito claro quando diz que se cuida de valores, de direitos invioláveis. Portanto, a forma de reparação que indica é uma das possíveis, dependendo da gravidade do tema. E, por isso, temos, na jurisprudência internacional, debates muito sérios a propósito dessa temática, por exemplo, o caso Mefisto - que está citado no voto da Relatora -, em que não se cuida, obviamente, de uma biografia no sentido técnico do termo, mas de um romance histórico, no qual se apodam, indicam-se imprecisões ou informações equivocadas, onde é bastante fácil fazer aquela ilação, ministro Fux, entre o nome fictício e personagens históricos - vira inclusive aquele jogo saboroso na sociedade de identificar quem são os personagens do suposto ou do possível romance histórico. Esse é um tema importante.
E, também, no campo da liberdade de expressão, na linha do que lembrou o ministro Toffoli, é importante recordar o caso, por exemplo, do assassinato de soldados em Lebach, o famoso caso Lebach, na Alemanha, no qual se discutia se era possível revisitar um fato histórico ocorrido - esse assassinato num quartel na Alemanha - para revelar dados sobre a participação de pessoas, dentre eles, um indivíduo que estava para gozar de liberdade condicional, e isso dizia respeito à possibilidade de sua reintegração social.
Em suma, esses temas são relevantes e precisam de ser devidamente ponderados.
O próprio texto - já chamei a atenção em outros escritos - constante do art. 220 da Constituição contém uma redação que, às vezes, é indutora de equívoco, na linha da Primeira Emenda americana. Ao dizer, no texto constitucional, no parágrafo primeiro, que: "nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º" - e aí vem a referência aos vários incisos, inclusive o inciso X, que trata da defesa da privacidade.
O texto não está vedando que o legislador se ocupe da matéria, como muitos fazem uma leitura um tanto quanto, a meu ver, terrestre, pedestre, rasteira do tema. Não me parece que seja assim. O que está dizendo é que não pode haver lei que embarace a informação. E aí vêm as dimensões objetivas e subjetivas dos direitos fundamentais. Aqui, há um dever do legislador de atuar para proteger esses valores. Por isso é que gostaria só de fazer essas notas, Presidente, tendo em vista posições já assumidas no Plenário, chamando atenção a esse aspecto - e essa interpretação que estou fazendo do art. 220, § 1º, encontra respaldo, inclusive, em leitores da Constituição americana em relação à Primeira Emenda -, para que se assente que a proteção que se possa obter poderá ser outra que não, eventualmente, a indenização. Haverá casos em que certamente poderá haver a justificativa até mesmo de uma decisão judicial que suste uma publicação, desde que haja justificativa, mas não nos cabe tomar essa decisão a priori. A meu ver, fazer com que, como já foi dito aqui, a publicação das obras de biografia dependa da autorização traz sério dano à liberdade de comunicação, à liberdade científica, à liberdade artística. Evidente. E, por isso, de fato, devemos encaminhar no sentido da declaração de inconstitucionalidade da norma.
Agora, já faria ressalvas em relação ao segundo ponto trazido na conclusão do voto da eminente ministra Cármen Lúcia, pelo menos no que diz respeito à possibilidade de que a transgressão haverá de se reparar mediante indenização. Pode ser que não seja assim, pode ser que tenha de haver reparos, por exemplo: a publicação de uma nova edição com correção.
O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI: O direito de resposta.
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – Sim. São todas as situações.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Ministro, se Vossa Excelência me permite, o que eu quis dizer é que, ao fixarmos essa inconstitucionalidade com redução de texto, nós não estávamos afastando em nada o artigo, tanto que, basicamente, eu repito "apenas reafirmar...", por isso eu comecei a alínea "b" nesse sentido, "reafirmar o que diz a Constituição, sem embargo de...", porque é como está na Constituição. Quer dizer, então, não é exclusividade nem nada, apenas estou reafirmando para não se dizer, como disse o Ministro Dias Toffoli muito bem: alguém poderia pensar que estamos declarando a inconstitucionalidade e, com isso...
O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX - Ministro Gilmar, só exatamente corroborando a posição de Vossa Excelência, a proposta minimalista é exatamente nós fixarmos esse julgado em relação à exigência ou não de licença prévia para publicação de biografia, por quê? Porque nós não estamos aqui, e nem podemos, como foi aqui destacado, afirmar que estamos interditando o acesso ao Judiciário, até porque o Código Civil, quando inaugurou o capítulo...
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - É isso, é isso. É exatamente isso, por isso eu circunscrevi...
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - O acesso ao Judiciário dar-se-á apenas para fins de indenização...
O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX - É inimaginável que nós possamos fixar uma tese dizendo que a parte não pode acessar o Judiciário.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA - O que poderia é ser expletivo esse inciso b. Eu só não quero é que alguém imagine que, como nós estamos declarando sem redução do texto a interpretação dos dispositivos do Código Civil, o inciso X do art. 5 da Constituição de alguma forma ficou comprometido por nós. Não, nós estamos repetindo que está mantida a norma constitucional de responsabilidade em sua inteireza.
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Ministro Gilmar, só um minutinho. A minha proposta de tese minimalista, que eu acho que até agora é consenso, é: não é compatível com a Constituição interpretação dos arts. 20 e 21 do Código Civil que importe na necessidade de autorização prévia de pessoa retratada em obra biográfica para fins de sua divulgação por qualquer meio de comunicação. Eu acho que esse ponto nos une a todos. Acho que esse é um ponto consensual.
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Eu concordava já com o primeiro ponto da eminente ministra Cármen Lúcia. Só estou fazendo a ressalva em relação ao item...
O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI: É que parece que a única maneira de reparar seria a precificação.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Exatamente.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - É muito simples. Sabe o que pode ser feito?
O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI: Então, para tudo tem um preço, e podemos, então, fazer o que bem entendermos, basta ter o dinheiro para pagar esse preço?
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Era muito mais simples retirar o inciso b. E ficar o inciso a da minha conclusão, quer dizer, que nem é inciso a.
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – É. Porque, aí, acho que coincide com a posição do Ministro...
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Ministro Gilmar, Vossa Excelência me permite um aparte? E também a Ministra Cármen Lúcia?
Eu também, ao ler a conclusão do seu brilhante voto, num primeiro momento, fui induzido a pensar que Vossa Excelência estaria concluindo que a transgressão aos valores abrigados no art. 5º, X, da Constituição, só seriam ressarcíveis ou sanáveis mediante indenização, mas depois que eu vi o Doutor Antônio Carlos dizer da Tribuna que, em tese, seria possível até a apreensão ou a sustação da divulgação da obra...
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Com a qual eu não concordo...
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - ..... imaginei que Vossa Excelência certamente não excluiria essa possibilidade, até em função do princípio da inafastabilidade da jurisdição.
O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX - O minimalismo é importante por isso, porque... Nós não estamos decidindo isso.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Para evitar qualquer polêmica, eu prefiro concluir o meu voto retirando a alínea b.
O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI: Eu fico mais confortável.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - O que elimina, até porque, aqui nós estamos julgando para declarar ou não declarar, aqui não é repercussão geral nem nada. Então, nesse caso, eu prefiro reajustar para retirar a alínea b.
O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI: Fica só o item a.
O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX - Presidente, até para prestar um esclarecimento de ordem doutrinária mesmo, esse campo dos direitos da personalidade ficou muito tempo relegado ao um segundo plano, em que a lesão dele apenas era reparável através da indenização. O novo Código Civil, quando inaugurou o capítulo dos direitos da personalidade, trouxe no art. 21 aquilo que já havia na Europa, que é a tutela inibitória. Então, eu acho que nós deveríamos nos adstringir ao tema licença para biografia, para não abrir o leque do que nós estamos julgando, porque nós estamos julgando só isso.
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Eu só gostaria de consignar a minha posição, Ministra Cármen. Eu concordo com a alínea b do voto de Vossa Excelência, quando diz "reafirmar o direito à inviolabilidade da intimidade, privacidade, honra, imagem da pessoa, nos termos do art. 5º, cuja transgressão haverá de se reparar", e aí a única modificação que eu faria seria: a posteriori.
Eu gostaria de deixar claro, Presidente, se eventualmente não tiver ficado, que eu não acho que via judicial, ou qualquer outra via, seja legítima a interferência do Judiciário previamente à publicação. Acho que, em nenhuma hipótese, o Judiciário deve impedir a publicação de uma obra.
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Nós já tivemos aqui o célebre caso da fita Globo-Garotinho, em que o Tribunal, num contexto eleitoral, entendeu, por exemplo...
O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX - Que se sai publicada na véspera da eleição...
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Não é biografia.
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Tendo em vista uma ponderação específica...
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Mas aí não é biografia.
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Só para dar um exemplo da jurisprudência do Tribunal e não buscar jurisprudência...
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Isso não é biografia. Nós estamos falando de biografias.
Eu prefiro retirar, Presidente, porque, na alínea b, eu repeti o que estava na Constituição para garantir que o inciso X continua hígido.
O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI: Fica melhor assim.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Então, é o óbvio ululante; agora, como no Brasil até o óbvio ululante gera polêmica, eu retiro.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Está bem.
O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI: É melhor assim.
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - O que a norma diz e é tema que já visitei, também, é que é inviolável. E o que é inviolável, segundo o conselheiro Acácio, não deve ser violado.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Mas a Constituição...
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - E, se há uma regra que de fato assume centralidade no texto constitucional, Presidente, é a regra do art. 5º, XXXV. É aquela que estabelece a proteção judicial efetiva:
"Art. 5º. (...)
XXXV. a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito."
Mas, com o ajuste, Ministra, estamos de acordo.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Sim, e, aí, inclusive, Ministro, eu acho que está embutido o poder cautelar do magistrado, dentro do seu prudente arbítrio.
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES – Claro. Sim, terá de ser examinado no caso concreto.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Cada caso examinará.
- Ministro Gilmar, Vossa Excelência, antes de finalizar, me permite - eu não uso da palavra nunca numa segunda vez, mesmo com um voto tão longo, eu falei doze minutos cravados -, mas só para esclarecer.
ADI 4815 / DF
Em primeiro lugar, eu comecei, antes de falar o meu voto, exatamente dizendo que, por dever de justiça e para ficar em paz com a minha consciência, eu me punha contra até coisas que li, vi e ouvi sobre pessoas que foram ao Judiciário, porque isto é um direito e que o jurisdicionado é (inaudível). Portanto, estamos todos de acordo quanto a isso.
Agora eu sempre acho que repetiu-se a Constituição: pediu-se a declaração de constitucionalidade, eu voto no sentido da declaração de constitucionalidade. O que eu queria era acertar, deixar enfatizada a norma do inciso X do art. 5º da Constituição. Incluí-la no texto pode gerar polêmica? Retire-se, ponto e acabou; simples assim.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Está bem.
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Acompanho Vossa Excelência.
10/06/2015 PLENÁRIO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL
VOTO
O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES: A presente ação direta de inconstitucionalidade foi proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL com objetivo de ver declarada a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos artigos 20 e 21 do Código Civil. A proponente indica que esses dispositivos, ao exigir autorização prévia dos biografados para a publicação de biografias, estariam a limitar, indevidamente, a liberdade de expressão e o direito à informação.
Aponta, na inicial, que não pretende tratar da questão do uso da imagem de pessoas públicas por veículos de comunicação, mas "tão somente da necessidade da autorização do biografado (ou de seus familiares) como condição para a publicação ou veiculação de obras biográficas, literárias ou audiovisuais", o que criaria uma espécie de censura prévia. Argumenta que tal condição "produz efeito devastador sobre o mercado editorial", já que "escritórios de representação negociam preços absurdos pelas licenças, transformando informação em mercadoria". A proibição seria, ainda, um "desestímulo a historiadores e autores em geral".
Audiência pública sobre o tema foi realizada, para a qual foram admitidos sete amici curiae, que expuseram diversos pontos de vista sobre o assunto.
Em detida análise do caso, verifico que o principal tema em questão é a ponderação entre a liberdade de expressão, um dos pilares essenciais do Estado Democrático, e os direitos de personalidade.
Se, por um lado, existe consenso em torno do significado da liberdade de expressão como um direito fundamental universalmente garantido e fundamental ao regime democrático, no plano prático, todavia, nunca houve exata correspondência entre a ampla concordância (ou mesmo o senso comum) em torno da ideia de tal liberdade e da sua efetiva realização e proteção. Mesmo em nações de democracia avançada, trata-se de valor em permanente afirmação e concretização.
Em países com histórico de instabilidade política e nas denominadas novas democracias, a paulatina construção dos fundamentos institucionais propícios ao desenvolvimento da liberdade de comunicação ainda representa um desafio e um objetivo a ser alcançado.
No Brasil, como não poderia deixar de ser, o permanente aprendizado da democracia, em constante evolução positiva desde o advento do regime constitucional instaurado pela Constituição de 1988, sempre foi indissociável da incessante busca por um ambiente em que a liberdade de expressão fosse garantida, em todas suas vertentes.
Ressalto, desde já, que a garantia da liberdade de expressão abrange "toda opinião, convicção, comentário, avaliação ou julgamento sobre qualquer assunto ou sobre qualquer pessoa, envolvendo tema de interesse público, ou não, de importância e de valor, ou não", desde que não esteja em conflito com outro direito ou valor constitucionalmente protegido (BRANCO, Paulo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 264).
Nesse contexto, os Tribunais cumprem papel decisivo na interpretação, ponderação e aplicação de tal direito. No debate permanente entre a liberdade absoluta e a liberdade restrita, decisões das Cortes alemã e americana produziram duas vertentes ou duas concepções especiais sobre o significado ou o conteúdo da liberdade de expressão.
Nos Estados Unidos, apenas na segunda década do século XX foi instaurada uma verdadeira e profunda discussão sobre o conteúdo e os limites constitucionais da liberdade de expressão protegida pela 1ª Emenda (First Amendment), quando a Corte Suprema foi chamada a se pronunciar sobre a constitucionalidade de leis restritivas editadas pelo Congresso. São conhecidos os históricos pronunciamentos de Oliver W. Holmes nos casos Schenck v. United States (249 US 47, 1919) e Abrams v. United States (250 US 616, 1919).
Se, no primeiro caso (Schenck v. United States), o Justice Holmes criou a doutrina do "perigo claro e iminente" (clear and present danger) para justificar a constitucionalidade da lei restritiva (Lei de Espionagem de 1917, editada durante a 1ª Guerra Mundian( � no segundo caso (Abrams v. United States) Holmes, divergiu de seus pares com o famoso pronunciamento em torno do "mercado de ideias":
"when men have realized that time has upset many fighting faiths, they may come to believe even more than they believe the very foundations of their own conduct that the ultimate good desired is better reached by free trade in ideas -- that the best test of truth is the power of the thought to get itself accepted in the competition of the market, and that truth is the only ground upon which their wishes safely can be carried out. That, at any rate, is the theory of our Constitution. It is an experiment, as all life is an experiment. Every year, if not every day, we have to wager our salvation upon some prophecy based upon imperfect knowledge. While that experiment is part of our system, I think that we should be eternally vigilant against attempts to check the expression of opinions that we loathe and believe to be fraught with death, unless they so imminently threaten immediate interference with the lawful and pressing purposes of the law that an immediate check is required to save the country."
Os fundamentos do voto divergente de Holmes configuram o que Cass Sustein denomina de "o primeiro modelo de interpretação da 1ª Emenda". Defendia Holmes, em verdade, a diversidade, a concorrência e o livre intercâmbio de ideias como o único modo idôneo de se buscar a verdade (SUSTEIN, Cass R. One case at a time. Judicial Minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University; 1999, p. 176.).
Talvez seja essa uma das mais importantes funções das liberdades de comunicação na democracia. O livre tráfego de ideias e a diversidade de opiniões são elementos essenciais para o bom funcionamento de um sistema democrático e para a existência de uma sociedade aberta.
Essas concepções da liberdade encontram na obra de John Stuart Mill – "On liberty" – uma de suas melhores exposições. Como bem observou Isaiah Berlin, outro grande pensador das liberdades, a obra de Stuart Mill "ainda é a mais clara, sincera, persuasiva e instigante exposição do ponto de vista dos que desejam uma sociedade aberta e tolerante" (BERLIN, Isaiah. Introdução à obra: MILL, John Stuart. A liberdade; utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes; 2000, p. XLVII).
Ao defender a ampla liberdade de pensamento e de discussão, Mill enfatizava que nada é mais prejudicial a toda humanidade do que silenciar a expressão de uma opinião. Em suas memoráveis palavras: "Se todos os homens menos um partilhassem a mesma opinião, e apenas uma única pessoa fosse de opinião contrária, a humanidade não teria mais legitimidade em silenciar esta única pessoa do que ela, se poder tivesse, em silenciar a humanidade". E continua para afirmar, categoricamente, que "o que há de particularmente mau em silenciar a expressão de uma opinião é o roubo à raça humana" (MILL, John Stuart. A liberdade; utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes; 2000, p. 29)
A Suprema Corte norte-americana ainda manteve, por um tempo, seu posicionamento a favor das leis e medidas administrativas restritivas da liberdade de expressão em casos posteriores (Pierce v. United States (1920), Gitlow v. New York (1925), Whitney v. California (1927)), porém com os votos dissidentes de Holmes, que representam um marco na história da concepção liberal da proteção das liberdades de expressão nos Estados Unidos (Cfr.: BELTRÁN DE FELIPE, Miguel; GONZÁLEZ GARCÍA, Julio. Las sentencias básicas del Tribunal Supremo de los Estados Unidos de América. 2ª Ed. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales y Boletín Oficial del Estado; 2006).
Por outro lado, o famoso caso New York Co. v. Sullivan (376 US 254, 1964) constitui ponto culminante da formação de uma concepção que se iniciou em James Madison, foi acolhida por Louis D. Brandeis, em voto no caso Whitney v. California, e encontrou uma de suas melhores expressões no importante trabalho de Alexander Meiklejohn, que associou o princípio do free speech com o ideal de democracia deliberativa (SUSTEIN, Cass R. One case at a time. Judicial Minimalism on the Supreme Court. Cambridge: Harvard University; 1999, p. 176).
Decidiu a Suprema Corte, no caso Sullivan, que, para a efetiva garantia das liberdades de expressão, não se poderia exigir dos comunicadores em geral a prova da verdade das informações críticas aos comportamentos de funcionários públicos. O requisito da verdade como condição obrigatória de legitimidade das críticas às condutas públicas seria equiparável à censura, pois praticamente silenciaria quem pretendesse exercer a liberdade de informação.
Mesmo nas hipóteses em que se pudesse ter certeza da veracidade das informações, a dúvida poderia persistir sobre a possibilidade de prova dessa verdade perante um Tribunal. Tal sistema suprimiria a vitalidade e a diversidade do debate público e democrático e, dessa forma, não seria compatível com as liberdades de expressão e de informação protegidas pela 1ª Emenda (Para comentários e críticas à decisão em New York Co. vs. Sullivan, vide: CODERCH, Pablo Salvador. El derecho de la libertad. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales; 1993, p. 64 e ss.).
Se, nos Estados Unidos, é possível identificar essas duas tradições ou dois modelos de interpretação da liberdade de expressão, na Alemanha a jurisprudência do Tribunal Constitucional interpreta as liberdades protegidas pelo art. 5º da Grundgezetz de duas formas: como um direito subjetivo fundamental e como uma instituição ou garantia institucional.
No famoso caso Lüth (BVerfGE 7, 198, 1958) que é, antes de tudo, um marco na definição do significado da liberdade de expressão na democracia, o TFC alemão reconhece a dupla dimensão, subjetiva (individual) e objetiva (institucional), dos direitos fundamentais.
Em primeira linha, o Tribunal considera o seguinte:
"Sem dúvida, os direitos fundamentais existem, em primeira linha, para assegurar a esfera de liberdade privada de cada um contra intervenções do poder público; eles são direitos de resistência do cidadão contra o Estado. Isto é o que se deduz da evolução histórica da idéia do direito fundamental, assim como de acontecimentos históricos que levaram os direitos fundamentais às constituições dos vários Estados. Os direitos fundamentais da Grundgesetz também têm esse sentido, pois ela quis sublinhar, com a colocação do capítulo dos direitos fundamentais à frente (dos demais capítulos que tratam da organização do Estado e constituição de seus órgãos propriamente ditos), a prevalência do homem e sua dignidade em face do poder estatal. A isso corresponde o fato de o legislador ter garantido o remédio jurídico especial para proteção destes direitos, a Reclamação Constitucional, somente contra atos do poder público."
Em seguida, não obstante, conclui o Tribunal:
"Da mesma forma é correto, entretanto, que a Constituição, que não pretende ser um ordenamento neutro do ponto de vista axiológico, estabeleceu também, em seu capítulo dos direitos fundamentais, um ordenamento axiológico objetivo, e que, justamente em função deste, ocorre um aumento da força jurídica dos direitos fundamentais (...). Esse sistema de valores, que tem como ponto central a personalidade humana e sua dignidade, que se desenvolve livremente dentro da comunidade social, precisa valer enquanto decisão constitucional fundamental para todas as áreas do direito; Legislativo, Administração Pública e Judiciário recebem dele diretrizes e impulsos".
A concepção formada pela Corte alemã evidencia que os direitos fundamentais são, a um só tempo, direitos subjetivos e elementos fundamentais da ordem constitucional objetiva. Enquanto direitos subjetivos, os direitos fundamentais outorgam aos titulares a possibilidade de impor os seus interesses em face dos órgãos obrigados (HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts, der Bundesrepublik Deutschland, Heidelberg: C. F. Müller, 1995, p. 112; KREBS, Walter. Freiheitsschutz durch Grundrechte, in: JURA, p. 617 (619), 1988).
Na sua dimensão institucional, como elemento fundamental da ordem constitucional objetiva, os direitos fundamentais — tanto aqueles que não asseguram, primariamente, um direito subjetivo quanto aqueles outros concebidos como garantias individuais — formam a base do ordenamento jurídico de um Estado de Direito democrático.
Tal como observado por Hesse, a garantia de liberdade do indivíduo, que os direitos fundamentais pretendem assegurar, somente é exitosa no contexto de uma sociedade livre.
Por outro lado, uma sociedade livre pressupõe a liberdade dos indivíduos e cidadãos, aptos a decidir sobre as questões de seu interesse e responsáveis pelas questões centrais de interesse da comunidade. Essas características condicionam e tipificam, segundo Hesse, a estrutura e a função dos direitos fundamentais. Estes asseguram não apenas direitos subjetivos, mas também os princípios objetivos da ordem constitucional e democrática (HESSE, Bedeutung der Grundrechte, in: BENDA, Ernst; Maihofer, Werner e Vogel, Hans-Jochen, Handbuch des Verfassungsrechts. Berlin, 1995, v. I, p. 127 (134)).
Entre nós, não se pode afirmar que o constituinte de 1988 tenha concebido a liberdade de expressão como direito absoluto, insuscetível de restrição, seja pelo Judiciário, seja pelo Legislativo. Já a fórmula constante do art. 220 da Constituição explicita que "a manifestação de pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição".
É fácil ver, assim, que o texto constitucional não excluiu a possibilidade de que se introduzam limitações à liberdade de expressão e de comunicação, estabelecendo, expressamente, que o exercício dessas liberdades há de se fazer com observância do disposto na Constituição. Não poderia ser outra a orientação do constituinte, pois, do contrário, outros valores, igualmente relevantes, quedariam esvaziados diante de um direito avassalador, absoluto e insuscetível de restrição.
Há, portanto, inevitável tensão na relação entre a liberdade de expressão e de comunicação, de um lado, e os direitos da personalidade constitucionalmente protegidos, de outro, que pode gerar uma situação conflituosa, a chamada colisão de direitos fundamentais (Grundrechtskollision).
É fecunda a jurisprudência da Corte Constitucional alemã sobre o assunto, especialmente no que se refere ao conflito entre a liberdade de imprensa ou a liberdade artística e os direitos da personalidade, como o direito à honra e à imagem.
A propósito da problemática, mencionem-se julgados importantes da Corte Constitucional alemã.
Na decisão de 24.02.1971, relativa à publicação do romance Mephisto, de Klaus Mann, reconheceu-se o conflito entre o direito de liberdade artística e os direitos de personalidade enquanto derivações do princípio da dignidade humana.
O filho adotivo do falecido ator e diretor de teatro Gustaf Gründgen postulou perante a justiça estadual de Hamburgo a proibição da publicação do romance Mephisto ao argumento de que se cuidava de biografia depreciativa e injuriosa da memória de Gründgen, caricaturado no romance na figura de Hendrik Höfgen.
O tribunal estadual de Hamburgo julgou improcedente a ação. O romance foi publicado em setembro de 1965 com uma advertência aos leitores, assinada por Klaus Mann, afirmando que "todas as pessoas deste livro são personagens, não retratos de personalidade" (Alle Personen dieses Buchs stellen Typen dar, nicht Porträts. K.M.).
Com fundamento em uma medida liminar deferida pelo Tribunal Superior de Hamburgo, acrescentou-se à publicação uma advertência aos leitores na qual se enfatizava que, embora constassem referências a pessoas, as personagens haviam sido conformadas, fundamentalmente, pela "fantasia poética do autor" (dichterische Phantashie des Verfassers).
Posteriormente, o Tribunal concedeu o pedido de proibição da publicação, por entender haver direitos subsistentes de personalidade do falecido teatrólogo, bem como direito autônomo do filho adotivo. Como o público dificilmente poderia distinguir entre poesia e realidade, sendo mesmo levado a identificar na personagem Höfgen a figura de Gründgen, não havia como deixar de reconhecer o conteúdo injurioso das afirmações contidas na obra. O direito de liberdade artística não teria precedência sobre os demais direitos, devendo, por isso, o juízo de ponderação entre a liberdade artística e os direitos de personalidade serem decididos, na espécie, em favor do autor.
O Supremo Tribunal Federal (Bundesgerichtshof) rejeitou a revisão interposta sob a alegação de que o direito de liberdade artística encontra limite imanente (imannente Begrenzung) no direito de personalidade assegurado constitucionalmente. Esses limites são violados se, a pretexto de descrever a vida ou a conduta de determinadas pessoas, se atribui a elas prática de atos negativos absolutamente estranhos à sua biografia, sem que se possa afirmar, com segurança, que se cuida, simplesmente, de uma imagem hiperbólica ou satírica.
Por fim, ao apreciar a questão, o Tribunal Constitucional reconheceu que a descrição da realidade integra o âmbito de proteção do direito de liberdade artística, isto é, a chamada arte engajada não estaria fora da proteção outorgada pelo art. 5.º, III, da Lei Fundamental.
A ementa do acórdão fornece boa síntese dos fundamentos da decisão:
"N. 16
1. Art. 5, III, 1.º período da Lei Fundamental representa uma norma básica da relação entre o Estado e o meio artístico. Ele assegura, igualmente, um direito individual.
2. A garantia da liberdade artística abrange não só a atividade artística, como a apresentação e a divulgação das obras de arte.
3. O direito de liberdade artística protege também o editor.
4. À liberdade artística não se aplicam nem a restrição do art. 5.º, II, nem aquela contida no art. 2.º, I, 2.º período.
5. Um conflito entre a liberdade artística e o âmbito do direito de personalidade garantido constitucionalmente deve ser resolvido com fulcro na ordem de valores estabelecida pela Lei Fundamental; nesse sentido, há de ser considerada, particularmente, a garantia da inviolabilidade do princípio da dignidade humana consagrada no art. 1.º, I". (Decisão da Corte Constitucional, vol. 30, p. 173).
Reconheceu-se, pois, que, embora não houvesse reserva legal expressa, o direito de liberdade artística não fora assegurado de forma ilimitada. A garantia dessa liberdade, como a de outras constitucionalmente asseguradas não poderia desconsiderar a concepção humana que balizou a Lei Fundamental, isto é, a ideia de homem como personalidade responsável pelo seu próprio destino, que se desenvolve dentro da comunidade social.
O não estabelecimento de expressa reserva legal ao direito de liberdade artística significava que eventuais limitações deveriam decorrer, diretamente, do texto constitucional. Enquanto elemento integrante do sistema de valores dos direitos individuais, o direito de liberdade artística estava subordinado ao princípio da dignidade humana (LF, art. 1.º), que, como princípio supremo, estabelece as linhas gerais para os demais direitos individuais. O modelo de ser humano, pressuposto pelo art. 1.º, I, da Lei Fundamental, conformaria a garantia constitucional de liberdade artística, bem como esta seria influenciada, diretamente, pela concepção axiológica contida no art. 1.º, I.
No caso em apreço, considerou-se que os tribunais não procederam a uma aferição arbitrária dos interesses em conflito, mas, ao revés, procuraram avaliar, de forma cuidadosa, os valores colidentes, contemplando, inclusive a possibilidade de determinar uma proibição limitada do romance (publicação com esclarecimento obrigatório).
Já no chamado caso Lebach, de 5.6.1973, discutiu-se problemática concernente à liberdade de imprensa face aos direitos de personalidade. Cuidava-se de pedido de medida liminar formulado perante tribunais ordinários por um dos envolvidos em grave homicídio — conhecido como o assassinato de soldados de Lebach — Der Soldatenmord von Lebach — contra a divulgação de filme, pelo Segundo Canal de Televisão (Zweites Deutsches Fernsehen — ZDF), sob a alegação de que, além de lesar os seus direitos de personalidade, a divulgação do filme, no qual era citado nominalmente, dificultava a sua ressocialização. O Tribunal estadual de Mainz e, posteriormente, o Tribunal Superior de Koblenz não acolheram o pedido de liminar, entendendo, fundamentalmente, que o envolvimento no crime fez que o impetrante se tornasse uma personalidade da história recente e que o filme fora concebido como um documentário destinado a apresentar o caso sem qualquer alteração.
Eventual conflito entre a liberdade de imprensa, estabelecida no art. 5º, I, da Lei Fundamental, e os direitos de personalidade do impetrante, principalmente o direito de ressocialização, haveria de ser decidido em favor da divulgação da matéria, que correspondia ao direito de informação sobre tema de inequívoco interesse público.
A Corte Constitucional após examinar o documentário e assegurar o direito de manifestação do Ministério da Justiça, em nome do Governo Federal, do Segundo Canal de Televisão, do Governo do Estado da Renânia do Norte-Vestfália, a propósito do eventual processo de ressocialização do impetrante na sua cidade natal, do Conselho Alemão de Imprensa, da Associação Alemã de Editores, e ouvir especialistas em execução penal, psicologia social e comunicação, deferiu a medida postulada, proibindo a divulgação do filme, até a decisão do processo principal, se dele constasse referência expressa ao nome do impetrante.
Ressaltou o Tribunal que, ao contrário da expressão literal da lei, o direito à imagem não se limitava à própria imagem, mas também às representações de pessoas com a utilização de atores.
Considerou, inicialmente, que os valores constitucionais em conflito (liberdade de comunicação e os direitos da personalidade) configuram elementos essenciais da ordem democrático-liberal (freiheitlich demokratische Ordnung), estabelecida pela Lei Fundamental, de modo que nenhum deles deve ser considerado, em princípio, superior ao outro. Na impossibilidade de uma compatibilização dos interesses conflitantes, tinha-se de contemplar qual haveria de ceder lugar, no caso concreto, para permitir uma adequada solução da colisão.
Em apertada síntese, concluiu a Corte Constitucional:
"Para a atual divulgação de notícias sobre crimes graves tem o interesse de informação da opinião pública, em geral, precedência sobre a proteção da personalidade do agente delituoso. Todavia, além de considerar a intangibilidade da esfera íntima, tem-se que levar em conta sempre o princípio da proporcionalidade. Por isso, nem sempre se afigura legítima a designação do autor do crime ou a divulgação de fotos ou imagens ou outros elementos que permitam a sua identificação.
A proteção da personalidade não autoriza que a Televisão se ocupe, fora do âmbito do noticiário sobre a atualidade, com a pessoa e a esfera íntima do autor de um crime, ainda que sob a forma de documentário.
A divulgação posterior de notícias sobre o fato é, em todo caso, ilegítima, se se mostrar apta a provocar danos graves ou adicionais ao autor, especialmente se dificultar a sua reintegração na sociedade. É de se presumir que um programa, que identifica o autor de fato delituoso pouco antes da concessão de seu livramento condicional ou mesmo após a sua soltura, ameaça seriamente o seu processo de reintegração social."
Vê-se, pois, que, no processo de ponderação desenvolvido para solucionar o conflito de direitos individuais não se deve atribuir primazia absoluta a um ou a outro princípio ou direito. Ao revés, esforça-se o Tribunal para assegurar a aplicação das normas conflitantes, ainda que, no caso concreto, uma delas sofra atenuação.
Assim, repito, a Constituição brasileira, tal como a Constituição alemã, conferiu significado especial aos direitos da personalidade, consagrando o princípio da dignidade humana como postulado essencial da ordem constitucional, estabelecendo a inviolabilidade do direito à honra e à privacidade e fixando que a liberdade de expressão e de informação haveria de observar o disposto na Constituição, especialmente o previsto no art. 5º, incisos V ("é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem") e X ("são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação").
Nesse contexto, entendo que a prévia autorização para publicação de obras de biografia gera sério dano à liberdade de comunicação, à liberdade científica, à liberdade artística e que, por outro lado, na ocorrência de eventuais transgressões, a Constituição Federal assegura mecanismos para possíveis reparações, inclusive direito de resposta.
Por tais razões, acompanho o voto da Ministra Relatora para dar interpretação conforme à Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, e afastar interpretação que exija prévia autorização para publicação de obras de biografia.
10/06/2015 PLENÁRIO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Confesso, Presidente, que não trouxe voto escrito, porque adoto sempre a prática, atuando como vogal, de comparecer às Sessões, ouvir o Relator ou a Relatora, ouvir as sustentações da tribuna e, somente então, formar convencimento a respeito.
Digo que esta tarde importantíssima em termos de cidadania. É uma tarde de inteligência. É muito sintomático que, pela vez primeira, a Academia Brasileira de Letras tenha comparecido a uma audiência pública no Tribunal, personificada pelo historiador José Murilo de Carvalho, a quem rendo homenagem.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Não, a presidente era Ana Maria Machado; José Murilo veio pelo Instituto.
O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Veio pelo Instituto. Então, personificada a Academia pela presidente à época, Ana Maria Machado, e, comparecendo também o historiador José Murilo de Carvalho, a quem – repito – rendo homenagens, bem como à então presidente.
A obra referida pelo ministro Luís Roberto Barroso, sobre o perfil do exemplar Imperador – e admiro muito mais Sua Excelência quando parte para o improviso – não foi, em termos de biografia, autorizada pelos descendentes remotos de Dom Pedro, mas deveria ser lida por todo e qualquer administrador.
Presidente, hoje acordei e, tomando café, folheio sempre o clipping e me deparei com inúmeras matérias veiculadas pela imprensa. Uma delas – já foi mencionada pelo Ministro Luís Roberto Barroso – veio com o título: "Nas mãos do Supremo." Ruy Castro, que já sofreu as agruras, considerada a necessidade de autorização para biografar certa pessoa, terminou o artigo revelando: "O Supremo julga hoje, em Brasília, se o Brasil tem idade para escrever sua própria história ou se continuará precisando pedir autorização."
Presidente, o mesmo clipping, já considerado outro jornal, O Globo – o primeiro, quanto ao artigo de Ruy Castro, foi a Folha de São Paulo –, trouxe o episódio – diria, a esta altura, bendito episódio, porque acabou por provocar a análise da matéria –, na prestigiada coluna de Ancelmo Gois, que ocorreu quanto à biografia desse excepcional homem, de projeção pública, grande cantor, que é Roberto Carlos. E se disse, na coluna do Ancelmo, que, caso o Supremo viesse a derrubar a censura, como é esperado, "Roberto Carlos em detalhes" terá nova edição. Contudo, não pela "Planeta". O autor, Paulo César de Araújo, sentiu-se abandonado pela editora espanhola, em 2007, quando da proibição. O mais provável – consignou Ancelmo – é que a biografia saia pela Companhia das Letras, que publicou o livro – e é interessantíssimo o título – "O réu e o rei", ano passado. Nele, Paulo César narra toda a história da censura verificada.
Ainda, a "Folha de São Paulo" trouxe a visão de uma também excepcional intérprete, Maria Betânia. Em entrevista, foi indagada: "Um professor universitário está escrevendo sua biografia". Betânia respondeu: "Não autorizei ninguém a escrever minha biografia" – sim, porque se tivesse autorizado e buscado, não se trataria de biografia, mas sim de publicidade –, "mas quem quiser escrever, pode escrever o que quiser". É essa a postura que se aguarda daqueles que alcançam, no cenário nacional, visibilidade maior. Indagou o repórter: "Se fosse sem seu aval, você se incomodaria?". Ela respondeu: "Eu não, não tenho nada com isso. Cada um escreve o que quer, eu sei o que sou."
Presidente, não antecipei, quando falei ontem sobre a matéria, e foi publicado hoje nos jornais, qualquer ponto de vista, porque, no correr dos anos com assento no Supremo, tornei-me um arauto da liberdade de expressão; tornei-me um arauto da liberdade de informação, tendo em vista a Carta da República. Digo que é impensável, de início, numa antecipação de visão quanto ao que venha a ser veiculado, ter-se a censura pelo Estado, a censura judicial, que é uma das piores censuras que pode haver.
O artigo 5º, inciso XIII, encerra a liberdade ao trabalho. É razoável que alguém, considerada a personagem que se projetou junto ao povo, trabalhe em termos de pesquisa, anos e anos, para, de repente, ter-se providência, como ocorreu no tocante ao livro sobre o perfil de Garrincha, e considerado Ruy Castro, ter-se censura judicial e suspensão do trabalho elaborado? Não, Presidente. Quando o inciso XIII do principal rol das garantias constitucionais, pedagogicamente –, apenas pedagogicamente – revela o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, apenas submete a atividade ao atendimento das qualificações profissionais que a lei estabeleça. Mas há mais: há, no artigo 220, cabeça, regra peremptória a revelar a liberdade de expressão, a liberdade de pensamento e quanto a certo direito/dever – e presume-se o que normalmente ocorre, e não o excepcional, o extravagante – de informar bem aos concidadãos.
Tem-se a revelar, como disse o ministro Luís Roberto Barroso, a preferência a previsão – não vamos falar em hierarquia, já que os preceitos constitucionais originários estão no mesmo patamar –, no mesmo artigo 5º, havendo a transgressão à privacidade, evidentemente de forma ilegítima, da verba indenizatória.
Existem, Presidente – não lembro quem chegou a realçar essa dualidade –, dois institutos diversos: a biografia e a publicidade. Escrever sobre alguém por meio de encomenda, ou seja, a partir de autorização, é adentrar o campo não da revelação do real perfil, mas o da publicidade. Aquele que haja alcançado visibilidade social é um verdadeiro livro aberto, e nós, cidadãos, temos interesse em conhecer, mediante revelação de terceiro, o respectivo perfil. Diria que a moeda tem duas faces: não há apenas aspectos positivos nessa projeção nacional; há também – porque se paga um preço por se viver em um Estado Democrático de Direito – aspectos negativos. Evidentemente, é preciso aceitar até mesmo a revelação, considerados homens públicos, no sentido abrangente, de aspectos ligados à vida privada. A incolumidade do perfil do homem público não é a mesma do cidadão comum. A privacidade do cidadão comum é diversa da privacidade do homem público. Projetando-se no campo do conhecimento dos semelhantes, o homem público passa a ser, como digo sempre, um verdadeiro livro aberto; passa a estar na vitrina e não pode pretender implementar atos a partir de suscetibilidades. Há o interesse das gerações atuais e das gerações futuras na preservação da memória de dados nacionais – e biografia quer dizer, em última análise, memória nacional. Diz-se que o Brasil é um país sem memória, tendo em conta, inclusive, censuras perpetradas no passado – e o ministro Luís Roberto Barroso se referiu ao fato de, até na certidão de nascimento do Brasil, ter havido censura. A memória há de ser, com fidelidade, preservada.
Pergunto: a prevalecer a necessidade de autorização, quer do próprio biografado ou dos descendentes, como previsto no Código Civil – e devemos interpretar o Código Civil à luz da Constituição Federal, não invertendo valores –, teríamos, por exemplo, Presidente – e me confesso ledor de biografias, não de biografias autorizadas, mas de biografias que revelem realmente uma concepção própria do biógrafo –, "Getúlio", em três volumes, pela Companhia das Letras, de Lira Neto? O perfil do "catedrático-menino", San Tiago Dantas, considerado o que escreveu Pedro Dutra? "Dirceu", obra veiculada pela Record, de autoria do jornalista Otávio Cabral? "João Goulart", de Jorge Ferreira, Civilização Brasileira? "O Que Sei de Lula", de José Nêumanne Pinto, Topbooks? "A Ditadura Envergonhada", de Elio Gaspari? Sim, porque discorre sobre aqueles que estiveram no mando do País na época do regime de exceção. "O Brasil Sem Retoque", de Carlos Chagas? "A Ditadura Militar e os Golpes Dentro do Golpe", também de Carlos Chagas? "Jango", desse historiador louvável – sob a minha óptica e não no tocante à óptica de alguns – Marco Antônio Villa? A obra de Fernando Jorge, "Vida e Obra do Plagiário Paulo Francis"? E, por último, teríamos um livro que também é aconselhável à leitura, "Tudo ou Nada", perfil de Eike Batista, de Malu Gaspar? Não, Presidente! Não teríamos. Perderia o Brasil, em termos de memória.
Presidente, para mim, biografia, independentemente de autorização, é sinônimo de memória do País. É algo que direciona aqueles que procedem à leitura à busca de dias melhores nesta sofrida República. Há de aguardar-se – não desconheço a cláusula de acesso ao Judiciário para afastar ameaça de lesão a direito ou lesão a direito – a veiculação do que elaborado para, posteriormente, se for o caso, chegar-se às consequências, especialmente no campo cível, considerada a verba indenizatória, já que não passa pela minha cabeça adentrar o campo penal, tendo em conta o instituto da calúnia.
Presidente, havendo – vou repetir – conflito entre o interesse individual e o coletivo, a solução, sopesando-se valores, está em dar-se primazia, em dar-se predominância, ao interesse coletivo, e este – pelo menos falo, porque, repito, leio apenas as biografias não autorizadas – é o dos cidadãos em geral.
Por último, indago: por que a ministra Cármen Lúcia, no brilhante voto que nos entregou, uma vez apregoado o processo, bem como no resumo feito, veio a preconizar a interpretação conforme à Constituição sem redução do texto? Porque teve presente a pertinência temática, a problemática da legitimação da requerente, que é a Associação Nacional dos Editores de Livros – Anel, que não é uma agência do Estado.
Presidente, subscrevo as colocações da relatora, ministra Cármen Lúcia – e imaginava quais seriam essas colocações, tanto assim que fiquei muito tranquilo ao comparecer à Sessão, não me aprofundando na reflexão da matéria. Muito embora incompreendido, até certo ponto, pela Colônia, mas ninguém elogiou mais esta última do que eu, revelei o que penso sobre a liberdade de informação, a liberdade de expressão, a liberdade de pensamento, no Habeas Corpus de nº 82.424 – no célebre caso Siegfried Ellwanger, voto referido, para minha honra, pela Relatora, também citado pelo Presidente da Ordem dos Advogados, Dr. Marcus Vinícius – classe que não me canso de enaltecer, mesmo porque o primeiro cargo de juiz que preenchi no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região era destinado a egressos da laboriosa classe dos advogados.
Acompanho a Relatora, enaltecendo o voto e reafirmando, mais uma vez, a importância deste julgamento, muito embora limitado às balizas
ADI 4815 / DF
relativas à legitimação da requerente. De qualquer forma, o Supremo sinaliza, aos demais patamares do Judiciário, a necessidade de preservar- se, no ofício judicante, passo a passo, o que se contém no artigo 220 da Constituição Federal.
É como voto.
10/06/2015 PLENÁRIO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL
VOTO
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: CANCELADO.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Porque era só repetição da Constituição e, para evitar qualquer equívoco, fica suprimido.
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: CANCELADO.
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Mas eu estou de acordo.
Eu estou acompanhado a Ministra Cármen Lúcia na conclusão única também. É porque a minha sugestão era que nós explicitássemos que a interferência do Judiciário não deveria ser a priori e, sim, a posteriori.
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: CANCELADO.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Não, mas está expressamente que é nos termos do pedido, e o pedido é este: a declaração de inconstitucionalidade, salvo autorização; então, nenhuma dúvida.
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Mas eu estou de acordo.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Eu creio que a Ministra Cármen Lúcia, em boa hora, data venia, suprime o item b, até porque agora mesmo o Decano acaba de reafirmar que, dentre as formas de coibir as ofensas àqueles direitos abrigados no artigo 5º, inciso X, incluem-se, além da indenização, outros
ADI 4815 / DF
meios - direito de resposta, repressão penal -, e acho que a Relatora, em boa hora, o fez para evitar qualquer compreensão errônea, ela suprime esse inciso b.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Não estava incluído o item b, mas para evitar qualquer elocubração nesse sentido, suprime-se porque isso era só...
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Acho que há concordância nesse aspecto.
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - De acordo.
O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: CANCELADO.
10/06/2015 PLENÁRIO
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815 DISTRITO FEDERAL
VOTO
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Eu queria iniciar louvando o belíssimo e antológico voto da Ministra Carmén Lúcia e, também, enaltecer o voto daqueles que a seguiram no entendimento, dizendo que hoje a Corte vive um momento histórico, porque, na verdade, ela reafirma uma tese, que ela vem afirmando desde há muito tempo, no sentido de que é impossível que se censure ou que se exija autorização prévia de biografias. Também a Corte, hoje, reafirma a mais plena liberdade de expressão artística, científica e literária, desde que - e essa que me parece a tese - não se ofendam outros direitos constitucionais dos biografados, notadamente aqueles que estão capitulados no art. 5º, inciso X, da nossa Carta Magna.
Eu gostei muito da intervenção, dentre outras intervenções feitas, brilhantes, da tribuna, daquela proferida pelo Doutor Marcus Vinícius Furtado Coêlho, digno Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, quando cita as palavras de John Stuart Mill, importante pensador do século XIX, pensador inglês, que diz que: "Para os males da liberdade só existe um remédio: mais liberdade." Mas Sua Excelência, logo em seguida, acrescenta o seguinte: "Numa democracia, há que se preservar liberdade com responsabilidade." E, na sequência, vem o eminente advogado Doutor Antônio Carlos de Almeida Castro, nisso seguido pelos Ministro Barroso e Ministro Fux, quando diz que: "Não existem direitos ou liberdades absolutos."
Então, eu fiquei muito confortado quando esta Corte, por meio de todos os votos, reafirma que, nesta matéria também, continua prevalecendo, continua válido um princípio absolutamente fundamental, que é aquele da inafastabilidade da jurisdição a que se refere o art. 5º, inciso XXXV, da nossa Constituição Federal. Eu entendo, com todo o respeito, que, neste princípio, compreende-se, sim, o poder de cautela do juiz, sobretudo porque esse dispositivo faz menção à ameaça a lesão de direitos, portanto, o juiz deve ter instrumentos para impedir a mera ameaça a lesão de direitos. É claro que - e isso o Ministro decano, Celso de Mello, observou muito bem -, neste conceito, não se compreende qualquer decisão teratológica, até porque existem instrumentos processuais hábeis para fazer cessar de plano, de pronto, qualquer decisão que fuja a esse padrão normal que é o poder geral de cautela do juiz.
Mas eu gostaria de observar o seguinte: a questão hoje é muito mais complexa do que alguns imaginam, porque, hoje, as biografias não são veiculadas apenas em livros ou em papel, mas, na verdade, hoje, a maioria dos livros circulam na internet. Nós temos duas grandes editoras, ou divulgadoras de livros, como a Amazon e a Kindle, que publicam livros e que podem ser baixados pela internet. Então, muitas vezes, publicam-se biografias ofensivas, apócrifas, sem autores, não autorizadas, em países onde a própria jurisdição brasileira não alcança. Então, o problema hoje é extremamente complexo e é preciso que nós tenhamos meios para coibir estes abusos que, infelizmente, existem no mundo real.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Vossa Excelência me permite um aparte, nem é um aparte, na verdade, é para secundar o que afirma Vossa Excelência.
Eu fiz constar do voto uma célebre decisão do Tribunal francês relativa à biografia do ex-Presidente François Mitterand. Está no voto, inclusive, a transcrição. A biografia saiu contendo, inclusive, referências à doença que ele teria sofrido, a partir de entrevistas feitas com o seu médico. O Tribunal francês proibiu, porque foi no dia do enterro, vieram a pública particularidades sobre a doença e o médico foi apenado, penalmente, inclusive com prisão por quebra de sigilo funcional - aí, à parte. Alguns dias depois, o próprio Tribunal voltou atrás no sentido de que já estava circulando na internet a matéria e já tinha passado o que tinha sido o motivo da determinação, quer dizer, o luto, que era o interesse da família; o luto, o respeito a sua intimidade tinha passado por causa do período de luto, que também já tinha acabado, e liberou-se a matéria. Esses dois fundamentos foram aproveitados pelo Tribunal de de Cassação. Ou seja, primeiro porque já estava na internet, não adiantava mais a proibição, e segundo, claro, levou-se em consideração a questão da intimidade e o período de luto já ter passado.
Mas só para secundar exatamente o que afirma Vossa Excelência. Fiz muita questão de circunscrever qual o pedido da ANEL e o que estávamos decidindo: não há censura no Brasil.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Perfeito.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - A liberdade de expressão está garantida e será garantida pelo Tribunal. Há muitas nuances e muitas novidades, até porque – saliento em meu voto - falamos de invasão de privacidade, mas vivemos um dado inédito que não há em pouquíssimos Tribunais do mundo, a evasão de privacidade, alguns que se mostram, porque querem, gravam suas ações, suas moradias e põem na internet. Aí não é biografia, é outro assunto. Mas apenas, como afirma Vossa Excelência, alguns dados são inéditos e o Direito não tem resposta porque é pergunta nova e não há nem legislação sobre a matéria.
Muito obrigada pelo aparte.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Mas eu agradeço a Vossa Excelência, que complementa o meu pensamento exatamente para mostrar que a questão é extremamente complexa, há casos e casos. E aí eu gostaria também de sufragar a preocupação veiculada da tribuna pelo Doutor Antônio Carlos de Almeida Castro no sentido de imaginar a possibilidade até de uma apreensão cautelar de uma obra que esteja ofendendo os direitos previstos no artigo 5º, inciso X. Por exemplo, quando na internet se publica antecipadamente alguns excertos da obra ofensivos à pessoa, ou quando se publica uma resenha, como é que faz o biografado que se sente ofendido? Queda-se inerte? Ele bate às portas do Judiciário e vai pedir uma medida cautelar.
Então eu acho que a regra, sem dúvida nenhuma, é que nós estamos afastando a censura prévia; não há dúvida nenhuma, não há censura no Brasil. Há plena liberdade de publicação de biografias, sem autorização do biografado ou de seus parentes, e há também, reafirmamos hoje, a plena liberdade de expressão artística, científica, literária etc. Mas existem situações e situações, e como disse o nosso próprio Decano, uma das pedras de toque da democracia e da própria cidadania, a meu ver, é o princípio da inafastabilidade da jurisdição, porquanto, no século XXI, já tive oportunidade de dizer, nós vivemos a era dos direitos, e quem faz a concreção dos direitos fundamentais é justamente o Poder Judiciário.
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Presidente, eu só gostaria de fazer um registro.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Pois não.
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Para mim, a ideia de apreensão de uma obra é aterradora e, portanto, eu só a admitiria em situações extremas e teratológicas.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Sem dúvida. Eu compartilho plenamente da posição de Vossa Excelência. Já que Vossa Excelência fez uma revelação pessoal com relação a acontecimentos que ocorreram com Vossa Excelência...
O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Mas testemunhei o que Vossa Excelência passou também.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - ... eu queria também dizer que eu sou vítima de cinco perfis falsos no facebook.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - São bons, Presidente?
ADI 4815 / DF
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Totalmente apócrifos, com fotografias minhas, da família, com minha biografia, e que eu procuro retirar do ar e não consigo, porque o facebook está situado num país onde a nossa jurisdição não atinge, e com diálogos com terceiros etc.
A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA (RELATORA) - Na questão eleitoral, é assim.
O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Vejam como a questão é complexa, é muito complexa! Então eu quero dizer que nós hoje estamos reafirmando uma tese cara ao Tribunal, que é essa absoluta liberdade de expressão sem qualquer censura prévia, nos estritos termos do pedido da inicial desta Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.815.
Então é a esta tese que eu adiro integralmente.
PLENÁRIO
EXTRATO DE ATA
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.815
PROCED. : DISTRITO FEDERAL
RELATORA : MIN. CÁRMEN LÚCIA
REQTE.(S) : ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS - ANEL ADV.(A/S) : GUSTAVO BINENBOJM
INTDO.(A/S) : PRESIDENTE DA REPUBLICA INTDO.(A/S) : PRESIDENTE DO CONGRESSO NACIONAL ADV.(A/S) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
AM. CURIAE. : INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO - IHGB ADV.(A/S) : THIAGO BOTTINO DO AMARAL
AM. CURIAE. : ARTIGO 19 BRASIL
ADV.(A/S) : CAMILA MARQUES BARROSO E OUTRO(A/S) AM. CURIAE. : ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS ADV.(A/S) : ALBERTO VENANCIO FILHO E OUTRO(A/S) AM. CURIAE. : ASSOCIAÇÃO EDUARDO BANKS ADV.(A/S) : ROBERTO FLÁVIO CAVALCANTI
AM. CURIAE. : CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - CFOAB
ADV.(A/S) : OSWALDO PINHEIRO RIBEIRO JÚNIOR E OUTRO(A/S) AM. CURIAE. : INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SAO PAULO - IASP ADV.(A/S) : IVANA CO GALDINO CRIVELLI E OUTRO(A/S)
AM. CURIAE. : INSTITUTO AMIGO
ADV.(A/S) : MARCO ANTONIO BEZERRA CAMPOS E OUTRO(A/S)
Decisão: O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto da Relatora, julgou procedente o pedido formulado na ação direta para dar interpretação conforme à Constituição aos artigos 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas). Falaram, pela requerente Associação Nacional dos Editores de Livros – ANEL, o Dr. Gustavo Binenbojm, OAB/RJ 83.152; pelo amicus curiae Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB, o Dr. Thiago Bottino do Amaral, OAB/RJ 102.312; pelo amicus curiae Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB, o Dr. Marcus Vinicius Furtado Coelho, OAB/PI 2525; pelo amicus curiae Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP, a Dra. Ivana Co Galdino Crivelli, OAB/SP 123.205-B, e, pelo amicus curiae INSTITUTO AMIGO, o Dr. Antônio Carlos de Almeida Castro, OAB/DF 4107. Ausente o Ministro Teori Zavascki, representando o Tribunal no simpósio em comemoração aos 70 anos do Tribunal de Disputas Jurisdicionais da República da Turquia, em Ancara. Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 10.06.2015.
Presidência do Senhor Ministro Ricardo Lewandowski. Presentes à sessão os Senhores Ministros Celso de Mello, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber e Roberto Barroso.
Vice-Procurador-Geral Eleitoral, Dr. Eugênio José Guilherme de Aragão.
p/ Fabiane Pereira de Oliveira Duarte Assessora-Chefe do Plenário
1 Por eventualidade, a ANEL pede, ainda, a declaração da inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, dos mesmos dispositivos para afastar a necessidade de consentimento em relação a biografias elaboradas a respeito de pessoas públicas ou de pessoas envolvidas em acontecimentos de interesse coletivo.
2 Trecho extraído da opinião da Suprema Corte dos EUA no caso Thomas v. Collins, 323
U.S. 516 (1945). O status preferencial da liberdade de expressão no direito norte-americano teve seu surgimento ligado à famosa nota de rodapé nº 4 do voto proferido pelo Justice Stone, no caso United States v. Carolene Products Co. (1938), e foi posteriormente desenvolvido e articulado em uma série de casos, como Jones v. Opelika (1942), Murdock v. Pennsylvania (1943) e Thomas v. Collins (1945).
3 Na a ADPF 130, o Ministro Ayres Britto aduziu que "a Constituição brasileira se posiciona diante de bens jurídicos de personalidade para, de imediato, cravar uma primazia ou precedência: a das liberdades de pensamento e de expressão lato senso". Na mesma linha, o Ministro Luiz Fux consignou em seu voto na ADPF 187 que "a liberdade de expressão (...) merece proteção qualificada, de modo que, quando da ponderação com outros princípios constitucionais, possua uma dimensão de peso prima facie maior". V., ainda, Recurso Extraordinário nº 511.961 e Rcl 18638/MC, de minha relatoria.
4 V. a Corte Europeia de Direitos Humanos (Casos Handyside, de 07.12.1976 e Lingens v. Austria, de 08.07.1986) e Corte Interamericana de Direitos Humanos (v. Caso Palamara Iribarne v. Chile e Ricardo Canese v. Paraguay).
5 V. Sentencias 6/1981, 106/1986, 159/1986 e 171/1990, das quais se extrai o seguinte trecho: "Dada su función institucional, cuando se produzca una colisión de la libertad de información con el derecho a la intimidad y al honor aquella goza, en general, de una posición preferente".
6 V. Sentencias C-010/00, de 19.01.2000, T-391/07, de 22.05.2007 e C-442-11, de 25.04.2011.
7 MEIKLEJOHN, Alexander. Free Speech And Its Relation To Self-Government, 1948. p. 10-11.
8 SARMENTO, Daniel. A Liberdade de Expressão e o Problema do "Hate Speech". In: Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006, p. 242.
9 Essa concepção é tradicionalmente associada ao pensamento de John Stuart Mill, na sua obra clássica "Sobre a Liberdade" (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942).
10 Tais justificações teóricas foram sistematizadas no marco interamericano da liberdade de expressão e pela Corte Constitucional Colombiana na Sentença T-391/07, de 22.04.2007.
11 V., em especial, Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Marco jurídico interamericano sobre el derecho a la libertad de expresion. OEA/Ser.L/V/II CIDH/RELE/INF. 2/09 30 de dezembro de 2009 e Sentença T- 391/07, de 22 de maio de 2007 da Corte Constitucional da Colômbia.
12 A radical proibição da censura também se encontra prevista Convenção Americana sobre Direitos Humanos, promulgada no Brasil pelo Decreto no 678/92, que dispõe que o exercício da liberdade de expressão "não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores", com uma única exceção, a regulação de acesso a espetáculos públicos para proteção moral da infância e da adolescência Muito embora tal Convenção não desfrute de hierarquia constitucional, mas supralegal, é certo que toda a legislação infraconstitucional – inclusive o Código Civil – deve ser interpretada à sua luz e, na linha da chamada hermenêutica "cosmopolita", ela deve ser considerada na interpretação da Constituição.
13 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0907200705.htm.
14 V. GARRATY. John. The nature of biography 171 (1957).
15Ressalve-se, porém, as louváveis decisões de alguns tribunais do país, que, mesmo sem o consentimento do biografado, tem garantido o direito à divulgação das biografias, em respeito à liberdade de expressão. A título exemplificativo, confira-se as decisões que negaram o pedido do cantor e compositor João Gilberto de apreensão dos exemplares da sua biografia (TJSP, Processo nº 0181186-30.2012.8.26.0100).
16STJ, REsp 521.697/RJ, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, j. em 16.02.2006.
17 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/11/30/ilustrada/17.html
18 TJRJ, MS nº 221/96, Rel. Des. Humberto Paschoal Perri, j. em 26.06.1996.
19 TJRJ, EI 2002.005.00058, Rel. Des. Sérgio Cavaliere Filho, j. em 15.05.2002, no qual se afirmou que: "Terceiros não podem se apropriar desses direitos e publicar obra biográfica sem a autorização dos herdeiros, por mais erudita que seja a obra e nobres os seus propósitos. O exercício da livre manifestação do pensamento, da expressão intelectual e da profissão não autorizam a apropriação dos direitos de outrem para fins comerciais e de lucro, por se encontrar isso fora do direito de informar. O dano patrimonial decorre do locupletamento da popularidade do biografado comercialmente explorada, sem a autorização de quem de direito, ou sem lhe dar a devida participação nos lucros".
20 TJRJ, Processo nº 0006890-06.2007.8.19.0001.
21 TJRJ, Processo no 0180270-36.2008.8.19.0001.
22 Disponível em: http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2013/10/livros-vetados-sobre- leminski-violam-intimidade-dizem-herdeiras.html
23 Tribunal de Justiça do Paraná. Agravo de Instrumento nº 933.386-4, Sétima Câmara Cível, Rel. Desembargador Luiz Sérgio Neiva de Lima Vieira, j. em 12.03.2013.
24 Processo nº 0038627-20.2011.8.25.0001 (201110701579-7), 7ª Vara Cível de Aracaju, Juiz Aldo Albuquerque de Mello, j. em 10.04.2012.
25 TJRJ, AC 1994.001.01380, Rel. Des. Perlingeiro Lovisi, j. 07.06.1994.
26 Parecer "Intimidade e pessoas notórias. Liberdades de expressão e de informação e Biografias. Conflito entre direitos fundamentais. Ponderação, caso concreto e Acesso à justiça. Tutelas específica e indenizatória.", elaborado para a presente ação direta.
27 Ibid.
28 Em sentido semelhante, na doutrina norte-americana, v. Eugene Volokh, Freedom of speech and the right of publicity, Houston Law Review nº 40, 2004: "For instance, an unauthorized biography is certainly a 'product' and an item in 'trade' that benefits from the 'commercial value of [its subject] identity; it uses the subject's name and often his photograph in goods (the biography itself); and yet unauthorized biographies are constitutionally protected from liability".
29Suprema Corte dos EUA, Whitney v. California (concurring opinion) (1927) No original: "Sunlight is said to be the best of disinfectants (...)"
1 LEE, Hermione. Biography: a very short introduction. Oxford University Press, 2009.
2 Idem.
3 Ibidem.
4 Ibidem.
5 Martins, Ives Gandra da Silva. Cidadão público x cidadão privado : biografias, eis a questão. In: Justiça & cidadania, n. 159, nov., p. 46-51 2013.
6 Ibidem. Op. Cit.
7 POSNER, Richard A. The Right to Privacy. Georgia Law Review. Vol. 12. N. 3, 1978.
8 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Luis D. The Right to Privacy. Harvard Law Review, Vol. IV, December 15, 1890.
9 COHEN, Julie. What Privacy is For. In Harvard Law Review. Maio, 2013, tradução livre.
10 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Luis D. Ibidem.
11 COHEN, Julie. Ibidem.