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Superior Tribunal de Justiça. REsp 1422699/SP, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 01 setembro 2015

br010-jpt

RECURSO ESPECIAL Nº 1.422.699 - SP (2013/0397426-6)

 

RELATOR : MINISTRO HUMBERTO MARTINS
RECORRENTE : EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS ADVOGADOS : JOSÉ ROBERTO PADILHA
MAURY IZIDORO E OUTRO(S) RECORRIDO : EUGÊNIA DA SILVA ADVOGADO : ISMAEL P NETO

 

EMENTA

 

DIREITO AUTORAL. DIREITO DA ARTE. REPRODUÇÃO DE PRESÉPIO ARTESANAL EM SELOS POSTAIS PELOS CORREIOS. DIREITOS DO AUTOR. EXCLUSIVOS DO CRIADOR INTELECTUAL. POSSIBILIDADE DE AQUISIÇÃO DERIVADA DE DIREITOS DO AUTOR POR CONTRATO ESCRITO OU PELOS HERDEIROS E SUCESSORES ANTE O FALECIMENTO DO CRIADOR INTELECTUAL. AUSÊNCIA, IN CASU, DE AUTORIZAÇÃO PRÉVIA E EXPRESSA DA ARTISTA PLÁSTICA. VIOLAÇÃO DO DIREITO AUTORAL. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DOS CORREIOS.

 

1. Na origem, a artista plástica propôs ação de indenização contra os Correios, sob o argumento de que a obra intelectual de sua criação denominada "Presépio de São José dos Campos", destinada a um museu, foi fotografada pelos Correios e comercializada mediante tiragem de 2.000.000 (dois milhões) de selos, sem pedido de cessão de direitos autorais nem pagamento de direitos patrimoniais.

 

2. O Direito da Arte é, atualmente, uma disciplina com estatuto epistemológico próprio. A obra de arte é protegida pelo direito brasileiro desde o ato de sua criação, prescindindo do cumprimento de demais formalidades. Ao autor (criador) cabe dar o destino à obra (objeto), mediante seu livre arbítrio, cabendo-lhe exclusivamente decidir sobre eventuais utilização, publicação e reprodução de sua criação.

 

3. A expressão artística é um direito individual, de modo que a reprodução da obra deve ser autorizada prévia e expressamente pelo autor ou titular do direito. Basta a reprodução total ou parcial da criação intelectual para que seja violado o direito autoral, sendo irrelevantes a quantidade (se um exemplar ou vários) e a finalidade (comercial ou não).

 

4. O direito do autor é híbrido e, portanto, composto de direitos morais (cuja natureza jurídica é a de direitos da personalidade) e patrimoniais. Logo, "enquanto direitos morais são inalienáveis, incessíveis, imprescritíveis, impenhoráveis, intransmissíveis; os direitos patrimoniais, ao contrário, alienáveis, cessíveis, prescritíveis, penhoráveis, transmissíveis" (CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu. Requisitos fundamentais para a proteção autoral de obras literárias, artísticas e científicas. Peculiaridades da obra de artes plásticas. Direito da arte. Gladston Mamede; Marcílio Toscano Franca Filho; Otavio Luiz Rodrigues Junior (Org.). São Paulo: Atlas, 2015, p. 307-308).

 

5. Os direitos do autor pertencem exclusivamente a este, ao qual cabe utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica.

 

6. A aquisição derivada de direitos autorais somente ocorre por contrato escrito ou pelo falecimento do autor. 6.1. Os direitos patrimoniais do autor transferem-se por contratos escritos, comutativos e onerosos. Como os negócios jurídicos autorais devem ser interpretados restritivamente, considera-se não convencionado o que não constar expressamente do contrato celebrado entre as partes. 6.2. Quando o autor falecer, existindo herdeiros e sucessores, a estes serão transmitidos os direitos econômicos da produção intelectual; porém, não existindo herdeiros e sucessores, a obra cairá em domínio público automaticamente.

 

7. O fato de a obra ser vendida à pessoa física ou jurídica (de direito público ou privado) não retira do autor a prerrogativa de defender a sua criação, de auferir os proventos patrimoniais que a exposição de seu trabalho ao público venha a proporcionar, bem como de evitar possível utilização por terceiros, sob quaisquer modalidades, sem sua autorização prévia e expressa.

 

8. Uma vez incontroverso o nexo de causalidade entre a conduta administrativa e o dano causado à particular, configura-se a responsabilidade civil objetiva por parte dos Correios, estes sem qualquer direito sobre a obra intelectual alheia, tornando-se indenizável a violação do direito autoral.

 

Recurso especial improvido.

 

ACÓRDÃO

 

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da SEGUNDA Turma do Superior Tribunal de Justiça: "A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a)." Os Srs. Ministros Herman Benjamin, Mauro Campbell Marques e Assusete Magalhães (Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator.

 

Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Og Fernandes. Brasília (DF), 1º de setembro de 2015(Data do Julgamento)

 

MINISTRO HUMBERTO MARTINS
Relator

 

RECURSO ESPECIAL Nº 1.422.699 - SP (2013/0397426-6) RELATOR : MINISTRO HUMBERTO MARTINS
RECORRENTE : EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS ADVOGADOS : JOSÉ ROBERTO PADILHA
MAURY IZIDORO E OUTRO(S) RECORRIDO : EUGÊNIA DA SILVA ADVOGADO : ISMAEL P NETO

 

RELATÓRIO

 

O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator):

 

Cuida-se de recurso especial interposto pela EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS – ECT, com fundamento no art. 105, III, "a", da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região.

 

O julgado regional traz a seguinte ementa (fls. 189/190, e-STJ):

 

"AÇÃO DE CONHECIMENTO – DANOS – DIREITOS AUTORAIS – ARTISTA PLÁSTICA VENDEU PEÇAS (PRESÉPIO) A UM MUSEU – ECT REPRODUZIU A IMAGEM EM SELO, POR FOTO, SEM AUTORIZAÇÃO DO CRIADOR – PROCEDÊNCIA À REPARAÇÃO – QUANTIA ADEQUADAMENTE FIXADA – IMPROVIMENTO A AMBAS AS APELAÇÕES.

 

1. Com razão a parte autora em não se traduzir a compra de suas peças, em todo formador de um presépio, nota de empenho, em fator autorizador da reprodução praticada pela ECT em seus selos postais, como ocorrida, sem autorização da artista plástica de que oriundo aquele lavor.

 

2. Insta destacar-se se está diante de propriedade imaterial, intelectual mesma, fruto de engenho humano incomparável, único, direta decorrência da interna criação mental e da habilidade manual do pólo originariamente demandante, de tal arte que a venda e compra daqueles objetos em si, por parte de um museu (no particular ligado a Instituto da União), sem qualquer outra expressa e fundamental permissão a respeito, não traduziria permissivo a que reproduzidos fossem ditos objetos, sem capital outorga de seu criador.

 

3. Incumbe salientar-se não foi comprado "objeto qualquer", sobre o qual no comum das vezes a deitar a respeito o pólo adquirente o exercício de todos os direitos sobre a coisa, segundo o civilismo então assim o pleno in re potestas: diversamente disto, aqui no caso vertente jamais se legitimaria a empreitada postal praticada sem vênia escrita do pólo criador, cuja venda portanto ao retratado Museu não assumiu o condão, objetivamente, da transmissão de outras figuras, inerentes ao direito autoral, diversas do intrínseco mister de exposição de ditas peças ao colegiado/coletividade que a assim visitar aquele museu, naturalmente.

 

4. O excedimento/usurpação, data venia, titularizado pela ECT, restou configurado nos autos, em amparo ao pólo originariamente autor, então, positivando a Lei 5.988/73, L.D.A., preceitos como o artigo 38, o artigo 53 e o artigo 81, cuja conjugação traduz cristalina exegese no sentido de que a aquisição do original, de retratada obra plástica, a não conferir, sem expressa e específica autorização de seu criador, o praticado gesto de sua reprodução, superiores peculiares valores como o da titularidade da autoria e o da intangibilidade da obra.

 

5. A essência da Lei dos Direitos Autorais – LDA, ao assegurar integridade da obra, artística e/ou intelectual, deu-se para vedar o uso deste fruto em desrespeito a seu autor, de tal modo que, com muita felicidade, saliente-se, fixou a r. sentença adequada reparação ao dano causado.

 

6. Inoponível o invocado artigo 80, LDA, em si já em cristalina leitura superado pela especial norma de seu subseqüente artigo 81, tanto quanto (e superiormente) por reconhecidamente expungido do ordenamento de seu berço consoante o E. STJ, vez que o Brasil signatário de internacional tratado que afastou aquele preceito, já a seu tempo. Precedentes.

 

7. Presentes os capitais componentes estruturais próprios à em sede de valor, então, em pagamento, responsabilidade civil, artigo 159, CCB então vigente, de acerto se revelou a r. sentença que assim constatou tais elementos, a repousarem nos autos, tanto assim aliás que nem a própria ECT apelou originariamente de dito julgamento, somente tendo interposto recurso adesivo quando do apelo da artista plástica em foco, aspecto processual este de tomo, com efeito.

 

8. Revelou-se o montante fixado plenamente consentâneo com as proporções trazidas em prova aos autos pela própria parte autora, não se justificando, de conseguinte, a exacerbação valorativa, em apelo almejada pela autora de ditas obras.

 

9. Compatível o montante sentenciado em danos com os precisos contornos da causa, bem assim os honorários advocatícios, fixados em conformidade com as peculiaridades da demanda, artigo 20, CPC, sem substância se põe o desejado efeito multiplicador, em recurso almejado pela artista em questão.

 

10. Com felicidade vazado o sentenciado desfecho construído em Primeiro Grau, de rigor se afigura o improvimento à apelação e ao adesivo interpostos, mantendo-se a r. sentença, como proferida.

 

11. Improvimento às apelações. Procedência ao pedido".

 

Os embargos declaratórios opostos pela ECT foram improvidos (fls. 202/206, e-STJ).

 

No recurso especial, a ECT alega que o acórdão regional, ao condená-la ao pagamento de danos materiais e morais à autora, violou o art. 80 da Lei n. 5.988/1973, arts. 9º, III, 47 e 33, § 1º, da Lei 6.538/1978 e art. 333, I, do Código de Processo Civil.

 

Sustenta, em síntese, que os Correios não se utilizaram indevidamente da obra de arte, sendo a condenação indevida e excedente ao possível prejuízo patrimonial tido pela artista, haja vista que (fls. 218/226, e-STJ):

 

"no caso dos autos, a recorrida (Eugênia) vendeu ao Museu de Folclore Edison Carneiro, sem qualquer ressalva, e a título oneroso, a obra de arte plástica em questão.

 

Com tal operação de venda, a recorrida (Eugênia), indubitavelmente, transmitiu o direito de reprodução e exposição da sua obra ao público.

 

A arte plástica da recorrida depois de fotografada transmutou-se em estampa de selo, inexistindo violação ao direito moral ou material da recorrida.

 

Da mesma forma, inexiste qualquer ilegalidade por parte da recorrente.

 

Muito menos pode-se falar em obtenção de lucro por parte da ECT (recorrente) com a venda dos selos, pois estes não são utilizados e tarifados em face do valor da obra de arte de estampa, e sim pelo valor da tarifa postal tabelada em todo o país, conforme dispõe a Lei Postal e regulamento interno da recorrente.

 

O art. 80 da Lei n. 5.988/73 dispõe a respeito, com todas as letras.

 

De fato, de se notar que direito algum há a ser protegido, pois a recorrida vendeu sua obra dispondo sobre sua reprodução ou mesmo sobre sua exposição ao público, não gerando qualquer direito a ora recorrida.

 

(...).

 

O valor facial atribuído ao selo é intrínseco, não se vinculando a obra artística ou ao tema comemorativo da sua estampa.

 

A estampa tem como objetivo da recorrida valorizar o que é do nosso país (as obras artísticas e seus criadores, a fauna, a mata, a riqueza mineral, o folcrore, a cultura em geral e regional) e divulgá-los em todos os quadrantes onde os Correios Brasileiro preste serviço de entrega postal.

 

Dessa forma, o valor do selo prende-se ao que ele é em si e por si, e não pela estampa. Aliás, a tarifa postal segue tabela de cobrança definida pela União (através do Ministério das Comunicações) e tem como legalidade a própria LEI POSTAL (Lei Federal n. 6.538, de 22/06/1978, nos termos do art. 33, § 1º (...).

 

Além do mais, a ECT está equiparada à FAZENDA PÚBLICA, prestando serviço público, sem visar lucro e não está enquadrada no disposto no art. 173 da Constituição da República (...).

 

No tocante ao monopólio dos Correios, consagrado pelo Excelso Supremo Tribunal Federal, é indiscutível que a recorrente (ECT) mantém capital exclusivo da UNIÃO, com recebimento de tarifas pelo serviço público que presta, e não de venda de artes plásticas.

 

Portanto, o selo não pode ser tratado como se fosse um objeto de comércio.

 

A Lei Postal (Lei Federal n. 6.538, de 22/06/1978), no art. 9º, inciso III, é clara em definir que a fabricação de selo só pode ser explorado, em regime de monopólio, pela UNIÃO (...).

 

(...).

 

A bem da verdade, a recorrente (ECT) não visa lucro comercial com a venda dos selos, conforme dispõe o artigo 33, § 1º, da Lei Federal n. 6.538, de 22/06/1978.

 

Por este fato, a recorrente (ECT) não pode responder objetivamente.

 

No presente caso, deve se acrescer que os negócios jurídicos sobre direitos autorais são interpretados restritivamente, diante do que dispõem os artigos 3º da Lei n. 5.988/73 e 4º da Lei n. 9.610/98.

 

(...).

 

Conforme já exposto, as imagens estampadas nos selos dos Correios não são oriundas de ato ilícito. O que afasta de plano a aplicação de qualquer condenação, quer material, quer moral.

 

Dos elementos constantes dos autos, verifica-se que a autora não se desincumbiu do ônus da prova de suas alegações, pois não há qualquer documento que comprove a efetiva ocorrência de seu direito e dos supostos danos (...)".

 

Não foram apresentadas contrarrazões, sobrevindo juízo de admissibilidade positivo da instância de origem (fls. 232/233, e-STJ).

 

É, no essencial, o relatório.

 

RECURSO ESPECIAL Nº 1.422.699 - SP (2013/0397426-6) EMENTA

 

DIREITO AUTORAL. DIREITO DA ARTE. REPRODUÇÃO DE PRESÉPIO ARTESANAL EM SELOS POSTAIS PELOS CORREIOS. DIREITOS DO AUTOR. EXCLUSIVOS DO CRIADOR INTELECTUAL. POSSIBILIDADE DE AQUISIÇÃO DERIVADA DE DIREITOS DO AUTOR POR CONTRATO ESCRITO OU PELOS HERDEIROS E SUCESSORES ANTE O FALECIMENTO DO CRIADOR INTELECTUAL. AUSÊNCIA, IN CASU, DE AUTORIZAÇÃO PRÉVIA E EXPRESSA DA ARTISTA PLÁSTICA. VIOLAÇÃO DO DIREITO AUTORAL. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DOS CORREIOS.

 

1. Na origem, a artista plástica propôs ação de indenização contra os Correios, sob o argumento de que a obra intelectual de sua criação denominada "Presépio de São José dos Campos", destinada a um museu, foi fotografada pelos Correios e comercializada mediante tiragem de 2.000.000 (dois milhões) de selos, sem pedido de cessão de direitos autorais nem pagamento de direitos patrimoniais.

 

2. O Direito da Arte é, atualmente, uma disciplina com estatuto epistemológico próprio. A obra de arte é protegida pelo direito brasileiro desde o ato de sua criação, prescindindo do cumprimento de demais formalidades. Ao autor (criador) cabe dar o destino à obra (objeto), mediante seu livre arbítrio, cabendo-lhe exclusivamente decidir sobre eventuais utilização, publicação e reprodução de sua criação.

 

3. A expressão artística é um direito individual, de modo que a reprodução da obra deve ser autorizada prévia e expressamente pelo autor ou titular do direito. Basta a reprodução total ou parcial da criação intelectual para que seja violado o direito autoral, sendo irrelevantes a quantidade (se um exemplar ou vários) e a finalidade (comercial ou não).

 

4. O direito do autor é híbrido e, portanto, composto de direitos morais (cuja natureza jurídica é a de direitos da personalidade) e patrimoniais. Logo, "enquanto direitos morais são inalienáveis, incessíveis, imprescritíveis, impenhoráveis, intransmissíveis; os direitos patrimoniais, ao contrário, alienáveis, cessíveis, prescritíveis, penhoráveis, transmissíveis" (CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu. Requisitos fundamentais para a proteção autoral de obras literárias, artísticas e científicas. Peculiaridades da obra de artes plásticas. Direito da arte. Gladston Mamede; Marcílio Toscano Franca Filho; Otavio Luiz Rodrigues Junior (Org.). São Paulo: Atlas, 2015, p. 307-308).

 

5. Os direitos do autor pertencem exclusivamente a este, ao qual cabe utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica.

 

6. A aquisição derivada de direitos autorais somente ocorre por contrato escrito ou pelo falecimento do autor. 6.1. Os direitos patrimoniais do autor transferem-se por contratos escritos, comutativos e onerosos. Como os negócios jurídicos autorais devem ser interpretados restritivamente, considera-se não convencionado o que não constar expressamente do contrato celebrado entre as partes. 6.2. Quando o autor falecer, existindo herdeiros e sucessores, a estes serão transmitidos os direitos econômicos da produção intelectual; porém, não existindo herdeiros e sucessores, a obra cairá em domínio público automaticamente.

 

7. O fato de a obra ser vendida à pessoa física ou jurídica (de direito público ou privado) não retira do autor a prerrogativa de defender a sua criação, de auferir os proventos patrimoniais que a exposição de seu trabalho ao público venha a proporcionar, bem como de evitar possível utilização por terceiros, sob quaisquer modalidades, sem sua autorização prévia e expressa.

 

8. Uma vez incontroverso o nexo de causalidade entre a conduta administrativa e o dano causado à particular, configura-se a responsabilidade civil objetiva por parte dos Correios, estes sem qualquer direito sobre a obra intelectual alheia, tornando-se indenizável a violação do direito autoral.

 

Recurso especial improvido.

 

VOTO

 

O EXMO. SR. MINISTRO HUMBERTO MARTINS (Relator):

 

DA CONTROVÉRSIA

 

Na origem, a ora recorrida, EUGÊNIA DA SILVA, artista plástica, artesã e figureira registrada na Superintendência do Trabalho Artesanal nas Comunidades – SUTACO, autarquia hoje vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação do Estado de São Paulo, ajuizou ação de indenização contra a EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS – ECT.

 

Na petição inicial, a artista plástica alegou que a obra intelectual de sua criação denominada "Presépio de São José dos Campos", destinada ao Museu do Folclore Edison Carneiro, foi reproduzida pelos Correios e comercializada sob a forma de 2.000.000 (dois milhões) de selos no Natal de 1981, para a série comemorativa "Presépios Populares", sem nenhum pedido de cessão de direitos autorais ou pagamento de direitos patrimoniais, vindo a autora a saber do ilícito em janeiro de 1982, quando, ao se dirigir a uma agência postal, deparou-se com sua arte reproduzida nos selos.

 

Desse modo, com fulcro nos fatos e provas carreados aos autos, a artista plástica pleiteou, na instância ordinária, indenização contra os Correios, a ser arbitrada com base no número de selos impressos e comercializados, devidamente atualizada com juros e correção monetária.

 

A sentença de primeiro grau concluiu que, de fato, foram comercializados indevidamente 2.000.000 (dois milhões) de selos com a imagem do "Presépio de São José dos Campos", ao passo que os Correios não comprovaram nenhuma declaração de cessão dos direitos autorais da artista plástica. Julgou-se, pois, procedente o pedido da autora aos danos patrimoniais, fixados em 1% (um por cento) sobre o número de selos impressos multiplicado pela tarifa em janeiro de 1987, resultando em Cz$ 80.000,00 (oitenta mil cruzados), acrescidos de correção monetária, expurgos inflacionários e juros moratórios, além de honorários advocatícios estabelecidos em 10% (dez por cento) sobre o total do débito.

 

A autora Eugênia da Silva e os Correios interpuseram, respectivamente, apelação e recurso adesivo:

 

i) a artista aduziu que, além dos danos patrimoniais, ser-lhe-ia devida também a indenização pela utilização de sua obra por terceiro, a ser fixada em 1/3 (um terço) sobre o valor arrecadado pela apelada, bem como os honorários advocatícios deveriam ser majorados para 20% do valor da causa;

 

ii) os Correios argumentaram que o presépio foi transferido, a título oneroso, a museu pertencente à União, não havendo que se falar em ato ilícito, pois a empresa pública deu ampla divulgação ao trabalho da artista, com destaque para seu trabalho em edital que abordou selos comemorativos. Logo, "se desejasse fazer uso ilícito da obra, não teria tal conduta, aplicando-se os arts. 8º e 80 da Lei 5.988/73, gravando nos selos o nome da apelada em tamanho condizente com o do selo"; ademais, detém "o monopólio da atividade inerente aos serviços postais, agindo com seu dever constitucional, não visando a interesses econômicos em suas atividades, muito menos na confecção de selos" (fl. 184, e-STJ).

 

O acórdão regional negou provimento à apelação e ao recurso adesivo, mantendo a sentença de primeiro grau (fls. 182/191, e-STJ).

 

DO DIREITO DA ARTE E DO DIREITO AUTORAL

 

O Direito da Arte é, hoje, uma disciplina com estatuto epistemológico próprio. A expressão artística é um direito individual com proteção no âmbito nacional e internacional.

 

A Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas foi promulgada no Brasil pelo Decreto 75.699/1975.

 

A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece, em seu art. 27º, 2, que "todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria".

 

A Constituição Brasileira de 1988 amparou a expressão artística no art. 5º, inc. IX ("é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença") e XXVII ("aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar").

 

A EC n. 1/1969, que vigia à ocasião dos fatos, também o fez no art. 153, § 25 ("Aos autores de obras literárias, artísticas e científicas pertence o direito exclusivo de utilizá-las. Esse direito é transmissível por herança, pelo tempo que a lei fixar").

 

No plano infraconstitucional pátrio, a atual Lei 9.610/1998 (Lei de Direitos Autorais – LDA) altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais (anterior Lei 5.988/1973, vigente à época do ocorrido).

 

O Código Civil de 1916 (art. 48, III), a Lei 5.988/1973 (art. 2º) e a Lei 9.610/1998 (art. 3º) abordam o direito do autor como bem móvel, com conteúdo tanto moral (direito pessoal) quanto patrimonial (direito real). A seu turno, o Código Civil de 2002 não se refere expressamente ao direito do autor como "bem móvel", embora considere bem móvel, para efeitos legais, "os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes" e "os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações" (art. 83, I e II).

 

Na visão atualizada, esclarece a doutrina de Silmara Juny de Abreu Chinellato:

 

"A primeira dualidade, principal característica do Direito de Autor, é ser composto de direitos morais - cuja natureza jurídica é a de direitos da personalidade (...) e de direitos patrimoniais. A eles se aplicam as regras próprias a cada uma das vertentes; enquanto direitos morais são inalienáveis, incessíveis, imprescritíveis, impenhoráveis, intransmissíveis, os direitos patrimoniais, ao contrário, alienáveis, cessíveis, prescritíveis, penhoráveis, transmissíveis. Por isso, considera-se que o Direito de Autor é híbrido.

 

(...).

 

A natureza jurídica híbrida, com predominância de direitos da personalidade, de Direito de Autor como direito especial, sui generis, que não tem e nunca teve a natureza de direito de propriedade, terá como consequência não serem aplicáveis regras de propriedade quando a elas se referirem, nas múltiplas considerações das relações jurídicas. (...). A natureza jurídica do direito de autor é a de direito intelectual, na terminologia pioneira de Edmond Picard." (CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu. Requisitos fundamentais para a proteção autoral de obras literárias, artísticas e científicas. Peculiaridades da obra de artes plásticas. Direito da arte. Gladston Mamede; Marcílio Toscano Franca Filho; Otavio Luiz Rodrigues Junior (Org.). São Paulo: Atlas, 2015, p. 307-308.)

 

Com efeito, modernamente, a obra de arte é protegida pelo direito brasileiro desde o ato de sua criação, prescindindo do cumprimento de demais formalidades. À pessoa física denominada autor (criador) cabe dar o destino à obra (objeto), mediante seu livre arbítrio, incumbindo-lhe exclusivamente decidir sobre eventuais utilização, publicação ou reprodução da obra.

 

DA VIOLAÇÃO DO DIREITO AUTORAL NO CASO CONCRETO

 

Extrai-se do acórdão regional que os Correios, indevidamente, fotografaram e reproduziram o presépio artístico em 2.000.000 (dois milhões) de selos, sem autorização prévia e expressa da autora, verbis (fls. 186/188, e-STJ):

 

"De fato, com razão a parte autora em não se traduzir a compra de suas peças, em todo formador de um presépio, nota de empenho a fls. 62/63, em fator autorizador da reprodução praticada pela ECT em seus selos postais, como ocorrida, sem autorização da artista plástica de que oriundo aquele lavor.

 

Deveras, insta destacar-se se está diante de propriedade imaterial, intelectual mesma, fruto de engenho humano incomparável, único, direta decorrência da interna criação mental e da habilidade manual do pólo originariamente demandante, de tal arte que a venda e compra daqueles objetos em si, por parte de um museu (no particular ligado a Instituto da União), sem qualquer outra expressa e fundamental permissão a respeito, não traduziria permissivo a que reproduzidos fossem ditos objetos, sem capital outorga de seu criador.

 

Ou seja, incumbe salientar-se não foi comprado "objeto qualquer", sobre o qual no comum das vezes a deitar a respeito o pólo adquirente o exercício de todos os direitos sobre a coisa, segundo o civilismo então assim o pleno in re potestas: diversamente disto, aqui no caso vertente jamais se legitimaria a empreitada postal praticada sem vênia escrita do pólo criador, cuja venda portanto ao retratado Museu não assumiu o condão, objetivamente, da transmissão de outras figuras, inerentes ao direito autoral, diversas do intrínseco mister de exposição de ditas peças ao colegiado/coletividade que a assim visitar aquele museu, naturalmente.

 

Em outras palavras, o excedimento/usurpação, data venia, titularizado pela ECT, restou configurado nos autos, em amparo ao pólo originariamente autor, então, positivando a Lei 5.988/73, L.D.A., preceitos como o artigo 38, o artigo 53 e o artigo 81, cuja conjugação traduz cristalina exegese no sentido de que a aquisição do original, de retratada obra plástica, a não conferir, sem expressa e específica autorização de seu criador, o praticado gesto de sua reprodução, superiores peculiares valores como o da titularidade da autoria e o da intangibilidade da obra.

 

Efetivamente, a essência da Lei dos Direitos Autorais – LDA, ao assegurar integridade da obra, artística e/ou intelectual, deu-se para vedar o uso deste fruto em desrespeito a seu autor, de tal modo que, com muita felicidade, saliente-se, fixou a r. sentença adequada reparação ao dano causado.

 

(...).

 

Em sede de valor, então, em pagamento, realmente, presentes os capitais componentes estruturais próprios à em sede de valor, então, em pagamento, responsabilidade civil, artigo 159, CCB então vigente, de acerto se revelou a r. sentença que assim constatou tais elementos, a repousarem nos autos, tanto assim aliás que nem a própria ECT apelou originariamente de dito julgamento, somente tendo interposto recurso adesivo quando do apelo da artista plástica em foco, aspecto processual este de tomo, com efeito".

 

Ao tempo dos fatos, vigia integralmente a Lei 5.988/1973, a qual definia a reprodução como "a cópia de obra literária, científica ou artística bem como de fonograma" (art. 5º, IV).

 

A atual Lei 9.610/1998, que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais, manteve tal definição com alguns acréscimos, conforme art. 5º, VI:

 

"Art. 5º Para os efeitos desta Lei, considera-se:

 

(...).

 

VI - reprodução - a cópia de um ou vários exemplares de uma obra literária, artística ou científica ou de um fonograma, de qualquer forma tangível, incluindo qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos ou qualquer outro meio de fixação que venha a ser desenvolvido; (...)".

 

Discorre Ricardo Antequera Parilli, no que bem se aproveita ao ordenamento brasileiro, que o direito de reprodução pode estar relacionado à totalidade, à parte ou à fragmento da obra, seja por via direta (impressão, gravação, etc), seja por via indireta (transcrição, v.g.), contanto que adquira exteriorização tangível (corpus mechanicum), como a escrita, o áudio, o visual, o audiovisual, o digital. Ademais, a proteção do direito de reprodução independe dos fins para os quais esta é feita (cultural, acadêmica, comercial, beneficente) ou da esfera que utiliza a reprodução (pública ou privada). A reprodução, como direito e garantia individual do autor, deve ser, ainda, autorizada prévia e expressamente pelo autor ou titular do direito (estes, comumente, sucessores), configurando-se tão somente pelo fato de ser a obra reproduzida, a despeito da quantidade, se um exemplar ou vários (ANTEQUERA PARILLI, Ricardo. El nuevo régimen del derecho de autor en Venezuela. Caracas: Autoralex, 1994, p. 238).

 

Nesse ínterim, confira-se a doutrina especializada nacional:

 

"A aquisição derivada dos direitos autorais se dá por contrato, ou pelo falecimento do autor. Com a sua morte, opera-se a transmissão dos direitos econômicos de sua produção intelectual aos herdeiros e sucessores, se houver. Caso inexistam, a obra cairá, automaticamente, em domínio público. Portanto, a transmissão só poderá ocorrer enquanto a obra estiver protegida.

 

(...).

 

Os direitos patrimoniais de autor são transferidos mediante contratos escritos, comutativos e onerosos. Como os negócios jurídicos autorais impõem interpretação restritiva, por esse só fato ela também se estende aos contratos: o que não for estabelecido por expresso pelas partes considera-se não convencionado." (PONTES, Hildebrando. O regime jurídico dos criadores de obras de artes plásticas e os seus titulares. Direito da arte. Op. cit., p. 282 e 283.)

 

Sobreleve-se que a transmissão da propriedade da obra não implica a transmissão dos direitos patrimoniais do autor, pois existe uma clara diferença entre o corpus mechanicum adquirido e o corpus mysticum oriundo da criação intelectual.

 

Os direitos do autor pertencem exclusivamente a este, ao qual cabe utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica (art. 29 da Lei 5.988/1973 e arts. 11, 28 e 29 da atual Lei de Direitos Autorais), direito que será extensivo aos sucessores pelo prazo legal subsequente ao falecimento do autor.

 

DAS CONCLUSÕES

 

Partindo de tais fundamentos, ao contrário do que sustenta a ECT, entendo que as alegações de que a reprodução da obra em selos não visou ao lucro nem à finalidade comercial, bem como fez referência ao nome da autora, não se prestam a afastar a responsabilidade civil objetiva dos Correios.

 

Ocorre que é suficiente a utilização da obra, parcial ou total, sem a autorização prévia e expressa do autor, para que seja violado o direito autoral, independentemente de o contrafator ser pessoa de direito público ou privado.

 

Tampouco procede o argumento da ECT de que, ao ceder a obra para o museu, a artista teria transferido o direito de reprodução e exposição da sua obra ao público.

 

Isso porque, juridicamente, tal transferência dos direitos patrimoniais (já que os direitos morais são inalienáveis e irrenunciáveis) se faz por contrato escrito, o qual, como afirmam as instâncias ordinárias, não foi celebrado em nenhum momento.

 

Ainda que assim não fosse, o fato de a obra ser vendida ao museu não retirou da autora o direito de defender a sua criação e de auferir os proventos patrimoniais que a exposição de seu trabalho venha a proporcionar, bem como de evitar sua utilização por terceiros, sob quaisquer modalidades, sem sua prévia e expressa autorização.

 

No caso, os Correios são estranhos ao negócio entre a autora e o museu, a teor dos arts. 52 e 53 da Lei 5.988/1973, dispositivos que encontram correspondência nos arts. 49 e 52 da atual Lei dos Direitos Autorais.

 

Uma vez incontroverso o nexo de causalidade entre a conduta administrativa e o dano causado à particular, configura-se a responsabilidade civil objetiva por parte dos Correios, estes sem qualquer direito sobre a obra intelectual alheia, tornando-se indenizável a violação do direito autoral.

 

Pelos fundamentos mencionados, não vislumbro a alegada ofensa aos art. 80 da Lei 5.988/1973; 9º, III, 47 e 33, § 1º, da Lei 6.538/1978; 333, I, do Código de Processo Civil, pois o acórdão recorrido se coaduna com o ordenamento positivo pátrio, não comportando reparo.

 

Ante o exposto, nego provimento ao recurso especial interposto pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT.

 

É como penso. É como voto.

 

MINISTRO HUMBERTO MARTINS
Relator

 

CERTIDÃO DE JULGAMENTO SEGUNDA TURMA

 

Número Registro: 2013/0397426-6 REsp 1.422.699 / SP

 

Números Origem: 384245 9393919 97030507492

 

PAUTA: 01/09/2015 JULGADO: 01/09/2015

 

Relator
Exmo. Sr. Ministro HUMBERTO MARTINS

 

Presidente da Sessão
Exma. Sra. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES

 

Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. CARLOS EDUARDO DE OLIVEIRA VASCONCELOS

 

Secretária
Bela. VALÉRIA ALVIM DUSI

 

AUTUAÇÃO

 

RECORRENTE : EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS ADVOGADOS : JOSÉ ROBERTO PADILHA

 

MAURY IZIDORO E OUTRO(S)
RECORRIDO : EUGÊNIA DA SILVA
ADVOGADO : ISMAEL P NETO
ASSUNTO: DIREITO ADMINISTRATIVO E OUTRAS MATÉRIAS DE DIREITO PÚBLICO - >Responsabilidade da Administração - Indenização por Dano Moral

 

CERTIDÃO

 

Certifico que a egrégia SEGUNDA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

 

"A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso, nos termos do voto do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a)."
Os Srs. Ministros Herman Benjamin, Mauro Campbell Marques e Assusete Magalhães (Presidente) votaram com o Sr. Ministro Relator.
Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Og Fernandes.